As desafiadoras variáveis da ameaça terrorista global

// Entrevista: Michèle Coninsx

Secretária-geral Adjunta das Nações Unidas, Diretora Executiva do Comitê Antiterrorismo (CTED), Nações Unidas

 

Quais são as últimas tendências da ameaça terrorista global? E quais são as áreas de intervenção prioritárias do CTED para enfrentá-las? 

MC: A ameaça terrorista é global, por isso afeta quase todos os Estados-Membros das Nações Unidas. Com relação a uma questão particular – o fenômeno dos combatentes terroristas estrangeiros (FTF), que surgiu em 2013-2014 – atualmente enfrentamos desafios muito específicos colocados pelo retorno e realocação desses combatentes e seus familiares.

Este é um problema global, tem muitas consequências e certamente continuará sendo uma preocupação em um futuro previsível. Em seguida, temos também o ISIL (Da’esh) e a Al-Qaida, que continuam ativos.

Quando apresentamos o oitavo relatório do Secretário-Geral, em fevereiro de 2019, notamos que, embora Da’esh tivesse sido derrotado militarmente e perdido grande parte de seu território, ainda assim permanecia sendo um risco e uma ameaça.

O relatório observou que o ISIL estava se transformando em uma rede secreta, com um comando centralizado, e fazendo uso significativo de tecnologias de informação e comunicação (TIC), incluindo mídias sociais. Além disso, recebeu os recursos financeiros necessários para realizar ataques terroristas em larga escala.

Usar as TIC é algo que o ISIL tem feito ao longo dos anos para inspirar e ajudar os indivíduos a realizar ataques.

Diferentes grupos terroristas estão ativos em regiões específicas e representam desafios específicos. Boko Haram e Al-Shabaab são muito ativos no Sahel e na África Oriental, respectivamente. No geral, trata-se de uma ameaça muito complexa e alguns grupos terroristas estabeleceram ligações significativas com outros grupos armados, criminosos ou terroristas.

A situação de segurança em Burkina Faso agravou-se muito rapidamente nos últimos meses e agora ameaça mover-se para o sul. Como a ameaça terrorista é de natureza global, devemos enfrentá-la em todos os níveis: local, nacional, regional e internacional.

 

JT: A ameaça terrorista global evoluiu significativamente na última década, tanto em escala quanto em complexidade. O atual ambiente terrorista é marcado, em particular, pelo abuso cada vez mais sofisticado das TIC, maior mobilidade terrorista, terrorismo caseiro e ações de terroristas agindo sozinhos ou em pequenos grupos. (Fonte:  Comitê de Combate ao Terrorismo da ONU, página da Aplicação da Lei).

Como o CTED está ajudando os Estados-Membros a prevenir e combater o terrorismo?

MC: O CTED trabalha sob a orientação e política do Comitê Antiterrorismo (CTC), que é um órgão subsidiário do Conselho de Segurança das Nações Unidas. O CTC foi instituído pela resolução 1373 (2001) do Conselho de Segurança na sequência dos ataques de “11 de setembro”, que chocaram o mundo inteiro. O CTED trabalha em todas as questões relacionadas à paz e segurança internacionais.

Em dezembro de 2017, seu mandato foi significativamente ampliado e reforçado pelo Conselho. Temos uma tarefa tripla, que abrange avaliação, análise e provisão de conhecimento. Nossa principal tarefa é avaliar. Realizamos visitas de avaliação aos Estados-Membros em nome do CTC para monitorar, facilitar e promover seus esforços para implementar as resoluções relacionadas ao combate ao terrorismo do Conselho.

Como parte desse processo de avaliação, fazemos recomendações aos países que visitamos, visando fortalecer sua capacidade de combater o terrorismo de acordo com as resoluções relevantes do Conselho e as normas internacionais. Este processo também ajuda os Estados a avaliar suas medidas legais, institucionais e práticas contra o terrorismo frente às normas internacionais relevantes e a priorizar suas ações de acompanhamento.

Nossas avaliações também nos dão uma oportunidade para identificarmos boas práticas a serem compartilhadas com outros Estados-Membros, em cooperação com nossos parceiros implementadores. Uma vez concluída a nossa avaliação, cabe então aos nossos aliados – como o Escritório de Combate ao Terrorismo das Nações Unidas (OCT) e o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) – oferecer a assistência técnica necessária pelos Estados para implementar as recomendações.

