Dr Joao Goulao Portugal

A descriminalização do consumo de drogas em Portugal e seu impacto no sistema de justiça criminal

// Entrevista: João Goulão

Médico, Diretor-Geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD)

Contexto:

Em julho de 2001 entrou em vigor, em Portugal, a lei que descriminalizou o consumo de drogas, integrada num conjunto de políticas que conferem às áreas da Saúde e do Social a centralidade das abordagens aos consumidores, em detrimento da área da Justiça. A descriminalização do consumo não pressupõe a despenalização, uma vez que as drogas continuaram e continuam sendo consideradas ilícitas.

Ocorreu, no entanto, uma mudança profunda de paradigma, pois os consumidores deixaram de ser alvo de processos-crime, portanto, consumir droga deixou de ser punível com o encarceramento.
O Dr. João Goulão tem sido o rosto mais visível na concretização destas políticas, detendo responsabilidades na área, nomeadamente enquanto Coordenador Nacional para os Problemas de Drogas e Toxicodependências, desde 2005.


JT: Antes de 2001, quem fosse identificado pelas autoridades consumindo ou com posse de drogas poderia ser detido e posteriormente condenado a cumprir pena de prisão.

Remontando àquela época, qual era o panorama e quais foram os principais objetivos da descriminalização do consumo de drogas, portanto, desta política que foi implementada em Portugal? 

JG: De fato antes de 2001, antes da entrada em vigor da Lei 30/2000, esta era uma possibilidade. A pessoa abordada pelas autoridades policiais no ato de consumir ou na posse de drogas poderia ser detida e, posteriormente, a pena de prisão era uma possibilidade contida no código penal, que os juízes podiam, naturalmente, aplicar.

Na prática havia uma população prisional considerável relacionada com o consumo de drogas, embora a maioria das condenações ocorresse também por pequenos crimes conexos, crimes aquisitivos e, quando se tratava de mero consumo, apesar de tudo, a opção preferencial por parte dos juízes eram as injunções terapêuticas a fim de permitir que o dependente – o utilizador de drogas – fosse encaminhado para tratamento, assim se eximindo à pena de prisão.

Mas, mesmo assim, havia uma superpopulação prisional relacionada com consumo e com atividades de pequeno tráfico. Naquela época, nós vivíamos uma situação mais ou menos cataclísmica, com uma população dependente, sobretudo, de heroína extremamente numerosa, estimada em cerca de 1% da população portuguesa.

Considerando que somos 10 milhões de habitantes, a estimativa aponta para cerca de 100.000 utilizadores de heroína, com todo o espectro de consequências que esse uso teve na saúde individual e coletiva e na pequena criminalidade. Estávamos também em pleno auge da epidemia da AIDS, os impactos na saúde individual e coletiva eram extremamente importantes, a visibilidade pública do fenômeno e o estigma associado à utilização de drogas também, em boa parte ocasionada pelo próprio estatuto legal que lhe era atribuído.

O grande objetivo – eu diria que o principal objetivo da descriminalização do uso de drogas por parte dos proponentes, entre os quais me incluo – foi o de diminuir esse estigma, ao difundir, entre a sociedade portuguesa, a ideia de que estávamos abordando sobretudo [um problema de] dependência, de uma condição que teria vantagens em ser abordada do ponto de vista do social e da saúde, em detrimento da abordagem criminal.

Antes da descriminalização, Portugal vivia uma situação bastante cataclísmica, com 1% da população dependente de heroína

JT: Na época, a opção de descriminalização foi disruptiva em relação à Europa e ao mundo. Foi muito controversa, criticada por alguns grupos políticos e até “vista com maus olhos” por entidades internacionais como a ONU, por exemplo.

O Sr. tinha a certeza de que a descriminalização seria o caminho certo? Por quê?

JG: Bom, é evidente que nem eu nem os meus colegas proponentes tínhamos certeza de que o processo ia correr bem. Do nosso ponto de vista, era uma abordagem predominantemente feita a partir das áreas social e da saúde, o que, inegavelmente, teria vantagens sobre a mera abordagem criminal, de encarceramento ou a aplicação de penas. As alternativas, como multas, tinham muito pouco impacto na alteração dos hábitos das pessoas e abriam poucas oportunidades aos que procurassem um outro caminho.

A ONU era um desafio. Aliás, nós – do grupo da Estratégia Nacional da Luta Contra Droga que foi nomeado em 1998 – das poucas instruções que tivemos por parte do governo [não esqueçamos era um governo liderado por António Guterres e o ministro responsável na época era José Sócrates], a que recebemos foi de que devíamos continuar seguindo as ideias dos tratados dos quais éramos signatários no âmbito das Nações Unidas e, esses, como é sabido, consagram uma postura proibicionista.

