Monitoramento eletrônico e o futuro
Sobre o que estamos falando quando falamos de “monitoramento eletrônico” (ME)? Falamos sobre o futuro. Não apenas sobre o que significaria adotar essa ou aquela tecnologia de ME agora, cujos interesses são atendidos ou ameaçados (embora isso também seja), mas que problemas ela resolverá ou criará nas próximas décadas.
Visões de futuros possíveis, prováveis e preferenciais foram inscritas em todas as conversas sobre ME, seja do ponto de vista técnico, comercial, político e profissional, desde que seus protótipos apareceram pela primeira vez nos anos 60 e, ainda mais, desde que se tornou uma realidade operacional nos EUA, e depois em todo o mundo ocidental, nos anos 80 e 90.
Como em todas as novas tecnologias, os diversos cenários têm sido utópicos e distópicos, com um grau de aceitação pragmática cautelosa no meio. A alegação de que a adoção generalizada de tecnologias de monitoramento de localização, de forma isolada ou muito provavelmente em combinação com outras sanções comunitárias, se tornaria a forma de reduzir ou mesmo abolir o encarceramento, surgiu com cada “melhoria” técnica qualitativa (sendo o último desenvolvimento, até recentemente, a atualização de RF para GPS).
No entanto, em nenhum lugar o ME realmente foi uma “inovação disruptiva”, para melhor ou pior, muito menos nos EUA de onde se originou, onde uma cultura punitiva e centrada na prisão limitou a escala de seu desenvolvimento e moldou-o de maneiras punitivas, imitando o presídio. O uso de ME na Europa tem sido mais versátil – punitivo, protetor e favorável às medidas de ressocialização – e, proporcionalmente, em alguns países, em maior escala do que nos EUA.
A maioria dos sistemas de ME europeus, seja por radiofrequência (RF) ou GPS, está incorporada em escritórios de liberdade condicional – ou outros órgãos do Estado – precariamente subordinadas ao seu ethos (ou cultura) humanista, embora a saúde desse ethos esteja perenemente em disputa. Discussões sobre o possível estigma da tornozeleira, sobre quando e como seria a melhor forma de integrar o monitoramento de localização, em que intensidade e com que duração, aos serviços de ressocialização e reintegração não foram resolvidas em todos os lugares.
Contra um pano de fundo de ansiedade sobre um futuro geralmente mais vigilante, há, no entanto, uma aceitação generalizada de que algumas formas de EM podem ser úteis, e há evidências suficientes de pesquisas para informar boas práticas – que podem ou não ser adotadas.
Um problema é que o ME não é meramente uma tecnologia estática e de geolocalização – o monitoramento de consumo de álcool ampliou seu alcance (e significado) para abranger o monitoramento direto do consumo de álcool, com base na detecção e medição de traços bioquímicos.
Smartphones e uma variedade de aplicativos especializados que combinam ainda mais localização e monitoramento somático, e adicionam um elemento dialógico ao processo, estão sendo colocados ao serviço de monitoramento de infratores de baixo risco.
Esses desenvolvimentos são consequência do alinhamento das empresas de ME com o “futurismo corporativo” – conectividade amigável para todos – promovido pelo Vale do Silício; discursivamente, pelo menos, não associam tanto o ME com culturas e práticas especificamente penais, mas com o mundo emergente de “corpos computáveis”, “Quantified Self” (ou autoquantificação, traduzido livremente), Cidades Inteligentes e Internet das Coisas. “Imagine”, diz Nir Shelly, um membro da indústria, apenas alguns anos à frente:
O monitoramento eletrônico não é mais baseado nas tornozeleiras eletrônicas, mas, sim em uma solução de autoinstalação e sem dispositivos, que interage perfeitamente com um aplicativo flexível e fácil de usar o qual pode ser gerenciado em todos os lugares. Os programas de ME gerenciam todas as etapas de ressocialização do infrator desde o rastreamento nas instalações até o rastreamento baseado em localização ao ar livre. As soluções de ME tornam-se tão avançadas, de fato, que agora é possível não só monitorar a localização do infrator, mas também a saúde, níveis de estresse e humor, quantidades de atividade física diária, calorias consumidas e queimadas e muito mais. É muito claro como os programas de ME são econômicos e socialmente eficazes, e eles se tornam parte de um padrão de ouro para ressocializar presos, adotado por quase todos os governos do mundo.