Analisamos tendências antiterrorismo, desenvolvimentos, bem como práticas boas e eficazes. Este trabalho baseia-se, em parte, em nossos achados nos Estados avaliados, cujas boas práticas devem ser exportadas para outros lugares o mais rapidamente possível.

Também trabalhamos através de nossa Rede Global de Investigação (criada em 2015), que inclui mais de 100 instituições, centros de pesquisa e grupos de reflexões que trabalham conosco para aumentar a conscientização sobre novos e emergentes desenvolvimentos, tendências e soluções do terrorismo.

Essa cooperação nos ajuda a entender quais são os principais problemas e tendências atuais e também nos ajuda a garantir que práticas boas e eficazes sejam efetivamente promovidas e replicadas.

E, como mencionei, nossa terceira tarefa é oferecer conhecimento especializado antiterrorismo, quando e sempre que possível.

 


Michèle Coninsx e António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas, quando foi empossada como Secretária-geral Adjunta (novembro de 2017)


JT: O Conselho de Segurança tem repetidamente afirmado a necessidade de que as medidas antiterroristas devem ser coordenadas e de alcance global. No entanto, em muitas regiões, a cooperação transnacional de aplicação da lei parece estar em fase de desenvolvimento. Além disso, embora os Estados estejam cada vez mais integrando inteligência nas operações de aplicação da lei, ainda há a necessidade de desenvolver mecanismos eficazes para a transferência de inteligência crítica para as organizações de aplicação da lei.

Qual é o papel do CTED na promoção e implementação de cooperação transfronteiriça eficaz e no compartilhamento de inteligência?

MC: Diálogo aberto e construtivo, intercâmbio aprimorado de informações e cooperação internacional e regional eficaz são todos fundamentais para superar a ameaça terrorista global.

Em sua resolução 2322 (2016), o Conselho de Segurança busca reforçar a cooperação internacional judicial e policial a fim de fortalecer a resposta internacional ao terrorismo. A resolução concede um papel central ao CTC e ao CTED na identificação de lacunas e tendências na cooperação internacional entre os Estados membros, facilitando a capacitação e trabalhando com parceiros-chave para promover a implementação.

Uma das áreas em que a cooperação transfronteiriça aprimorada é fundamental é a coleta de dados digitais e evidências para levar os terroristas à justiça. O Conselho observou o aumento substancial do volume de solicitações de dados digitais. Ciente dos desafios enfrentados pelos Estados em seus esforços para obter provas eletrônicas dos Provedores de Serviços de Internet, o CTED está atualmente engajada em uma iniciativa global, implementada em conjunto com o UNODC e a Associação Internacional de Promotores, com o objetivo de fortalecer a capacidade das autoridades centrais, promotores e investigadores de preservar e obter evidências eletrônicas no contexto de investigações antiterrorismo transfronteiriças.

Um dos principais resultados do projeto é o recém-publicado Guia Prático para Solicitação de Evidências Eletrônicas Além das Fronteiras, que foi desenvolvido através de um processo de consulta que envolveu várias partes interessadas, incluindo entidades do setor privado, e está sendo usado para capacitar funcionários em todo o mundo.

 


Segundo Diálogo de Líderes da ONU-UE sobre combate ao terrorismo (abril de 2019)

Os Estados enfrentam desafios crescentes em seus esforços para avaliar adequadamente os riscos representados e as necessidades de indivíduos suspeitos ou condenados por crimes de terrorismo.

JT: O CTED também trabalha para ajudar as organizações de aplicação da lei a desenvolver contramedidas e estratégias operacionais eficazes.

Quais medidas e estratégias o CTED recomenda aos Estados em relação aos terroristas suspeitos e presos (especialmente dado o risco de radicalização e os desafios encontrados na tentativa de garantir sua ressocialização e reintegração)?

MC: Os Estados-Membros da ONU estão cada vez mais preocupados com os potenciais riscos colocados pela radicalização na prisão, particularmente no contexto do retorno ou realocação de combatentes terroristas estrangeiros que entram no sistema de justiça criminal.

Os Estados enfrentam desafios crescentes em seus esforços para avaliar adequadamente os riscos colocados e as necessidades de indivíduos suspeitos ou condenados por crimes de terrorismo, apoiando sua ressocialização e reintegração, e impedindo uma radicalização adicional ao terrorismo entre a população prisional geral.

