Ever Martinez Ministro Justicia Paraguay

Estabelecendo as bases para um novo modelo penitenciário no Paraguai

// Entrevista: Ever Martínez

Ministro da Justiça do Paraguai

Quais são os principais desafios enfrentados pelo sistema de justiça paraguaio em geral e no sistema prisional em particular?

EMF: Nossa Constituição atual tem 26 anos. Até o momento, há um consenso geral sobre a necessidade de realizar mudanças substanciais, para as quais é necessária uma Convenção Constituinte Nacional. Em 15 de agosto (2018), tomará posse um novo governo, que também manifestou publicamente essa necessidade. 

Esse consenso abrange níveis mais amplos, mesmo quando falamos da demanda por mudanças necessárias no sistema judiciário. As mudanças mais importantes acordadas têm a ver com a independência judicial – a despolitização da justiça – e abrangem questões como: a escolha de magistrados através do Conselho de Magistrados (que é o órgão responsável por isso); o julgamento dos magistrados pelo Júri de Acusação (semelhante ao CNJ, no Brasil); e também autonomia orçamentária, que não é um assunto frequentemente tratado no nível político, embora seja necessário que o Judiciário desfrute de independência plena, de modo que não precise estar sujeito a altos e baixos políticos ou a favores políticos a cada ano.

Quanto ao sistema penitenciário, em particular, temos um déficit significativo na infraestrutura penitenciária: há mais de 14 mil pessoas encarceradas e temos apenas 9.000 vagas disponíveis. No entanto, estamos cientes de que a nova infraestrutura prisional sozinha não leva a nenhuma mudança e, portanto, também estamos comprometidos em mudar o modelo de gestão prisional.

 

JT: Quando h.E. fez o juramento de posse, ressaltou o objetivo de “continuar no caminho da humanização, mas também demonstrou grande firmeza em relação às instituições e ao sistema penitenciário.” 

O Sr. pode explicar com mais detalhes a reforma prisional paraguaia e quais estratégias e medidas estão sendo implementadas?

EMF: O ponto de partida que temos em mente nesse sentido, é que não é possível falar da dignidade da pessoa encarcerada, nem da institucionalização do sistema penitenciário nas condições atuais, de quase colapso em termos de superlotação.

É preciso construir novas prisões equipadas com todas as facilidades e tecnologias necessárias para cumprir o propósito constitucional das sentenças. Há também uma necessidade muito palpável de cumprir as leis vigentes desde a década de 1960, que preveem a separação de condenados daqueles em julgamento.

Estamos no meio do processo licitatório para a construção de um complexo com quatro estabelecimentos penitenciários com capacidade total de 5.100 pessoas encarceradas – que cobriria a região metropolitana de Assunção – e também dois presídios em Alto Paraná, com capacidade para 2.500 pessoas. 

Na fase imediata de sua implementação, o primeiro empreendimento cobrirá o déficit atual de 40% de vagas. Esses edifícios atendem a todos os padrões internacionais quanto ao tratamento e desenho. Sabemos que isso por si só não leva a nenhuma mudança se não nos concentrarmos na gestão.

Nesse sentido, demos passos muito importantes na profissionalização do serviço penitenciário. A gestão, como é concebida hoje, abrange nada mais do que conceitos de segurança praticamente empíricos, nos quais os agentes penitenciários não tiveram qualquer capacitação para desempenhar a delicada tarefa que estão realizando.

Hoje, porém, com a formação que estamos proporcionando a eles – está em andamento o primeiro curso piloto do que será a Certificação Técnica Superior em Gestão Penitenciária – os conceitos antigos são substituídos por uma formação abrangente, para que se tornem agentes educacionais, conscientes do fim constitucional da sentença e facilitem todas as necessidades de todos os privados de liberdade, para que possam se tornar seres úteis na sociedade.

No curso de formação é dado ênfase à alimentação, saúde, disciplina no contexto prisional, gestão do tempo, treinamento no trabalho e uso produtivo. Os candidatos ao cargo de agente penitenciário iniciam como estagiários e recebem um salário mensal durante os seis meses de formação: são admitidos na prisão de domingo a sexta-feira por um período inicial de três meses.

Temos a assessoria técnica do especialista em reforma prisional, Roberto Santana, que presta os serviços através de um convênio com o Escritório das Nações Unidas de Serviços para Projetos (UNOPS). Ele trabalha conosco há quase um ano e pretendemos manter o vínculo por pelo menos mais um ano.

Estamos cientes de que a nova infraestrutura prisional sozinha não leva a nenhuma mudança, por isso também estamos comprometidos em mudar o modelo de gestão.

JT: Em 2016, o sistema penitenciário paraguaio lançou a marca Muã, sua primeira marca penitenciária

Sobre o que é esse projeto de trabalho prisional?

EMF: Trata-se de um projeto de inovação social muito inovador que visa mostrar o trabalho penitenciário, dignificar sua identidade na sociedade e conscientizar sobre o trabalho como ferramenta de inserção social e profissional das pessoas encarceradas.