(Shelly 2016)
Fora da bolha do Vale do Silício, há poucos serviços de liberdade condicional e reformadores penais que veriam tal vigilância generalizada como algum tipo de ideal social. O problema é que, no século XXI, goste ou não, os interesses penais progressistas não têm outra alternativa a não ser se envolver com esse “humanismo digital” (como se vê) porque há um imenso impulso cultural e político, bem como econômico, por trás dele.
Este é o novo ambiente, o pax technica, no qual os serviços de liberdade condicional devem aprender – estão aprendendo – a influenciar o debate sobre o futuro do ME. O resultado do encontro é aberto, mas não se envolver, não ver o ME como uma área necessária e legítima de luta política, é ceder autoridade àqueles que o desenvolveriam de maneiras indiferentes ou desfavoráveis aos interesses e valores do sistema de liberdade condicional.
O monitoramento de localização por si só pode – mas não precisa – ser usado de forma brutalmente punitiva se tudo o que faz é impor zonas de inclusão estritamente restritivas. O monitoramento quase médico ao qual Shelly alude pode ter alguns benefícios para a saúde de alguns infratores, mas nunca precisaria ser normalizado da maneira que ele descreve. O que ele ignora é que os infratores aos quais essas tecnologias seriam aplicadas seriam predominantemente pessoas pobres e desfavorecidas.
Isso pode ou não ser defensável, dependendo dos tipos de regimes de supervisão que experimentam, o que está em oferta e como as vítimas podem ser protegidas. Mas a “governança digital” aparentemente benigna e sem classe dos cidadãos obstinados aos quais a Shelly subscreve não é o que parece; ele descreveu mais apropriadamente uma “automatização da desigualdade”.
ME limpo e sujo
Os tipos de rastreamento e monitoramento somático do tipo descrito pela Shelly são pelo menos “tecnologias limpas”, enraizadas em desenvolvimentos tecnológicos irresistíveis, mas cujo valor e relevância em um contexto penal podem – e devem – ser discutidos.
Eles mesmos seriam opressivos se permitissem tornar-se dominantes na supervisão de infratores, mas são redimíveis se usados de forma modesta e ética. “Tecnologias sujas” – por exemplo, instrumentos de tortura – que não servem para nada além de degradar e prejudicar, não devem ser defendidas, filtradas para aplicações úteis, mas simplesmente combatidas.
O dispositivo de eletrochoque tem sido há muito tempo um elemento básico da ficção científica penal e foi brevemente desenvolvido, mas nunca usado, na África do Sul. Sabendo que tal coisa era possível, a “Recomendação Ética” do Conselho da Europa sobre o EM em 2014 o descartou enfaticamente: “Sob nenhuma circunstância, equipamentos de monitoramento eletrônico podem ser usados para causar danos físicos ou mentais intencionais ou sofrimento a um suspeito ou a um infrator”.
Agora, no entanto, o argumento a favor do uso de uma forma ultra punitiva de ME que inclui uma capacidade de administrar eletrochoques voltou a entrar no debate recentemente de um lugar inesperado – um artigo acadêmico popular escrito por três respeitados acadêmicos liberais australianos – repleto da velha alegação tecno-utópica de que sua adoção sistemática acabará eventualmente com o dispendioso encarceramento em massa nos EUA (Bagaric, Hunter e Wolf 2018).
Eles chamam de “encarceramento tecnológico” (de agora em diante, para brevidade, “ET”), usando as conotações brandas e modernizantes da palavra “tecnológica” para mascarar a inventividade perniciosa que eles têm em mente. Ao chamá-lo de “encarceramento” eles deliberadamente se alinham com aqueles que sempre viram o ME como uma forma de imitar o cárcere (e se tornar “uma prisão virtual”) em vez de como um elemento controlador em uma sanção ressocializadora existente.
Ao retratar “ET” como o próximo estágio evolutivo do ME, eles também jogam diretamente a favor daqueles que descartaram inutilmente toda e qualquer forma de ME como um “encarceramento eletrônico” indesejável: tais críticos verão este artigo como a confirmação de seus medos mais sombrios sobre onde o simples monitoramento de localização sempre nos levaria.