Enfrentar esses desafios, muitas vezes no contexto de sistemas prisionais superlotados e sem recursos, apresenta novas e complexas demandas aos sistemas penitenciários nacionais. Como observado pelo Conselho em sua resolução 2396 (2017), as prisões são potenciais incubadoras para radicalização ao terrorismo e recrutamento terrorista, mas também podem servir para ressocializar e reintegrar presos, quando apropriado.

O Adendo aos princípios norteadores sobre os combatentes terroristas estrangeiros (2018), adotado pelo CTC em dezembro do ano passado, oferece orientações úteis para os Estados-Membros nessas áreas. O documento destaca a necessidade de avaliar adequadamente os riscos e necessidades dos presos, de colocar em prática uma variedade de programas adequados ao gênero e a idade dos detentos para apoiar seu desengajamento, ressocialização e reintegração, além de estabelecer medidas pós-libertação.

Também destaca a importância de envolver uma ampla variedade de atores nesses esforços, incluindo prestadores de serviços locais, sociedade civil e famílias, conforme apropriado. Salienta que os Estados devem assegurar condições humanas e dignas de detenção e estabelecer mecanismos eficazes de supervisão, levando em consideração, conforme apropriado, as Regras de Nelson Mandela da ONU.

Em julho de 2018, o CTED identificou uma série de abordagens tomadas pelos Estados para gerenciar os riscos da radicalização na prisão. E em nosso recente Alerta de Tendências sobre “Preocupação com potenciais riscos colocados pela próxima liberação de combatentes terroristas estrangeiros presos”, destacamos a falta de evidências quanto à eficácia das estratégias de ressocialização e reintegração existentes.

Não existe uma abordagem única para todos os casos. É essencial levar em consideração o contexto local, bem como as distintas necessidades e circunstâncias de cada pessoa, incluindo mulheres e crianças. Neste sentido, gostaria de salientar que o CTED está atualmente envolvida em um projeto conjunto da ONU para ajudar três Estados a projetar e implementar respostas personalizadas.

O CTED também continuará se envolvendo nessas questões com os Estados-Membros, outras entidades das Nações Unidas, organizações internacionais e regionais, a sociedade civil e a comunidade de pesquisa para identificar tendências e necessidades de assistência técnica e melhorar o compartilhamento de informações sobre as boas práticas.

[Sobre a próxima libertação de combatentes terroristas estrangeiros presos] Destacamos a falta de evidências quanto à eficácia das estratégias de ressocialização e reintegração existentes.

 

 
A secretária-geral adjunta Coninsx informou o Conselho de Segurança sobre o 8º relatório do Secretário-Geral sobre “A ameaça representada pelo ISIL (Da’esh) à paz e segurança internacionais e o alcance dos esforços da ONU no apoio aos Estados-Membros no combate à ameaça” (11 de fevereiro de 2019)

 

JT: Em julho de 2015, o CTC realizou uma reunião especial sobre a contenção do fluxo de combatentes terroristas estrangeiros, que resultou em um acordo sobre um conjunto inicial de diretrizes para os Estados-Membros (os “Princípios Orientadores de Madri”). Em dezembro de 2018, o CTC adotou o “Adendo aos princípios orientadores sobre combatentes terroristas estrangeiros”. 

Que orientação o Adendo oferece em relação aos sistemas de justiça?

MC: O primeiro conjunto de 35 Princípios Orientadores foi acordado em 2015. A necessidade era conter o fluxo de combatentes para as zonas de conflito. Mas alguns anos atrás, percebemos que tínhamos um problema inverso: como lidar com aqueles que estavam voltando ou se mudando das zonas de conflito, com ou sem intenção terrorista. O Adendo aborda uma série de questões relacionadas a isso.

Com relação aos sistemas de justiça, o documento orienta a atualização da legislação nacional para tratar de atos preparatórios e incipientes de combatentes terroristas estrangeiro; garantir que medidas adequadas sejam tomadas em casos envolvendo crianças; assegurar que as autoridades competentes sejam capazes de lidar com informações e evidências coletadas por meio de técnicas especiais de investigação; garantir a coleta de dados digitais e evidências e inteligência financeira; desenvolver e implementar estratégias e protocolos de processo, ressocialização e reintegração, inclusive para casos envolvendo crianças; abordar o risco de recrutamento de radicalização terrorista nas prisões e garantir que as prisões sejam locais de ressocialização e reintegração; e, finalmente, fortalecer a cooperação internacional para prevenir, investigar e processar atos terroristas.