Muã significa vagalume na língua guarani – seu slogan é “Encendé Esperanza” (Acenda a esperança) – é a primeira marca penitenciária do Paraguai e a segunda na América Latina. Hoje, tem um prestígio não só em nível local, mas também internacional, e representa um desembolso significativo de recursos do orçamento do Ministério da Justiça.

Para torná-la sustentável, lançamos um edital para a gestão dessa marca, com o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento. O modelo foi criado pela empresa social Koga e está na fase em que as partes interessadas em gerir a marca estão se aproximando de nós, incluindo empresas nacionais muito importantes na área têxtil, bem como fundações.

O objetivo deste chamado é alcançar um alto padrão de qualidade e um modelo sustentável, no qual os custos estejam alinhados com os lucros e que estes realmente alcancem as pessoas encarceradas.

Atualmente, cerca de 150 mulheres e 80 homens estão envolvidos na produção da Muã. O objetivo é que, uma vez implementado esse modelo de gestão, o percentual da população carcerária envolvida neste projeto possa aumentar substancialmente.

Inauguração das novas instalações do Centro Educacional de Itauguá com a presença do Presidente Horacio Cartes 

 

O que deve ser feito para atender à alta taxa de presos aguardando julgamento (76%) e qual é a situação do país em relação ao uso de medidas alternativas e do monitoramento eletrônico?

EMF: Contextualizando um pouco o que é o marco legal da prisão preventiva no país, o Código Penal em vigor desde 2000 estabeleceu a natureza excepcional da prisão preventiva de acordo com a Constituição do Paraguai.

Na mesma linha, o Código de Processo Penal estabelece as condições para a concessão de medidas alternativas ao encarceramento e, basicamente, a prisão é estabelecida para casos em que possa haver perigo de fuga ou obstrução da investigação, bem como em casos de violação do direito à vida dos indivíduos.

Esses poderes foram diminuídos ao longo do tempo e esse princípio mudou substancialmente; foi modificada por uma lei que entrou em vigor em 2011. Esta lei proíbe a concessão de medidas alternativas para casos com pena provável de mais de 5 anos. Assim, a população carcerária aumentou substancialmente nos últimos anos e hoje, estamos pagando o preço.

Quanto ao sistema de monitoramento utilizando tornozeleiras eletrônicas, embora deva entrar em vigor em alguns meses, somos bastante céticos: não apenas porque não há preparativos significativos – da parte do órgão responsável por sua implementação, o Supremo Tribunal de Justiça – mas também devido a certas condições que foram estipuladas por lei.

Isso nos deixa céticos quanto às alegações de que ajudará a reduzir a superlotação. Este modelo segue basicamente os moldes da lei de 2011, que estabelece condições muito específicas para a concessão de medidas alternativas, por isso não a vemos como uma solução. Na época, como Ministério da Justiça, expressamos nossas objeções tanto às comissões das duas câmaras quanto ao plenário, mas elas não foram atendidas.

A população carcerária aumentou substancialmente nos últimos anos e hoje estamos pagando o preço.

Quais são as entidades externas envolvidas no processo de reforma e quão importantes elas são?

EMF: Estamos trabalhando em estreita colaboração com o Ministério da Educação na criação da Certificação Técnica Superior em Gestão Penitenciária. Ao mesmo tempo, o Ministério da Educação é o órgão responsável pela formação e educação nos presídios.

Temos expandido a educação para além da formação básica. Além disso, várias universidades privadas incorporaram não apenas certificações técnicas, mas também graduações, como direito e contabilidade, para pessoas encarceradas.

O Ministro da Justiça, o Secretário-Geral Adjunto da Organização das Nações Unidas (ONU) e o Diretor Executivo do Escritório das Nações Unidas para Serviços para Projetos (UNOPS) apreciam os produtos da marca penitenciária Muã no Centro Educacional de Itauguá, Paraguai

 

Temos também trabalhado em conjunto com o Ministério da Saúde para estabelecer instalações adequadas para a assistência à saúde nos presídios. Além disso, temos feito o recrutamento de pessoal para as penitenciárias onde não há número suficiente para fornecer assistência médica adequada.

Os cursos de capacitação profissional ministrados nas diversas penitenciárias são desenvolvidos em colaboração com o Ministério do Trabalho e também temos uma grande aliança com o Ministério da Indústria e Comércio em termos de localização e exportação dos produtos produzidos nas penitenciárias.

O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) tem sido um aliado muito importante em grande parte do trabalho que temos feito no sistema penitenciário, bem como a Corporação Andina de Desenvolvimento, no Banco Latino-Americano de Desenvolvimento, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, PacCTO, o UNOPS e o UNODC.

 

O Sr. poderia nos dizer o que tem se concretizado na área da justiça juvenil?