A restrição espacial para casa ou bairro através do uso de tornozeleiras e da localização e zoneamento por GPS é, de fato, o ponto de partida de Bagaric et al, mas é considerado insuficientemente punitivo e, após vinte anos de implantação nos EUA, não teve impacto no encarceramento em massa.
São os dois ingredientes adicionais do ET que lhes dão a confiança de acreditar que estão inaugurando “a maior mudança no sistema de justiça criminal que já foi feita”, a qual “resultará no fechamento de quase todas as prisões nos Estados Unidos”.
O primeiro ingrediente é a vigilância remota, visual e tátil quase contínua de uma pessoa, efetuada por sensores portáteis e monitorada por computadores 24 horas por dia7 dias por semana. E o segundo, um dispositivo de eletrochoque na tornozeleira que pode ser acionado remotamente, pelo computador, se e quando seus algoritmos detectam atividade suspeita ou ilegal.
Até agora, pura ficção científica, embora insistam que as tecnologias contínuas de monitoramento e eletro-imobilização do corpo já existem e poderiam, com apenas pequenos refinamentos, serem preparadas para uso penal. O “arnês de sensores”, equipado com sensores de áudio que podem captar a voz do usuário e qualquer som em suas proximidades, além de uma câmera corporal, deriva de equipamentos já disponibilizados aos policiais.
Aplicada aos infratores, a câmera corporal seria “voltada para cima” e equipada com software de reconhecimento facial para evitar sua transferência para outra pessoa. Ele seria usado “na metade superior de suas roupas o tempo todo e [também] enquanto toma banho” durante o período de encarceramento de uma pessoa.
Sensores táteis no arnês captarão movimentos musculares e movimento corporal, permitindo que uma Inteligência Artificial remota (IA) detecte se um usuário (muitos usuários múltiplos simultaneamente, na verdade) está andando normalmente, seduzindo uma namorada, tendo um colapso psicótico, atacando alguém ou se defendendo. Monitores humanos nunca poderiam realizar tal tarefa: uma IA 24/7, a julgar pelo progresso feito na análise de dados de sensores em tempo real em carros autônomos, terá um desempenho melhor do que o humano.
Os Dispositivos de Energia Conduzidos (CED, por sua sigla em inglês), que produzem a capacidade remota de eletro-imobilização, são simplesmente uma extensão do eletrochoque policial e dos vários dispositivos de atordoamento (ou tortura) (armas, aguilhões e cintos) já usados por guardas e oficiais de justiça dos EUA para gerenciar alguns presos estadunidenses, este último – se não sempre o primeiro – quase universalmente condenado como “tecnologia suja” por organizações de liberdade civil. O ET em si é a “tecnologia suja”, mais dolorosa sem justificativa, do que o ME jamais precisa ser, e deve ser combatida abertamente.
Mas, vindo de uma fonte tão respeitável e liberal, isso complicará enormemente o debate sobre ME e, porque o que Bagaric et al propõem é tecnicamente viável, eles podem muito bem ganhar apoio, e não apenas nos EUA. Sua incessante denúncia dos danos humanos do encarceramento é, sem dúvida, bem feita.
Sua insistência de que os US$ 80 bilhões gastos anualmente em prisões estadunidenses são insustentáveis em termos de custo-efetividade (e seriam melhor gastos em “serviços sociais críticos, incluindo educação e saúde”), é louvável. Mas promover algo tão duro como o ET como a única alternativa viável ao encarceramento em massa – “atenderá quase todos os infratores que estão atualmente presos em prisões convencionais e (…) será adaptável para que a dificuldade que inflige aos infratores seja equivalente à gravidade dos variados delitos que cometeram” – levanta muitas questões sobre por quê o encarceramento em massa existe, em primeiro lugar.
Sua convicção de que o ET é intrinsecamente menos duro do que a prisão é duvidosa – na verdade, é estranha! – e sua expectativa de que será uma punição mais eficaz do que a prisão – melhor para impedir a reincidência e na proteção da comunidade – é especulativa. Sua noção peculiar de que a proporcionalidade na aplicação de uma sanção tão draconiana será satisfatoriamente tratada simplesmente pela variação do tempo que as pessoas gastam nela é indigna de pessoas com suas credenciais acadêmicas.
