EM electronic monitoring

O monitoramento eletrônico como uma forma de punição intermediária

As boas práticas mostram que o Monitoramento Eletrônico (ME) pode ser um instrumento interessante, especialmente se usado a serviço de uma estratégia de ressocialização. Esta ideia tornou-se o padrão europeu consagrado na Recomendação do Conselho Europeu sobre ME de 2014, infelizmente pouco debatida, mas de reconhecida importância mesmo fora do âmbito europeu. Nem sempre se tem verificado o cumprimento dos valores e regras implícitas nessa Recomendação, como se tem visto, por exemplo, no Reino Unido. A verdade é que a combinação das potencialidades da tecnologia com um trabalho social criterioso e orientado para a prevenção da reincidência não é tarefa fácil. Cada um dos dois termos da equação apresenta significativas dificuldades: por um lado, a compreensão da tecnologia e da sua utilização só se faz pela prática e é lenta; por outro, o trabalho social na modelação dos comportamentos humanos, em especial na área da prevenção criminal/execução de penas, tende a apresentar resultados nem sempre animadores.

Em Portugal, o esforço de construir um sistema de ME baseado na referida combinação foi bem-sucedido – apesar de estar longe de ser perfeito – atendendo aos resultados obtidos ao longo dos anos e à apreciável harmonia e eficiência do seu desempenho, bem aceitos pela sociedade e pela comunidade judiciária. 

Pode dizer-se que mesmo antes da Recomendação de 2014 Portugal já estava sintonizado com o seu teor, o que levou ao reconhecimento precoce da sua experiência pelos pares europeus e internacionais, bem como, no início desta década, à elaboração, por parte dos serviços de execução, a pedido da COMJIB (Conferência dos Ministros da Justiça de Países Iberoamericanos), de um “Guia de Implementação e Gestão de Sistemas de ME na América Latina – Transferência de Boas Práticas” .   

A ideia da integração do ME na área de liberdade condicional e reinserção social fez escola e hoje é a ideia padrão motriz na Europa. Todavia, a partir dela e de um bom conhecimento das tecnologias, da sua utilização e resultados, julgo ser possível abordar o ME de modo distinto, revendo conceitos e ideias. Nada há de surpreendente neste esforço de conceitualização, já que o ME acolhe habitualmente uma população pouco numerosa, logo, pela sua dimensão, não tem suscitado debate generalizado na criminologia. 

Na linha do que tenho defendido desde há cerca de uma década, julgo que um modo diferente de conceber o ME é compreendê-lo, ou interpretá-lo, como uma forma de punição intermediária entre o encarceramento e a liberdade condicional clássica, com características sistemicamente complementares, o que pode relevar para o desenho estratégico das políticas criminais, por parte dos Estados, e respetivas opções de investimento. 

Esta outra visão do ME, sendo distinta da ideologia hoje dominante – que deseja a integração da tecnologia na liberdade condicional – não o põe em questão nem o desvaloriza, procura apenas aprofundá-la.

Considero que este possível novo território punitivo, constituído pelo ME e por trabalho social consistente e devidamente orientado para a reintegração social dos infratores, poderia funcionar como uma forma de se relacionar com os outros territórios, descongestionando-os e/ou fortalecendo-os: se, por um lado, poderia criar soluções mais seguras e plausíveis para a gestão de certos tipos de alternativas penais na comunidade, decerto que, por outro, permitiria proceder a alguma descompressão do território prisional.

O reforço de alternativas ao encarceramento é hoje, generalizadamente, tido como necessário, mas subsistem reservas em alguns setores por não as considerarem seguras nem confiáveis. Ora, o ME poderia ser um elemento credenciador, nomeadamente na América Latina, alavancando um setor de alternativas penais na comunidade mais robusto e admissível. O ME poderia ser, também, um fator de descompressão dos sistemas de liberdade condicional que em muitos países se apresentam hoje saturados.

Paralelamente, o ME poderia favorecer o alívio dos sistemas prisionais, por regra laborando em esforço face às altas taxas de encarceramento e de superlotação na maioria dos Estados, em particular nos EUA, América Latina e leste europeu. A degradação generalizada dos números desde há vários anos – malgrado alguma inversão pontual – tem consequências negativas, como o acréscimo de despesa pública associada à superlotação prisional, a dificuldade ou impossibilidade de tratar adequadamente os presos e a erosão social e política daqui decorrentes. 

Em resumo, tratar-se-ia, pois, de imaginar o ME como um novo território punitivo estratégico, de características intermédias, que contribuiria para tratar melhor certos tipos de infratores, de risco médio, contribuindo para a reforma e regeneração dos territórios punitivos tradicionais – prisão e liberdade condicional – cuja indispensabilidade em momento algum se discute.