Procuramos ir o mais longe possível dentro desse paradigma e, portanto, a proposta foi de descriminalização, mantendo-se a proibição e as possíveis sanções aplicadas no âmbito do Direito Administrativo. Foi esta nuance que encontramos, assessorados brilhantemente pelo Professor Faria e Costa, a quem pedimos um parecer, e que nos garantiu que mantendo penalidades administrativas, continuaríamos dentro do espírito dos tratados das Nações Unidas. 

É curioso. Penso que aproveitamos uma janela de oportunidade para fazer passar – eu diria que, pacificamente, na sociedade portuguesa – esta proposta de descriminalização. E essa janela de oportunidade resulta, do meu ponto de vista – e isto é uma tese bastante pessoal, mas da qual estou firmemente convicto – do fato de a difusão dos problemas relacionado a drogas em Portugal, os quais tiveram um início tardio relativamente à maioria dos países europeus, depois da nossa revolução democrática, tiveram um padrão de difusão diferente da maioria dos outros países: foi transversal a todos os grupos e classes sociais.

Os problemas das drogas não eram das minorias sociais, nem das minorias étnicas, nem dos guetos, das “pessoas mais desorganizadas”, mas sim algo que surgiu em todas as classes sociais: classe média, classes mais abastadas. Houve um momento em que praticamente todas as famílias portuguesas tinham no seu seio ou na sua proximidade pessoas com problemas de toxicodependência. E isto favoreceu, do meu ponto de vista, de alguma forma, o enfrentamento destes problemas sobretudo como um problema de saúde.

 

Apesar desse contexto social mais favorável e dessa janela de oportunidade quais foram as dificuldades na concretização desta mudança de paradigma?

JG: Depois de apresentarmos a nossa proposta estratégica ao Governo, 1999 [a qual aliás, foi aprovada neste ano, mas a questão da descriminalização não cabia nos poderes do Governo e teve de ser agendada para discussão na Assembleia da República], os meus colegas e eu fizemos um grande esforço para discutir publicamente esta proposta de descriminalização.

Portanto, entre a aprovação da estratégia e a ida da lei da descriminalização ao Parlamento, organizamos numerosas sessões públicas de debate, muitíssimo concorridas, em que o tom geral – embora houvesse, naturalmente, algumas vozes discordantes – era de grande simpatia pela ideia. 

O mesmo não aconteceu na Assembleia da República, onde havia posições completamente diferentes com bases ideológicas, com os pontos de vista e apoio dos partidos mais à esquerda e oposição declarada dos partidos mais à direita.

A oposição centrava-se muito na ideia de que, por um lado – e mais uma vez relacionada a ONU – iriamos ser isolados, de que estaríamos entrando em conflito com as instâncias das Nações Unidas, por outro lado a perspectiva de que Portugal iria tornar-se um paraíso para o narco-turismo, de que teríamos turistas vindo para Portugal para usarem drogas livremente, de que nossas crianças iriam começar a usar drogas com a mamadeira ou algo próximo a isso!

Portanto, digamos que é evidente que, de alguma forma, estes eram argumentos que nos levavam a refletir, mas sentimos que valia a pena arriscar, estávamos perfeitamente convictos que essas suposições não iriam acontecer – como não aconteceu, na prática! Felizmente hoje, mais de 15 anos depois, podemos olhar para trás e ter, de fato, a perspectiva de que nenhuma dessas perspectivas mais sombrias se concretizaram. 

Que desafios ainda existem na implementação desta política?

JG: Eu diria que esta questão, e neste patamar em que estamos, está resolvida. E, a forma como hoje encaramos o mecanismo que foi criado para a aplicação desta nova lei – o conjunto das comissões para a dissuasão da toxicodependência, o órgão administrativo que tem a possibilidade de aplicar sanções.

Portanto, nossa ação se dirige tanto para0 o dependente que precisa de cuidados, de oferta de tratamento para a sua dependência, tanto para o utilizador recreativo mas em quem coexistem fatores de risco sobre os quais é possível intervir ou intervir precocemente para evitar que aquele percurso de utilização de drogas venha a tornar-se mais problemático no futuro.

Portanto, o grande objetivo hoje em dia é dissuadir e interromper o 0percurso que pode levar a pessoa à dependência e isto consegue-se através da oferta de respostas ao nível social, psicológico, intervindo em áreas da vida das pessoas nas quais, muitas vezes, elas só tomam consciência quando são confrontadas e quando têm oportunidade de discutir o enquadramento dos seus consumos com profissionais de saúde. Na prática, hoje em dia, estamos funcionando como um dispositivo de prevenção das toxicodependências. 