Bagaric et al buscam refutar duas críticas antecipadas à sua proposta, a primeira de outros liberais (mais apreensivos do que eles) que se oporão às violações do “ET” à privacidade e à integridade física por motivos de direitos humanos, a segunda de reacionários conservadores que sempre repudiarão qualquer coisa menor que a prisão “real”, considerando insuficientemente punitiva.
Eles lidam superficialmente com a primeira, alegando que a prisão normalmente viola mais a privacidade de um infrator e os expõe a mais e pior violência física de guardas e outros presos do que a eletro-imobilização ocasional através de uma tornozeleira jamais o fará.
Em relação à última, eles admitem orgulhosamente, como neo-retribucionistas liberais com uma agenda de reforma modernizante, que o “ET” é de fato menos punitivo do que a prisão por trás de paredes de aço e concreto, e mais eficaz no cumprimento de objetivos fundamentais de sentença – aí, eles pensam, reside sua óbvia superioridade moral e prática.
A suposta maior atração deste entre os formuladores de políticas conscientes dos custos marginalizará os reacionários, não menos importante, dizem eles, porque o humor atual nos EUA, mesmo entre “vítimas, polícia e promotores” agora favorece soluções mais baratas mais construtivas, mais eficaz – mais liberal! – do que o confinamento à moda antiga.
Testando o “Encarceramento Tecnológico”
Há uma ofuscação maciça por trás dessa aparente resistência liberal aos reacionários penais. Apenas acadêmicos com um significativo déficit de empatia imaginariam que a regulação espacial apertada, o monitoramento somático contínuo através de um cinto de sensores visível e a perspectiva ocasional de eletro-imobilização administrada por uma IA não seriam considerados insuportável e destrutivamente punitivos pelos próprios infratores.
É difícil conceber maior indignidade, maior abjeção nas mãos do Estado. É inacreditável pensar que, assim, os infratores ainda possuirão o estado de espírito para explorar e abraçar as oportunidades de ressocialização e reintegração social que uma comunidade local pode oferecer.
Apesar de se vangloriarem de seu compromisso com os direitos humanos, as vozes dos próprios infratores nunca figuram na análise de Bagaric et al – eles são uma consideração irrelevante para eles – e parece muito provável que muitos infratores escolham as paredes de pedra fria do encarceramento real ao arreio de sensores intrusivos, estigmatizantes e indignos, e os fardos que isso imporia à vida familiar e à participação cívica.
Apenas o mais espartano e cruel dos regimes prisionais pode ser mais doloroso do que o “encarceramento tecnológico” e nesse sentido o sistema penal que Bagaric et al estão contemplando, não apenas degrada a ideia de como as sanções comunitárias sensatas precisam ser, mas também requer os piores tipos de prisão.
Sem surpresa, na forma típica acadêmica liberal, eles sugerem que sua proposta seja testada por 12 meses em 10.000 presos “cumprindo pena por delitos menores”. Não está claro como isso se encaixa em qualquer noção de proporcionalidade, mas os agressores sexuais e violentos seriam inicialmente excluídos, simplesmente para evitar alarmar um público cético e cauteloso.
Os testes seguiriam então para uma implantação em fases e substituição da maioria das prisões durante um período de quinze anos, incluindo criminosos cada vez mais graves, mesmo, eventualmente, alguns assassinos. Discordo: em nenhuma circunstância essa “tecnologia suja” deve ser testada ou implementada, em qualquer lugar.
Não é necessário pesquisa empírica sobre sujeitos vivos para demonstrar que o “ET” é moralmente repugnante e para saber com antecedência que a amostra de pesquisa seria inevitavelmente em sua maioria pessoas pobres, desfavorecidas e (nos EUA) desproporcionalmente negra. Eles não devem ser experimentos.
Não há dimensão de justiça social no argumento de Bagaric et al, nenhuma análise de classe que entenda que o encarceramento em massa tem a ver muito mais com o gerenciamento da pobreza e da desigualdade racializada , pois é uma proteção e resposta a (algumas) violências criminosas, um problema para o qual há muitas soluções mais construtivas, ainda que nunca fáceis.
Os acadêmicos falham repetidamente em dizer por que – diante de evidências históricas esmagadoras de que a introdução de alternativas supostamente “duras” para substituir as prisões (por exemplo, serviço comunitário, liberdade condicional intensiva, entre outros) raramente teve um impacto duradouro nos números das prisões – desta vez será diferente, além de colocar fé mágica na tecnologia moderna, ultrapunitivismo e algumas evidências neurológicas “que os seres humanos gostam de punir os malfeitores” (um achado que não se sustenta em nada. Tão cruel e incomum quanto o ET).
