Em defesa da equidade, igualdade e justiça: “Uma maratona que vale a pena correr” 

Entrevista

Norman L. Reimer

CEO Global,  Fair Trials

Fair Trials é uma organização guardiã da justiça penal no mundo, uma ONG que luta por equidade, igualdade e justiça. Sua equipe de especialistas independentes expõe ameaças à justiça através de pesquisa independente e identifica mudanças práticas para corrigi-las.

A ONG defende mudanças nas políticas, apoio a litígios estratégicos, políticas de reforma e estabelecimento de padrões e boas práticas internacionais. Além disso, apoia movimentos locais para a reforma da justiça e constrói parcerias com advogados, ativistas, acadêmicos e outras ONGs.

Em relação à prisão provisória, a Fair Trials defende ativamente a aplicação desta medida como último recurso e que as pessoas acusadas de um crime sejam detidas pelo menor tempo possível.

 JT: Fair Trials tem um histórico de 30 anos de luta contra a injustiça sistêmica em processos criminais.  

Como e por que a Fair Trials foi criada? Como os desafios enfrentados pela missão da organização evoluíram ao longo do tempo?

NR:A Fair Trials foi fundada para ajudar cidadãos britânicos que enfrentavam processos criminais abusivos em outros países. Entretanto, ao longo dos anos tornou-se uma voz global a favor da reforma da justiça criminal. Com escritórios em Bruxelas, Londres, Reino Unido e presença emergente na América Latina, a Fair Trials se tornou uma ferramenta comparativa única na reforma da justiça criminal.

Embora praticamente todos os sistemas jurídicos criminais sejam imperfeitos em alguns aspectos, os sistemas em um país ou região oferecem direitos, proteções e protocolos que podem melhorar sistemas em outros países ou regiões. A capacidade de promover uma reforma melhora imensuravelmente quando um problema pode ser analisado com uma nova perspectiva. 

Três fatores chave contribuíram significativamente para a evolução do trabalho da Fair Trials. Em primeiro lugar, houve uma adoção global sem precedentes da criminalização e acusação como solução política preferida para abordar todos os tipos de conduta pessoal, social e econômica de pessoas menos favorecidas

Agir sob a ilusão de que todos os males sociais podem ser resolvidos por meio da criação de novos crimes ou aumentando as penas para crimes existentes, levou a uma das maiores falhas de políticas públicas de todos os tempos. Com um grande custo econômico e social, as sociedades desperdiçaram recursos preciosos, arruinaram vidas individuais, quebraram famílias e destruíram comunidades.  

O peso da ação penal, muitas vezes somada à prisão provisória e eventual imposição de uma pena privativa de liberdade, é o meio mais desumano e menos eficaz de lidar com desafios que devem ser tratados de outras formas, como cuidados médicos ou de saúde mental, educação, redução da pobreza e soluções de habitação. 

Abordar a criminalização e o encarceramento excessivos e os abusos de poder do governo são agora objetivos fundamentais da Fair Trials. 

Em segundo lugar, a criminalização e a prisão provisória em excesso levaram à sobrecarga dos sistemas judiciais. A resposta tem sido recorrer ao aceleramento dos procedimentos, incluindo vários mecanismos de renúncia ao julgamento e delação premiada. Isso resulta em uma justiça mecanizada, na qual até mesmo pessoas inocentes são induzidas a renunciar a direitos valiosos, como o direito de contestar provas ilegais ou de montar uma defesa. Essas renúncias comprometem a fiscalização judicial crítica da conduta dos responsáveis pela aplicação da lei. A Fair Trials busca expor as falhas desses procedimentos sumários e trabalha para restaurar os direitos básicos de julgamento. 

Em terceiro lugar, o processo penal é um motor de opressão para determinados grupos raciais e outros grupos marginalizados. O tratamento desigual é o cunho da maioria dos sistemas em quase todos os países, e é evidente em cada um de seus aspectos e fases. 

