Quando até respirar é um desafio: A abordagem do CICV para os desafios sistêmicos na detenção

Entrevista

Terry Hackett

Chefe da Divisão de Pessoas Privadas de Liberdade do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV)

Como parte de sua missão humanitária mais ampla, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) desempenha um papel essencial na proteção da dignidade das pessoas privadas de liberdade, trabalhando para garantir tratamento humano e condições de vida adequadas. A organização aborda os desafios sistêmicos em ambientes de detenção, como superlotação, infraestrutura obsoleta e riscos à saúde pública, ao mesmo tempo em que defende soluções sustentáveis.

Nesta entrevista, Terry Hackett, Chefe da Divisão de Pessoas Privadas de Liberdade, compartilha sua perspectiva sobre os esforços do CICV para aprimorar o sistema penitenciário. Ele discute a abordagem baseada em princípios no planejamento e design de unidades penitenciárias, destacando a colaboração com as autoridades para enfrentar desafios críticos.

Você pode nos falar mais sobre o foco do trabalho do CICV em ambientes de detenção?

TH: Nosso mandato humanitário em ambientes de detenção tem como foco a prevenção de desaparecimentos forçados e maus-tratos, além da melhoria das condições para pessoas privadas de liberdade em contextos de conflito armado e outras situações de violência. Atuamos como uma entidade neutra, imparcial e independente, e a base do nosso trabalho são as visitas a unidades penitenciárias, delegacias de polícia e instalações militares de detenção ou internação. Nossas equipes incluem especialistas em bem-estar e tratamento de detentos, profissionais de saúde, engenheiros, ex-gestores do sistema penitenciário e outros especialistas, como nutricionistas.

Durante nossas visitas, examinamos a situação geral das pessoas detidas, começando pela unidade penitenciária, incluindo salvaguardas processuais e garantias judiciais. Também procuramos entender como os detentos são tratados, sua conexão com suas famílias, seu acesso a serviços essenciais, como assistência médica, e, é claro, o ambiente em que são mantidos.

Fazemos isso por meio de observações diretas e, mais importante, conversando com as pessoas detidas de forma privada e confidencial para entender suas preocupações. Também conversamos com as pessoas que trabalham no local de detenção para entender sua perspectiva e os desafios que enfrentam ao administrar a instalação.

Considerando tudo o que observamos e ouvimos, discutimos as questões humanitárias identificadas, bem como as soluções práticas com a autoridade de detenção de forma bilateral e confidencial. Também trazemos recomendações concretas, com base em estruturas ou padrões legais nacionais e internacionais. Dependendo das circunstâncias, também podemos oferecer assistência técnica para ajudar as autoridades a lidar com as causas básicas dos problemas que identificamos.

É importante esclarecer que visitamos regularmente os locais de detenção onde trabalhamos, pois nosso engajamento se baseia em um compromisso e engajamento contínuos com os detentos, funcionários, e outras autoridades. Em alguns casos, também acompanhamos pessoas que foram detidas após sua libertação ou suas famílias para entender como a detenção as afetou.

Para que você tenha uma ideia da abrangência do nosso trabalho, em 2023 o CICV colaborou com aproximadamente 120 autoridades penitenciárias em 84 países, realizando 2.618 visitas a 885 locais de detenção ao redor do mundo.

Em 2023 o CICV colaborou com aproximadamente 120 autoridades penitenciárias em 84 países, realizando 2.618 visitas a 885 locais de detenção ao redor do mundo.

Do ponto de vista do CICV, atualmente, quais são algumas das restrições de infraestrutura mais comuns nos sistemas penitenciários? Como esses desafios afetam a dignidade e o tratamento humano das pessoas privadas de liberdade?

TH: Em todo o mundo, o CICV continua a encontrar infraestruturas coloniais antiquadas e frequentemente mal mantidas, que impactam negativamente a dignidade e a saúde das pessoas privadas de liberdade. Em muitos dos países onde o CICV está presente, a já frágil infraestrutura foi ainda mais degradada por anos de conflito e falta de financiamento. Mais de 55% dos sistemas prisionais ao redor do mundo operam acima de sua capacidade, e a superlotação impõe pressões adicionais sobre sistemas já inadequados de água, saneamento e ventilação.

A falta de investimento na manutenção da infraestrutura penitenciária afeta não apenas a dignidade e a saúde das pessoas privadas de liberdade, mas também a dos funcionários das unidades penitenciárias e das comunidades vizinhas. A escassez de água potável e os sistemas de saneamento obstruídos, que resultam em infestações de vermes, representam graves problemas de saúde pública que se estendem além dos portões da instituição. A ausência de ventilação adequada, combinada com calor extremo e superlotação severa, resulta em condições sufocantes, onde o simples ato de respirar se torna um desafio. Além disso, as doenças transmissíveis impactam todos que vivem e trabalham nesse ambiente e podem se tornar um problema de saúde pública ainda maior, sendo potencialmente disseminadas por funcionários e visitantes. Como você pode imaginar, os impactos dessas condições sobre a saúde mental também são devastadores.

Quando novas instalações são construídas, elas costumam ser guiadas por políticas ou por decisões de um estado doador, em vez de um planejamento participativo e baseado em evidências. Isso significa que pessoas com experiência de vida na detenção, funcionários do sistema penitenciário e comunidades locais frequentemente não são incluídos no processo de projeto. Além disso, muitas dessas unidades são construídas longe de serviços essenciais e centros de transporte, criando desafios logísticos para a administração e dificultando significativamente a visitação familiar.