Não sou avesso a todos os testes de “ET”, desde que Mirko Bagaric, Dan Hunter e Gabrielle Wolf (e, por força de associação, suas famílias, amigos, colegas e vizinhos) sejam os primeiros, e únicos, participantes do “piloto”. Sério: pesquisadores, gerentes de programas e funcionários públicos envolvidos em programas anteriores de RF e GPS testam em si mesmos rotineiramente tornozeleiras beta e se submeteram a sistemas de monitoramento por curtos períodos.
Obviamente, isso nunca pode replicar totalmente a experiência de um infrator, mas pode gerar um nível de percepção e empatia que não é indiscutivelmente encontrado em relatórios escritos. Bagaric et al devem usar rastreadores e arês de sensores por um mínimo de seis meses – eles preveem que os infratores façam isso por muito mais tempo – e ter zonas de inclusão monitoradas por GPS colocadas ao redor de suas casas e locais de trabalho, assim como rotas intermediárias.
Eles devem “realizar um blog ao vivo” da sua experiência, através da IA a que eles estão necessariamente ligados, em uma série de sites penológicos respeitáveis para que outros profissionais possam se envolver e ver como eles estão se saindo. Os participantes devem experimentar eletro-imobilização automatizada pelo menos duas vezes, apenas para ver como é; uma dessas ocasiões deve ser na frente de seus filhos, apenas para ver qual é o efeito sobre eles, como isso é provável que aconteça com qualquer criminoso da vida real que, deus me livre, pode vir a ser monitorado desta forma.
Conclusão: Escolhendo “Corpos Computáveis”
Os sistemas de monitoramento eletrônico na justiça criminal não são, e nunca foram, inovações aleatórias ou entidades materialmente discretas: são possibilidades mais amplas de tecnologias da informação, comunicação e informática, dependentes de infraestruturas digitais existentes para sua viabilidade e personalizadas para fins especificamente penais.
Discursivamente, eles estão envolvidos não apenas nos “imaginários penais” predominantes (quem e como queremos punir), mas também em nossos “imaginários sociotécnicos” (até onde desejamos ou esperamos que a digitalização e a automação penetrem e mudem nossas práticas sociais).
Apesar da cultura de debate sobre o futuro do ME, promovida pelas conferências de ME da CEP (Confederação Europeia de Liberdade Condicional), e a orientação oportuna proporcionada pela recomendação ética do Conselho da Europa sobre ME, os interesses penais progressistas ainda não são tão experientes ou instruídos como precisariam ser para moldar o futuro do ME, particularmente quando propostas ruins – como o ET – vêm inesperadamente de fontes liberais tradicionais, que deveriam ter aprendido a não promover um bem social – o fim da prisão – usando meios malignos.
“Corpos computáveis” são muitos e vários em nossa cultura tecno digital contemporânea, e alguns são livremente escolhidos. Não é possível nem desejável proibir todas as variantes penais delas, mas o perigo do ET é que, na mente de outros liberais, ele poderia deslocar ou desacreditar o melhor do que o futuro poderia conter.
Referências:
Bagaric M, Hunter D and Wolf G (2018) Technological Incarceration and the End of the Prison Crisis. Journal of Criminal Law and Criminology 108(1) pp73-135
Council of Europe (2014) Recommendation CM/Rec(2014)4 of the Committee of Ministers to member States on electronic monitoring. Aprovado pela Comissão de Ministros em 19 de fevereiro de 2014. Strasbourg: Conselhor da Europa
Shelly N (2016) Dreaming Of A Better World, Or Why We Must Push For Standardisation of Electronic Monitoring. Postagem no blog em 6 de junho de 2016. www.em.is.com
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Depoimentos sobre Monitoramento Eletrônico: Evolução e perspectivas para o futuro
Paulo Moimenta de Carvalho
Diretor adjunto da Diretoria Geral de Reintegração e Serviços Penitenciários (DGRSP), Portugal
Em Portugal, o Monitoramento Eletrônico (ME) emergiu como uma reação à grave superlotação prisional, que foi muito mais significativa entre a população carcerária que aguardava julgamento na década de 1990.