O Adendo também oferece orientações para garantir que novas ferramentas e estratégias destinadas a melhorar a proteção das fronteiras e o compartilhamento de informações sejam utilizados de forma a proteger e promover totalmente o Estado de Direito e os direitos humanos. Por exemplo, recomenda que a supervisão e reparação judicial sejam fornecidas nos contextos de API (Advance Passenger Information, o sistema eletrônico de intercâmbio de dados, estabelecido pela Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA) e PNR (Passenger Name Records, registro no banco de dados de um sistema de reservas por computador que contém o itinerário de um passageiro), identificação biométrica e listas de observação e bancos de dados. Também recomenda que sejam colocadas em prática normativas e garantias especiais em situações envolvendo crianças.

 

JT:O Adendo também busca garantir que todos os países tenham as ferramentas certas para identificar a ameaça representada pelos combatentes terroristas estrangeiros, inclusive usando novas técnicas. 

Como ele aborda os problemas relacionados de privacidade e proteção de dados? Como se protege as crianças?

MC: O Adendo inclui um foco especial na proteção de crianças e mulheres. Quando falamos de mulheres, tendemos a falar delas como vítimas. No entanto, elas podem desempenhar uma série de outras funções, seja como apoiadoras, facilitadoras, incitadoras ou recrutadoras. Elas também podem desempenhar um papel como potenciais agentes para a prevenção do terrorismo.

No caso das crianças, a primeira preocupação é desenvolver medidas de proteção de longo prazo, sob medida. Mas isso não pode excluir o fato de que as crianças também podem estar envolvidas em atividades terroristas. Como gerenciar esse risco e lidar com essas crianças em sua própria jurisdição é uma questão muito complexa.

Todas as medidas tomadas pelos Estados para a acusação, repatriação, ressocialização e reintegração de mulheres e crianças devem estar em conformidade com o direito internacional e os direitos humanos, bem como as normas internacionais relevantes e as resoluções da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança.

O Adendo também aborda a proteção de infraestruturas críticas e alvos “fáceis” contra ataques terroristas. Esta é uma questão urgente, como demonstrado pelos recentes ataques de Christchurch e Sri Lanka.

 

Quais são suas expectativas em relação à evolução da ameaça terrorista a curto e médio prazo?

MC: O problema do retorno e realocação de combatentes terroristas estrangeiros não será resolvido no curto prazo, em parte devido à sua extensão global. Esses combatentes viajaram para as zonas de conflito de mais de 100 Estados. Então isso é algo que teremos que continuar a acompanhar muito de perto. Além disso, o ISIL e a Al-Qaeda continuarão ativos, talvez de formas diferentes. Também continuamos a ver mudanças nos métodos operacionais usados pelo Boko Haram e al-Shabaab.

Outra grande preocupação é o uso extensivo das TIC por parte dos terroristas. E também recentemente alertamos a comunidade para o potencial uso terrorista de sistemas de aeronaves não tripuladas (ou “drones”).

Todos esses desafios exigem que não sejamos apenas ativos e rapidamente reativos, mas também proativos. Devemos ter nosso radar constantemente “ligado”, por assim dizer. Muito foi alcançado e muitas medidas continuam a ser tomadas. No entanto, ainda há muito a ser feito. Não há espaço para ingenuidade ou complacência. Devemos ficar alertas.

//

Michèle Coninsx assumiu suas funções atuais nas Nações Unidas, ao nível de secretária-geral adjunta, em novembro de 2017. Antes de assumir esta posição, a Sra. Coninsx havia atuado como Presidenta da Eurojust – organização da União Europeia encarregada de abordar a cooperação judicial em matéria penal – entre 2012 e 2017, tendo anteriormente atuado como vice-presidenta por cinco anos. Antes de ingressar na Eurojust, havia trabalhado como promotora federal na Bélgica, lidando com terrorismo e crime organizado. Coninsx possui dois mestrados – um em Direito e outro em Criminologia – e detém o título de Membro Honorário de Direito e Criminologia na Vrije Universiteit, em Bruxelas.

 

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