Acho que aproveitamos uma janela de oportunidade para aprovar pacificamente a proposta de descriminalização na sociedade portuguesa (...) Tínhamos um padrão de difusão do problema de drogas diferente da maioria dos países: era transversal a todos os grupos e classes sociais.

O Sr. considera que os recursos que aplicados anteriormente na implementação das medidas de justiça foram realocados na prevenção e na saúde?

JG:Eu não diria que tenha uma alocação direta, digamos assim, em que os recursos alocados à redução da oferta tenham sido, em parte “amputados” e alocados à saúde. Eu penso que os orçamentos disponíveis para a área da Justiça, das polícias etc, se mantiveram razoavelmente.

Aquilo a que assistimos foi um aumento significativo e a uma melhoria das condições. Por exemplo, no sistema prisional: mantendo os seus recursos, e tendo uma população menor, era possível oferecer melhores condições à população prisional, melhorar, inclusive, a oferta dos cuidados de saúde no seio do sistema prisional.

Mas não diria que lhes tenham cortado uma parte dos recursos e que essa parte tenha sido diretamente alocada à Saúde. Na Saúde foi, paulatinamente, havendo um investimento que foi crescendo e que nos foi permitindo aumentar e solidificar uma rede de cuidados que hoje é bastante sólida e capaz de atender às necessidades dos cidadãos.

JT: Apesar de Portugal ser considerado um modelo nesta questão, pelo trabalho que já descreveu, nem todas as batalhas foram ganhas e há algumas medidas – como a troca de seringas nas prisões – que não terão tido o sucesso pretendido.

O Sr. concorda com esta conclusão? Que outros aspetos ficam aquém do plano de mudança que se pretendia inicialmente implementar?

JG: Essa medida das trocas das seringas nas prisões é uma das medidas que, na prática, não funciona porque o modelo encontrado e laboriosamente objeto de negociações para permitir que os parceiros nele se revissem  – [nomeadamente agentes penitenciários parceiros importantes nestas políticas], invocavam e que ainda afirmam que o programa de troca de seringas nas prisões constitui um risco para os próprios agentes e sua segurança física.

Eles parecem pouco sensíveis à ideia de que diminuir a número de seringas potencialmente infectadas, substituindo-as por seringas estéreis, diminui a probabilidade de que haja o risco de que as seringas sejam usadas como armas. Portanto, o modelo encontrado para proceder à troca de seringas nas prisões passa pela autodelação do recluso aos profissionais de saúde da prisão e através desses serviços de saúde que eles podem obter seringas novas.

Na prática, [nenhum recluso] arrisca, porque essa auto delação – pelo menos no seu imaginário – pode ter consequências ao nível de pequenos privilégios, sejam as saídas precárias, seja algum tratamento especial que possam ter no interior da prisão – e, portanto, preferem pura e simplesmente não se auto referir como usuários de drogas injetáveis e continuam, naturalmente, tendo acesso às seringas pelas vias que utilizavam antes e que passam, em muitos casos, pelo compartilhamento de seringas.

Apesar disso, também, através dos estudos que vamos realizando na área prisional – em colaboração com a Direção Geral da Reinserção e Serviços Prisionais – a realidade do uso de droga por via injetável tem vindo a baixar muito significativamente ao longo dos anos.

 

Que papel o SICAD desempenha no sistema penitenciário português?

JG: O modelo organizativo das respostas do Ministério da Saúde dirigidas a esta temática é, hoje, diferente do que era há uns anos atrás. Nós tínhamos o IDT – o Instituto da Droga e da Toxicodependência – que tinha a capacidade de pensar e harmonizar as políticas com vários Ministérios e depois de as implementar na vertente da Saúde, diretamente no terreno, através de unidades próprias, de intervenção local, que articulavam muito intimamente com os Serviços Prisionais. 

Hoje, o desenho é diferente: o SICAD é uma Direção-Geral – que continua tendo esta capacidade de pensar e de definir as políticas – mas não as executa: na prática são as mesmas unidades, mas que passaram para a dependência das Administrações Regionais de Saúde. E isto, queiramos ou não, causou algumas entropias neste funcionamento.

Portanto, esta articulação [com os Serviços Prisionais] – que antes era muito fluida e muito direta – passou a ser mais mediada, a ter mais patamares e, na prática, perdeu-se a agilidade das respostas. No fundo, o SICAD, propriamente, trabalha diretamente com os Serviços Prisionais na definição de linhas de ação e de intervenção, mas, de alguma forma, este modelo organizativo que temos hoje dificulta o trabalho estreito que tínhamos anteriormente. Por isso, estamos, neste momento, reconsiderando estas estruturas, no seio de um grupo de trabalho, mediado pelo Ministro da Saúde, para avaliar os prós e contras deste modelo encontrado pelo Governo anterior. 