O ME foi introduzido no sistema jurídico em 1998, associado à vigilância da medida de coerção da obrigação de permanecer em casa (CMORH), com o objetivo de ser uma alternativa à prisão preventiva. Entre 2002 e 2004, foi executado um programa de implementação piloto e os bons resultados permitiram sua divulgação nacional em 2005.
As mudanças legislativas subsequentes de 2007 a 2017 estenderam o ME à vigilância do toque de recolher de detenção domiciliar (HDC), à modificação da pena de prisão, à adaptação à liberdade condicional e à vigilância da proibição de contato entre o agressor e vítima de violência doméstica (DV) ou crime de perseguição.
Os tribunais tiveram diferentes níveis de adesão aos diversos usos do ME. Atualmente, a medida de coerção do CMORH lida com cerca de 350 casos simultaneamente. Na fase de execução das penas, as várias formas de liberação antecipada são mantidas em números residuais de pouco mais de 30 casos simultaneamente.
Apenas o novo regime de HDC (implementado no final de 2017) parece estar alcançando níveis significativos de adesão, com um aumento de 317 novas penas. Atualmente, as decisões de proibir o contato dentro da esfera de violência doméstica representam 50% do número total de casos em andamento, com uma ligeira tendência de crescimento (no contexto do crime de DV, nosso programa de ME é um dos maiores da Europa, logo após a Espanha).
Para monitorar os diferentes propósitos das decisões judiciais, a DGRSP, por meio de suas equipes especializadas em ME, utiliza diferentes tecnologias: para as diversas formas de confinamento domiciliar, utilizamos a tecnologia de radiofrequência, que tem se mostrado segura e adequada para esse fim; para o controle das decisões judiciais que proíbem o contato, utilizamos a tecnologia de geolocalização, que combina a tecnologia GPS com os componentes da radiofrequência e da comunicação móvel, comprovadamente uma operação mais desafiadora do ponto de vista da gestão dos eventos e comportamentos dos agressores e vítimas.
Portugal adotou uma atitude de mente aberta em relação à inovação tecnológica, facilitada pela cautela, a fim de fazer investimentos seguros e não comprometer as altas expectativas sociais e políticas nos programas de ME. Este sempre foi entendido como uma ferramenta para apoiar a execução de penas ou medidas penais e é usado como estratégia para intervir com réus/condenados. Nosso modelo combina controle e intervenção, com maior foco em ações de controle ou reintegração social, dependendo do tempo processual em que a decisão judicial é implementada.
O dispositivo de ME opera 24 horas por dia, 365 dias por ano, e equipes especializadas garantem – de forma integrada e orientada por protocolos estabilizados – as tarefas de vigilância eletrônica e a intervenção individualizada voltadas para as necessidades de reintegração social. Todos os possíveis problemas alertados pelo sistema têm uma reação – adequada à situação específica, à fase processual e ao risco que o potencial não cumprimento representa – com os sujeitos.
A avaliação é muito positiva, pois temos taxas residuais de descumprimento da decisão judicial: 2,80% em 2017 e 2,48% nos quatro primeiros meses de 2018. O sucesso do ME em Portugal deve-se: à existência de uma estratégia institucional que concebe o ME não como um meio para um fim, mas como um instrumento a serviço da reinserção social, compartilhando ferramentas da cultura da liberdade condicional; ao projeto do ME como um sistema, combinando uma intervenção mais branda de controle e apoio por meio de uma estrutura operacional especializada que utiliza procedimentos estabilizados e tecnologias rigorosas; e, por fim, à boa articulação com os tribunais na identificação do perfil do caso que deve ser objeto de decisão judicial para utilização de ME e da simplificação de circuitos de comunicação na execução da pena ou medida penal.
Em Portugal, ainda há grande potencial para o ME na execução de sentenças, evitando penas de prisão para aqueles que não precisam de níveis tão elevados de controle ou ajudando a promover a libertação antecipada daqueles que apresentam um prognóstico favorável à soltura. Parece que esse movimento, com ME, ocorrerá na execução de penas de prisão de até dois anos, com a expectativa de que dentro de 2 a 3 anos sejam monitoradas eletronicamente, em casa, cerca de 1.200 sentenças. Esses números darão outra dimensão ao nosso programa de ME, com números bastante consideráveis, além de nos permitir olhar para o paradigma criminal sob uma nova perspectiva.