Esta visão do ME, como território punitivo autônomo e complementar, não está isenta de desafios. Salientam-se dois: haverá disponibilidade para políticos, técnicos e acadêmicos repensarem a arquitetura do sistema punitivo e, consequentemente, criarem um Direito conforme? Será excessivo atrevimento pensar o ME como uma ruptura com o dogma mental de grande expressão na tradição jurídica da “liberdade versus cárcere”?

Estes aspetos são cruciais porque, na verdade, a dicotomia liberdade-cárcere tem permanecido como paradigma penal, obedecendo a um raciocínio binário simples que se encontra em profunda contradição com a complexidade do mundo atual. Ora, na prática, o ME rompe objetivamente com esta lógica de (relativa) simplicidade: não realiza um controle incapacitante como a prisão, mas pode exercer um nível de controle elevado sobre um conjunto de variáveis e de indicadores de comportamento no tempo e no espaço, como a localização, o cumprimento de horários pré-estabelecidos e movimentos.

Seria interessante assistir a uma evolução de todo o sistema penitenciário (comunitário e prisional) e ver o Direito adaptar-se à realidade moldada por tecnologias, permitindo novas soluções situadas numa outra lógica – a da restrição de movimentos, fórmula genérica e inovadora que parece ser a mais adequada para designar a atividade ligada ao ME. Mais modestamente, e regressando à referida Recomendação do Conselho da Europa de 2014 sobre ME, já se poderia considerar um grande avanço se os seus termos penetrassem as práticas dos serviços e organizações públicas e empresas privadas. 

Com efeito, esta Recomendação estabelece parâmetros funcionais e éticos da maior relevância para tornar eficientes as operações de ME e, simultaneamente, criar deveres, responsabilidades e um ambiente de proteção de direitos e dos dados (aspecto tradicionalmente menorizado), que são em grande quantidade e de algum melindre, especialmente se decorrentes da tecnologia de GPS.

O ME podia constituir um elemento de reforço da segurança e da credibilidade de soluções de alternativas penais, mas apenas na medida em que ocorram em simultâneo dois fatores: os infratores sob monitoramento deverão situar-se em níveis de médio risco – nem excessivo nem, pelo contrário, insuficiente para justificar o uso de tecnologias invasivas de monitoramento, uma matéria que deve nos levar a pensar os mecanismos de seleção, nomeadamente relatórios prévios à decisão judicial; o segundo fator é o rigor das operações, algo que é frequentemente subvalorizado talvez em função de crenças mágicas relativamente à tecnologia, a par da subvalorização dos comportamentos dos infratores e da existência de protocolos de atuação realistas e rigorosos.

Notas: 
(1) Recommendation CM/Rec(2014)4 of the Committee of Ministers to member States on electronic monitoring (Adotado pelo Comitê de Ministros em 19 de fevereiro de 2014, na 1192º reunião de Ministros).
(2)
Infelizmente, não está mais disponível online.
(3)
Como eu tentei argumentar em “The Third Way: An Agenda for Electronic Monitoring in the Next Decade,” The Journal of Offender Monitoring, Vol. 24, no. 1, ed. Civic Research Institute. USA
(4)
Há várias razões para isso, incluindo uma política de alargamento da rede, como é tradicionalmente uma sobretaxa de prisão no território da prisão.

//

Nuno Caiado é técnico superior de reinserção social no sistema penitenciário português e trabalha na área de execução de penas desde 1983. Iniciou a sua carreira como técnico de base, depois foi coordenador de equipes de reinserção social comunitárias e passou por cargos de chefia em diversas áreas, tendo, entre 2003 e 2016, sido Diretor dos Serviços de Monitoramento Eletrônico. Tem vários artigos publicados (Portugal, Brasil, Chile e EUA), bem como realizou trabalhos na América Latina e na Turquia. Faz parte do grupo de peritos que prepara as conferências da Confederação Europeia de Liberdade Condicional (CEP) sobre Monitoramento Eletrônico, desde 2007. 

Este artigo é baseado na obra “Vigilância Eletrónica”. Organizado por Nuno Caiado e editado em 2017, este livro reúne um conjunto de artigos acerca da natureza do monitoramento eletrônico (ME), nomeadamente a ideia da constituição de um território punitivo complementar à prisão e à liberdade condicional, de boas práticas, aspectos legais e éticos e da utilização do ME no campo da violência doméstica. 

A maioria dos artigos é da autoria do próprio Nuno Caiado (dois em coautoria), publicados em Portugal e no estrangeiro. A obra conta ainda com um artigo do Professor André Lamas Leite – que o autor considera ser “talvez o mais clarividente e moderno penalista português” – que escreve sobre o ME e as tendências do pensamento criminológico e da política criminal, e com uma reflexão do Professor Mike Nellis, o maior perito mundial nesta matéria, que escreve sobre a relação entre o imaginário penal europeu e o ME. 

O prefácio é de João Figueiredo, Juiz do Tribunal Europeu de Contas.

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