Pessoas de minorias raciais e comunidades marginalizadas são mais propensas a serem submetidas a uma abordagem policial, encarceradas antes do julgamento, submetidas a práticas coercitivas, consideradas culpadas e a receber sentenças mais severas. Em nosso ativismo buscamos identificar, expor e remediar as práticas, políticas e procedimentos que causam tratamento desigual e perpetuam o racismo ou a discriminação de qualquer tipo. 

Agir sob a ilusão de que todos os males sociais podem ser resolvidos por meio da criação de novos crimes ou aumentando as penas para crimes existentes, levou a uma das maiores falhas de políticas públicas de todos os tempos

"A Measure of Last Resort? Detention without trial in the EU" é um curta-metragem da Fair Trials que destaca alguns dos problemas de detenção sem julgamento.

JT: Uma das bandeiras da Fair Trials é a conscientização sobre as altas taxas de detentos aguardando julgamento e as implicações de restringir os direitos à liberdade e à presunção de inocência.

Qual foi o foco da Fair Trials em relação a esta questão? Quão longe estamos da implementação generalizada da prisão provisória apenas como último recurso? 

NR: Tal como mostrou o relatório de 2016 da Fair Trials A Measure of Last Resort? The practice of pretrial detention decision-making in the EU (“Uma medida de último recurso? A prática do processo de decisão de prisão provisória na União Europeia”) – a prisão provisória  é usada rotineiramente em países da Europa e contribui para uma crise persistente nas prisões europeias. 

Isto continua sendo um grande problema em toda a União Europeia (EU). Uma pesquisa da Fair Trials publicada no ano de 2021 mostrou que, em 2020, as taxas de prisão provisória aumentaram entre os Estados-membros da UE, apesar dos graves riscos à saúde originados pela detenção de pessoas durante a pandemia da COVID-19. Isso contribui não só para a superlotação e deterioração das condições prisionais, mas também compromete o Estado de Direito em toda a região. A Fair Trials respondeu com um roteiro abrangente, delineando as ações que a UE deve tomar para enfrentar esta crise. 

No Reino Unido, a Fair Trials expôs que milhares de pessoas estavam sendo mantidas em prisão provisória por anos devido a cortes financeiros de longo prazo, que se intensificaram por conta da pandemia.  

Em um relatório, Locked up on lockdown – life on remand during the pandemic (Preso em confinamento – a vida em prisão provisória durante a pandemia), publicamos mais de 20 histórias de pessoas mantidas em prisão provisória na Inglaterra e no País de Gales. Cada uma conta a experiência comovente de privação e desumanidade infligida a uma pessoa presumivelmente inocente.  

Um deles descreveu as condições que enfrentaram: “Meia hora de exercícios em um quintal imundo cheio de restos de alimentos, resíduos, urina e fezes jogadas das janelas das pessoas. Infestações de ratos e pombos. Dez minutos para tomar banho, que não ocorre todos os dias, pois acontecem ao mesmo tempo que o período para exercícios, então você tem que escolher se deve limpar sua cela, tomar banho ou se exercitar.” 

O peso da ação penal, muitas vezes somada à prisão provisória e eventual imposição de uma pena privativa de liberdade, é o meio mais desumano e menos eficaz de lidar com desafios que devem ser tratados de outras formas, como cuidados médicos ou de saúde mental, educação, redução da pobreza e soluções de habitação.

 JT: A Fair Trials já discutiu anteriormente a falta de adoção de medidas alternativas ao Mandado de Prisão Europeu (EAW, por sua sigla em inglês). Existem decisões europeias, como a Decisão-Quadro 2009/829/JHA, que buscam aumentar a cooperação e o reconhecimento mútuo para promover alternativas à prisão provisória.

Qual é a relação da Fair Trials com as diretrizes e recomendações que entidades como a Comissão Europeia ou o Conselho da Europa emitem sobre a prisão provisória  

NR: A Fair Trial foi fundamental na criação de seis diretivas que colocaram os direitos em processos penais como leis diretamente aplicáveis em todos os Estados-membros da UE. Tais diretivas abrangem: serviços de interpretação e tradução; direito à informação; acesso a um advogado; presunção de inocência; direitos das crianças; e assistência jurídica. Esses direitos são fundamentais para ajudar as pessoas acusadas a preparar sua defesa e a oporem-se a decisões de prisão provisória.  