É cedo para antecipar o real impacto dessa projeção no sistema prisional e no sistema de ME, mas repensar sua estratégia no sistema de execução penal como um todo é visto como uma oportunidade única para Portugal. Agora, podemos ver o efeito positivo que isso já teve, já que a superlotação não é mais um problema no sistema prisional do país.
Pedro Ferreira Marum
Diretor adjunto da Administração Geral das Casas de Justiça, Federação de Valônia-Bruxelas, Bélgica
A Bélgica tem quase 22 anos de experiência em Monitoramento Eletrônico (ME). O programa piloto foi lançado no final de 1996. Em 24 de novembro de 1997, o Ministro da Justiça criou e permitiu oficialmente o uso do ME na Bélgica, o que aconteceu a princípio como um programa piloto dentro de seu sistema prisional. Ele era destinado a infratores condenados a menos de 18 meses de prisão, e eles tinham que estar a menos de três meses da possível data de liberação legal após cumprir a pena e pagar uma taxa mensal de €125 para poder se voluntariar.
É interessante ver que as autoridades belgas, no início, pensavam no ME como um sistema de execução de primeira sentença de prisão e, portanto, era gerenciada pelo próprio sistema prisional. Em segundo lugar, se evitava, a rigor, a coexistência de ME e da liberdade condicional. Pensava-se que o ME era um passo preliminar, um “período de teste”, antes do trabalho habitual do oficial de liberdade condicional. Essas crenças fundamentais ainda persistem hoje em dia, como uma modalidade de execução de pena de prisão.
Em 30 de junho de 2000, foi criado o Centro Nacional de Monitoramento Eletrônico (CNSE-NCET) dentro da Direção-Geral penitenciária. Naquela época, havia cerca de 500 casos de ME acompanhados diariamente. Em 2007, o CNSE-NCET foi integrado à recém-criada Diretoria-Geral de Liberdade Condicional (Casas de Justiça), que é um órgão independente das prisões. Levou 11 anos para transferir o ME do sistema prisional para o sistema de liberdade condicional.
No entanto, o sistema legal ainda não mistura o período sob ME com a liberdade condicional. Oficiais de liberdade condicional trabalham em seus casos sem o apoio de ME. Em 2014, o CNSE-NCET acompanhou mais de 2.000 casos de ME diariamente e mais de 6.000 casos de ME por ano. Isso faz da Bélgica um dos países onde há mais pessoas sob ME per capita(1).
Em 1 de julho de 2014, foi atribuída a três comunidades belga (as falantes da língua flamenca, francesa e alemã) a competência legal em relação à liberdade condicional através de uma modificação constitucional. Portanto, o CNSE-NCET foi dividido em três. As comunidades francesa e alemã uniram forças para trabalhar no mesmo departamento de ME – o Centro de Vigilância Electronique (CSE). A comunidade flamenga criou o Vlaams Centrum Elektronisch Toezicht (VCET).
Atualmente, a Bélgica utiliza duas tecnologias: GPS (cerca de 1/5 casos diariamente) e radiofrequência (RF) (4/5). No caso da Bélgica, o GPS é uma solução híbrida que utiliza RF em casa e GPS do lado de fora. A Verificação de Voz (VV) foi testada no início dos anos 2000 e em 2012, mas não foi implementada após os experimentos, principalmente porque teria que ser interrompida durante a noite (os infratores precisam, é claro, poder dormir), por problemas técnicos e pelo tempo de trabalho muito alto.
Está em andamento uma licitação para a substituição do material. No concurso, pedimos que o aparelho de GPS seja de uma peça inteira (ao invés dos dois dispositivos típicos). Também são solicitados radiofrequência e garantias adicionais para as estações de base domésticas (controle duplo biométrico). A licitação é orientada a serviços, o software é orientado para o serviço e o material de Me é alugado. A filosofia do concurso é mais ou menos “No ME, nós gerenciamos as pessoas, vocês gerenciam o técnico”.
Em 2018, a Bélgica tinha vários tipos de programas de ME em vigor. De fato, o ME se ampliou de uma modalidade de execução de pena de prisão para uma pena autônoma, além de substituir a prisão preventiva antes do julgamento; ele ainda conta com apoio à saúde mental. Em 2017, a Bélgica acompanhou cerca de 1.850 casos de ME diariamente e ativou 6.592 novos.