JT: Portugal tem sido internacionalmente reconhecido pela comunidade acadêmica, pela imprensa e pelas organizações internacionais e esteve recentemente também na ONU apresentando o resultado destes anos.

Este reconhecimento internacional significou algum reforço nacional do apoio para a implementação de novas medidas?

JG: Bom, eu penso que este reconhecimento internacional foi, e tem constituído, no fundo, um reforço positivo para que prossigamos na linha que foi consagrada pela estratégia de 1999, ou seja, uma abordagem muito baseada na Saúde e na área Social.

Na ONU, nessa sessão especial da Assembleia Geral das Nações Unidas, que aconteceu em abril do ano passado, houve, por exemplo, um dado muito significativo: o órgão internacional de controle de estupefacientes – que foi inicialmente muito crítico em relação ao caminho encontrado por Portugal – logo ali em 2001, 2002 – veio alguns anos depois reconhecer que, apesar de Portugal ter descriminalizado, os resultados de forma geral parecem positivos – e em 2016, o presidente do Órgão fez uma apresentação mostrando Portugal como um exemplo de boas práticas dentro do espírito dos tratados das Nações Unidas.

Portanto foi um caminho que demorou alguns anos, mas hoje há um reconhecimento desta opção, inclusive pelas estruturas da ONU. E isto, obviamente, facilita para muitos outros países que, de alguma forma, se sentiam inclinados a acompanhar-nos nesta caminhada, mas que se sentiam ainda retraídos pelas críticas da ONU, a estarem, agora, muito mais à vontade para o fazer. E isto parece-nos que é um contributo inestimável que Portugal, no final das contas, deu ao mundo, abrindo novos caminhos para a abordagem destes temas. 

 

JT: Nós conhecemos o impacto que a chamada ‘guerra às drogas’ tiveram no sistema de Justiça Criminal estadunidense e temos relatos na imprensa dos atropelos aos direitos fundamentais e ao Estado de Direito por exemplo nas Filipinas.

Que países é que lhe parece que poderiam se beneficiar mais em adotar este modelo português?

JG: Eu penso que todos eles poderiam se beneficiar com este movimento. Ao nível do espaço europeu, por exemplo, tem sido notório – não propriamente e expressamente a descriminalização – mas o foco das abordagens nas áreas social e da saúde tem vindo a acontecer paulatinamente. Alguns países também já deram o passo da descriminalização – a República Checa é um dos exemplos, embora pareça ainda não haver grandes impactos na população prisional.

Agora, o que eu penso é que há países que estão avançando um pouco em direção a um novo paradigma. Não já no paradigma proibicionista em que, apesar de tudo, nós ainda nos movemos, mas para um paradigma regulador. E, na linha da frente desse paradigma estão os países, por exemplo, da América Latina ou alguns deles, como o Uruguai e outros.

São países particularmente afetados pela violência conexa com o tráfico, a produção, com o mercado das drogas. Eu diria que, enquanto na Europa, por exemplo, a droga mata porque as pessoas usam e ocorrem overdoses, na América Latina a droga mata sobretudo porque as pessoas andam aos tiros umas às outras, as facções, as polícias e as gangues, os exércitos. Enfim, diria que a droga mata muito mais pelas balas do que propriamente pela via do consumo.

Por outro lado, este é um novo caminho que está sendo trilhado. Alguns estados dos Estados Unidos estão também nesta nova experiência de regulação – eu penso que devemos estar atentos, acompanhar, com muito cuidado, a evolução dos indicadores nesses países e nesses estados e perceber se, de fato, tal como nós próprios constituímos um laboratório social – temos uma experiência que podemos considerar globalmente bem-sucedida. Vamos ver o que é que acontece com essas experiências.

A nossa grande responsabilidade julgo ser ajudar os países que ficaram para trás. As Filipinas, a Indonésia, enfim, alguns países dessa zona do mundo, onde ainda há, por exemplo, pena de morte aplicada a crimes relacionados a drogas. Tentar ajudar esses países a avançar mais à frente, digamos assim, e a adotarem políticas que respeitem mais os direitos humanos – isto como um primeiro passo. Espero, depois, se possa vir a seguir a descriminalização do consumo, mas, por agora, se houvesse esses progressos, nestas abordagens violentíssimas que ainda acontecem, já seria francamente bom.

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Dr. João Goulão, é médico, Diretor-Geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) e um dos principais embaixadores da descriminalização do consumo de drogas em Portugal.

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