Como cada uma dessas diretrizes se concentra, pelo menos em parte, em proteções processuais durante o período pré-julgamento, elas têm o potencial de melhorar a administração da prisão provisória e restringir seu uso excessivo. No entanto, a diretiva de presunção da inocência, ao mesmo tempo em que observa a “relação evidente” entre a presunção de inocência e o direito à liberdade provisória enquanto aguarda julgamento, exclui explicitamente a prisão provisória de seu âmbito, uma vez que o tema foi tratado por outras iniciativas.  

A Fair Trials trabalha com a rede LEAP para monitorar a implementação dessas diretivas, ativamente documentando e compartilhando com as partes interessadas da UE as lacunas entre a lei e a prática, as quais resultam na restrição do acesso a esses direitos ou que estes tenham substância.  

Desenvolvemos um documento chamado Roteiro de Prisão Provisória , que proporciona um quadro para forte defesa de direitos na Europa. No entanto, as evidências mostram disparidades por parte daqueles que efetivam esses direitos processuais concedidos pela UE.  

Muitas vezes, esses direitos são negados a pessoas de minorias raciais e étnicas, devido ao racismo estrutural. Elas têm acesso negado a um advogado, ou recebem representação de má qualidade. Por exemplo, na Bulgária, pesquisadores encontraram evidências de que indivíduos de etnia cigana detidos não puderam contatar um advogado enquanto estavam sob custódia policial, apesar de seu direito de ter um advogado sob a lei da UE. Na Hungria, um estudo demonstrou que membros da etnia cigana são mais propensos a depender de advogados de defesa nomeados pelas próprias autoridades investigadoras.

A pesquisa mostrou como os advogados nomeados geralmente são mal remunerados e, portanto, proporcionam uma baixa qualidade de defesa. Ambos os estudos sugerem que os direitos concedidos pela UE não se efetivam por completo, pois o acesso ao apoio jurídico não é garantido, ou quando ocorre, é de má qualidade.  

O aumento das taxas de encarceramento mostra que os direitos processuais por si só não são capazes de impedir a prisão provisória, e nosso foco deve ser a redução do recurso à criminalização em primeiro lugar. 

A Fair Trials apoia uma proibição completa do uso de Inteligência Artificial e Tomada de Decisões Automatizada para criar perfis, prever ou avaliar qualquer probabilidade de comportamento criminoso futuro

O vídeo da Fair Trials "A Measure of Last Resort? Detention without trial in the EU" revela testemunhos em primeira pessoa da Polônia, Romênia e Itália sobre a prisão provisória.

 JT: A Fair Trials está criando um índice que compara os sistemas de justiça penal de diferentes países sobre sua equidade e conformidade com as normas internacionais de direitos humanos.

Quais são os objetivos deste índice? Que papel esse instrumento pode desempenhar quando colocado em prática? 

NR: Há muitas evidências de que os sistemas de justiça penal ao redor do mundo não funcionam bem. Mas não sabemos e não podemos ter certeza de como intervir nesses sistemas sem dados ou métricas que mostram exatamente como funcionam os processos judiciais penais. Que direitos são respeitados? Quais são ignorados? Quando um acusado tem acesso a um advogado? O advogado tem tempo e recursos para efetivamente representar o cliente? Quem fica preso em prisão provisória e por quanto tempo? Quem é solto? Que sentença foi oferecida antes de um julgamento e como isso se compara à sentença imposta após um julgamento? Por muito tempo, os sistemas de justiça penal operavam em uma nuvem de ofuscação sem dados. 

O Projeto Índice foi idealizado para suprir essa lacuna de conhecimento e trazer transparência à justiça penal. O objetivo é estabelecer um referencial dos sistemas jurídicos criminais para que haja consciência pública da injustiça sistêmica e uma base objetiva para promover a reforma. De fato, pode acontecer de haver falta de dados. Mas mesmo a documentação dessa lacuna é vital para promover a reforma. A falta de dados confirma a falta de transparência. E onde não há transparência não há responsabilização. Em outros setores onde as vidas humanas estão em risco, como saúde ou transporte, os dados estão disponíveis.  