EMF: O Paraguai tinha uma dívida pendente desde 2001, quando houve incêndios nas instalações do que eram praticamente as penitenciárias juvenis. Demorou muito tempo para pagar essa dívida, mas no ano passado inauguramos o mais importante centro educacional para menores de idade do país.

Este Centro abriga quase 50% dos menores encarcerados do país, e situa-se em Itauguá. Foi realizado no mandato do governo do presidente Horacio Cartes, seguindo suas próprias instruções para dignificar o sistema penitenciário e o sistema de menores infratores. Deixamos de lado o antigo esquema operacional e agora temos uma abordagem ampla, fortalecendo as tarefas dos assistentes sociais, da equipe de saúde, dos psicólogos, dos agentes educacionais, etc.

Uma abordagem que envolve não só o cuidado com a saúde física, mas também com a saúde mental, a qualidade de vida, a participação da família, da comunidade e até mesmo das vítimas. É um modelo socioeducativo e isso vem acompanhado do abandono dessas instalações muito precárias onde os jovens estavam alojados, onde ficavam em pavilhões de alojamento de 40 ou 50 pessoas.

Hoje, eles dividem quartos para duas pessoas, com todos os confortos, o que facilita muito o tratamento. É claro que as condições de vida são acompanhadas por um modelo de gestão que tem sido bastante bem sucedido.

Temos trabalhado não só no contexto do acolhimento desses menores, mas também, quando os próprios juízes concedem medidas alternativas ao encarceramento, há um acompanhamento dessas medidas para que sejam efetivamente aplicadas e esses jovens não retornem ao sistema.

 

Do que o Sr. mais se orgulha do que foi feito para o sistema de justiça no Paraguai?

EMF: Comecei nesse governo como vice-ministro da Justiça e há quase dois anos estou na posição de ministro. Em 15 de agosto de 2018, houve uma mudança de governo, então, mais do que uma perspectiva futura, em termos de gestão como equipe, temos a satisfação de deixar fundamentos muito importantes sobre o que é a mudança paradigmática do modelo de gestão do sistema penitenciário.

Isso tem sido efetivado no sistema juvenil porque, além da mudança significativa que mencionei, separamos o funcionamento desses centros educacionais dos estabelecimentos penitenciários, já que antes funcionavam como unidades independentes dos estabelecimentos penitenciários, quando soubemos que o tratamento dos menores não é o mesmo que o dos adultos.

No sistema penitenciário adulto, estamos lançando as bases para a construção dessas novas instituições penitenciárias de acordo com todas as normas internacionais e também no que diz respeito ao modelo de gestão, com uma academia de formação muito importante, com um currículo completo e um plano piloto em plena execução que terminará durante este período de governo.

Além da gestão prisional, o Ministério da Justiça vem desempenhando um papel de coordenação nas políticas públicas de acesso à informação pública. Nesse sentido, conseguimos consolidar não só a expansão das instituições que aderiram ao portal – de 92 que tínhamos há pouco tempo, aumentamos para mais de 300.

Até o final de 2016, tínhamos apenas 12 governos locais aderindo ao portal de acesso à informação; nós aumentamos esse número para 192. Entretanto, ainda falta algo, mas essa é uma tarefa que temos realizado com grande entusiasmo. Esses números representam um aumento de 1.600 % em pouco mais de um ano e meio, e continuaremos nesse caminho. Vale ressaltar que também temos uma parceria com o Ministério da Educação na área de acesso à informação pública.

Tudo relacionado ao acesso à informação pública é ensinado nas escolas públicas do país de forma a conscientizar, desde muito cedo, que o acesso à informação pública é um direito humano.

Sem dúvida, o estabelecimento e a consolidação desse direito humano são um dos mais importantes legados deste governo, que não se limita apenas à gestão do Ministério da Justiça, mas é um legado do governo nacional e do presidente Horacio Cartes para as gerações futuras.

//

Ever Martínez Fernández é advogado formado pela Universidade Nacional de Assunção, no Paraguai. Concluiu a pós-graduação em universidades dos Estados Unidos e Inglaterra, onde obteve diplomas como “Senior Managers in Government Program” (Harvard Kennedy School), além de “International Mergers and Acquisitions” (International Bar Association e College of Law of England and Wales) e mestrado em Direito (King’s College London). Foi vice-ministro da Justiça (2013-2016) e, anteriormente, trabalhou como relator do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal de Contas e como oficial judiciário no Tribunal de Primeira Instância para Assuntos Cíveis e Comerciais. Em seu currículo ele também lista sua experiência profissional como consultor em diversas empresas. Foi coautor de vários trabalhos jurídicos e foi palestrante em conferências internacionais.

Curtir / Compatilhar

Alterar idioma

Explore mais

Cursos online: Corrections Learning Academy

Comunidade profissional: Corrections Direct

Recursos: Crime Solutions

Recursos Crime Reduction Toolkit

More stories
Integração do Pensamento Digital nas instituições penitenciárias