Até o momento, não há um programa específico de ME para casos de violência doméstica, mas a licitação em andamento dará condições técnicas para que o arcabouço legal evolua. Historicamente, o principal objetivo do ME era, e ainda é hoje, a luta contra a não execução de penas de prisão (ou privativas de liberdade) (combate ao sentimento de impunidade) e a superlotação das prisões. A diminuição da proporção de reincidência também é um objetivo, mas menos realista. Por muito tempo (1998-2013), não pudemos confirmar o impacto que o ME teve na superlotação prisional, no entanto, desde 2014, as autoridades atribuem a diminuição da população carcerária ao efeito positivo do aumento e ampliação de ME.
(1) Para obter mais informações sobre a política de ME da Bélgica (e de outros quatro países europeus), recomendo a leitura do relatório do projeto EMEU: “Criatividade e eficácia no uso do monitoramento eletrônico como alternativa à prisão nos Estados membros da UE”.
Şaban Yılmaz
Na Turquia, os testes preliminares para a implementação de tecnologias de Monitoramento Eletrônico (ME) em nosso sistema de execução penal, no âmbito das decisões de liberdade condicional, foram realizados pela primeira vez em 2011 e 2012.
Diante das experiências adquiridas com essas práticas piloto, foram tomadas providências legais necessárias e a criação de um Centro de Monitoramento Eletrônico – dentro da Direção-Geral de Prisões e Casas de Detenção do Ministério da Justiça – concluído em 20 de janeiro de 2013.
No centro, cuja segurança da informação e proteção de dados pessoais são fornecidas pelo sistema UYAP, há 52 oficiais especialmente capacitados trabalhando em uma base 24 horas por dia. Desde então, cerca de 40.000 suspeitos, réus e condenados foram monitorados e rastreados pelo centro.
Atualmente está em andamento o monitoramento e o rastreamento de quase 3.000 pessoas. Quatro tipos de unidades de ME são usadas como parte do nosso sistema de execução de penalidades: a unidade GSM é utilizada nas decisões relativas à proibição de sair de casa por períodos específicos; a unidade GPS é aplicável a sanções como a proibição de ir a locais específicos; a unidade de monitoramento do uso de álcool implica o rastreamento de infratores no âmbito de crimes ligados ao abuso de bebidas alcoólicas; e, finalmente, há uma unidade que é usada para a proteção das vítimas.
Os sistemas de ME são utilizados: na execução de uma série de medidas de controle judicial emitidas no lugar da prisão preventiva, a qual é competência do sistema de liberdade condicional; na execução de decisões proferidas em vez de uma sentença privativa de liberdade; na vigilância e rastreamento na comunidade de infratores que cometeram crimes sexuais; e com condenados que receberam liberdade condicional.
A decisão sobre quais infratores podem ser supervisionados com o sistema de ME leva em conta a compatibilidade da ordem judicial e uma avaliação de riscos e necessidades. Observamos que o ME é predominantemente utilizado para crimes de roubo, lesão corporal, crimes sexuais e crimes relacionados com drogas.
Além disso, para suspeitos, réus e condenados no contexto dos crimes mencionados acima, utilizamos predominantemente unidades GSM, em que a permanência em uma casa por períodos específicos é rastreada e unidades GPS, pelas quais o cumprimento da condição de não se aproximar de uma área específica é rastreado.
Vale a pena mencionar outro método de monitoramento eletrônico no qual ainda estamos trabalhando. Realizaremos verificação facial e de voz de suspeitos, pessoas acusadas e condenados e testaremos o uso desses dados em sua vigilância e rastreamento com base em suas responsabilidades através de um projeto piloto que estamos planejando iniciar.
Da mesma forma, estamos planejando integrá-lo ao atual sistema de monitoramento eletrônico e executá-lo a partir do mesmo centro. Se avaliarmos nossa experiência de 5 anos, vemos que os sistemas de ME são altamente funcionais na vigilância e rastreamento de tipos específicos de infratores e na execução de decisões no âmbito de proteção das vítimas.
Estamos muito satisfeitos que nossas quatro diferentes unidades de ME funcionais sejam operadas simultaneamente e a partir do mesmo centro. Isso é visto com atenção e admiração pelos sistemas de execução de sentenças de países estrangeiros.