A criação do Índice internacional da Fair Trials oferece a esperança de criar uma classificação para medir o desempenho dos sistemas de justiça penal em termos de sua adesão às normas internacionais de direitos humanos. O projeto tem o potencial de revolucionar a forma como avaliamos o funcionamento desses sistemas e possibilita fundamentar as propostas de reformas. 

 JT: A Fair Trials é vocal na condenação de sistemas de inteligência artificial (IA) preditivos e de perfilamento na aplicação da lei e justiça penal. A organização faz parte de uma declaração conjunta da Sociedade Civil pedindo à UE que proíba esses sistemas de IA.

O que está por trás de suas objeções sobre o uso de inteligência artificial na área da justiça penal? Quais são suas recomendações para previsões baseadas em dados, criação de perfis e avaliações de risco?  

NR: A Fair Trials se opõe ao uso de inteligência artificial (IA) e à tomada de decisões automatizada (TDA) por duas razões fundamentais. Em primeiro lugar, decisões que podem mudar profundamente uma vida humana devem ser tomadas pelos seres humanos. Em segundo lugar, a pesquisa confirma que os sistemas de IA e TDA reforçam a discriminação e perpetuam vieses pré-existentes contra grupos que historicamente sofreram maior pressão policial e foram detidos e presos de forma desproporcional.  

Deve haver rigorosas proteções legais que regem outros usos da IA na justiça penal e transparência sobre como ela é projetada, quais dados usa e como ela é processada. Qualquer pessoa cuja vida possa ser impactada pela IA ou TDA deve ter a capacidade de entender, examinar e contestar seu uso e tribunais imparciais devem ser capazes de avaliar esse impacto.  

A Fair Trials apoia uma proibição completa do uso de IA e TDA para criar perfis, prever ou avaliar qualquer probabilidade de comportamento criminoso futuro. Pedimos que essa proibição seja incluída na Lei de Inteligência Artificial, que está sendo debatida pelo Parlamento Europeu.  

Sobre a criação de um índice do sistemas de justiça criminal: o projeto tem o potencial de revolucionar a forma como avaliamos o funcionamento desses sistemas e possibilita fundamentar as propostas de reformas.

Quais são os desafios emergentes na justiça penal global? E até que ponto a Fair Trials pode  contribuir para superá-los? 

NR: Bem, certamente o uso da IA é um desafio emergente. Em segundo lugar, um desafio constante é enfrentar, expor e eliminar tanto o racismo sistêmico quanto o viés implícito. A sociedade não pode mais tolerar o uso do direito penal como mecanismo para perpetuar a opressão de classes inteiras de pessoas.  

De forma mais geral, devemos encolher os sistemas de justiça criminal. Precisamos superar o vício em processos criminais como um meio de tentar regular o comportamento. Muitos, não todos, mas muitos dos piores aspectos dos sistemas globais de justiça penal podem ser amenizados se o sistema não estivesse tão sobrecarregado com prisões e processos que são completamente desnecessários para resolver o problema considerado. Além disso, mesmo naqueles, relativamente poucos, casos que constituem crimes clássicos, como roubar ou ferir fisicamente outra pessoa, a Fair Trials apoia reformas que, sempre que possível, substituam o julgamento e a punição pela justiça restaurativa.  

São objetivos desafiantes. Eles não virão facilmente ou sem luta. Mas a reforma da justiça criminal não é uma corrida, é uma maratona. É, no entanto, uma maratona que vale a pena correr. 

Norman L. Reimer

CEO Global, Fair Trials

Norman L. Reimer é o CEO global da Fair Trials. Antes de ingressar na Fair Trials, ele foi diretor executivo da Associação Nacional de Advogados de Defesa Criminal, a organização preeminente nos EUA dedicada a melhorar a capacidade dos advogados penalistas para proteger direitos fundamentais e promover reformas que contribuam no avanço para um sistema jurídico penal justo, racional, humano e não discriminatório. Antes disso, Reimer passou as duas primeiras décadas de sua carreira atuando com orgulho como advogado de defesa representando clientes de todas as origens e situações. 

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