Como qualquer pessoa que já administrou um estabelecimento penitenciário sabe, a infraestrutura pode definir os regimes diários e desviar recursos humanos valiosos de funções críticas de segurança dinâmica para postos estáticos. Além disso, estruturas mal projetadas ou mal mantidas representam desafios significativos para o cumprimento das Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Pessoas Privadas de Liberdade, conhecidas como Regras de Nelson Mandela.

Os riscos ambientais e climáticos também têm impactos significativos não apenas sobre a infraestrutura, mas também, é claro, sobre a segurança e a saúde das pessoas privadas de liberdade e dos funcionários da unidade. No entanto, apesar de sua alta suscetibilidade aos riscos ambientais e climáticos, os locais de detenção geralmente ficam para trás quando se trata de gestão de risco de desastres ou medidas de mitigação.

Quais são as prioridades do CICV ao colaborar com as autoridades para lidar com essas questões? Quais abordagens se mostraram mais impactantes?

TH: Nossas prioridades são definidas com base nas necessidades humanitárias mais urgentes que identificamos durante nossas visitas aos locais de detenção. Isso pode incluir a garantia de um tratamento digno aos detentos, a melhoria do contato com suas famílias ou a ampliação do acesso a serviços essenciais, como assistência médica, água potável e alimentação adequada.

Muitas vezes, as causas fundamentais dos problemas que identificamos são de natureza sistêmica e exigem uma abordagem de longo prazo que se baseie na capacidade existente das autoridades para encontrar soluções sustentáveis e de âmbito local.

No caso específico da infraestrutura, nosso trabalho para identificar e trabalhar com as autoridades para tratar de preocupações sistêmicas e desenvolver a capacidade local é multifacetado e, obviamente, depende do contexto. Nossas abordagens podem incluir a facilitação de discussões ou revisões de projetos planejados, o que faz com que as autoridades percebam que precisam desenvolver seus próprios padrões locais, em vez de aceitar um modelo de cortar e colar de outro contexto.

O CICV também trabalha regionalmente para conectar várias autoridades e aproveitar seu conhecimento coletivo para resolver problemas comuns. O CICV é um parceiro estratégico do conselho da Conferência Asiática de Instalações Correcionais para Arquitetos e Planejadores (ACCFA). Também co-organizamos, com vários países anfitriões um Workshop anual sobre Infraestrutura Prisional na África (WPIA). Como parte do WPIA, nossas equipes trabalharam com 26 países africanos para desenvolver e publicar um Guia de Manutenção de Prisões que se baseia em abordagens e soluções locais projetadas para apoiar as autoridades penitenciárias a desenvolver ou melhorar seu sistema existente de manutenção de infraestrutura.

Em relação aos riscos e desafios climáticos, com base na análise regional na Ásia mencionada anteriormente, o CICV, em parceria com as autoridades penitenciárias das Filipinas, desenvolveu o projeto Prisoners of Climate Change. Esse projeto, fundamentado em consultas com pessoas privadas de liberdade, funcionários de unidades penitenciárias e outros envolvidos, busca identificar riscos climáticos e implementar uma série de medidas de mitigação. Essas ações abordam aspectos de gestão, saúde e infraestrutura, fortalecendo a resiliência dos locais de detenção, com o objetivo de aplicar as lições aprendidas a outros contextos na região e, possivelmente, em escala global.

Na América Latina, o CICV tem apoiado o projeto Critérios para Padrões Técnicos em Instalações de Detenção (CETIP), que está sendo desenvolvido por e para países da região. O projeto tem o objetivo de ajudar as autoridades penitenciárias da região a melhorar a gestão dos estabelecimentos penitenciários por meio da criação de um guia e de uma abordagem para a infraestrutura e o design das unidades, alinhados com as normas internacionalmente reconhecidas de direitos humanos. O manual da CETIP será publicado em 2025, após anos de desenvolvimento com a colaboração dos países participantes

No entanto, eu diria que a base do trabalho do CICV em relação ao planejamento e projeto de infraestrutura, globalmente, é a publicação de 2018 “Towards Humane Prisons: A Principled and Participatory Approach to Prison Planning and Design”.

Você poderia descrever os princípios fundamentais do Towards Humane Prisons e como eles diferem dos modelos tradicionais de desenvolvimento de unidades penitenciárias?

TH: Em primeiro lugar, a publicação está fundamentada na ideia de que qualquer plano de expansão das unidades penitenciárias deve envolver uma análise do sistema de justiça criminal como um todo, para garantir que a prisão seja utilizada apenas como último recurso.

Quando se determina que há de fato a necessidade de uma nova infraestrutura ou de substituir as existentes, uma mudança de paradigma em termos de planejamento e projeto é fundamental para que as autoridades penitenciárias tornem as unidades penitenciárias mais humanas. O modelo tradicional de desenvolvimento é geralmente orientado pela necessidade de aumentar a capacidade, e não pelas necessidades das pessoas privadas de liberdade e da comunidade em geral. 

O livro Towards Humane Prisons apresenta uma abordagem baseada em princípios, derivada das Regras de Nelson Mandela e de outras normas internacionais de direitos humanos, que muda a perspectiva de paredes e celas para pessoas e propósitos. Essa abordagem é baseada em quatro princípios principais: Não causar danos, Manter um máximo de normalidade, Promover a saúde e o crescimento pessoal e Manter fortes conexões com a sociedade.

No centro da metodologia está uma abordagem participativa, que assegura a inclusão das pessoas com experiência vivida em detenção, dos funcionários do estabelecimento penitenciário, das comunidades locais e de outras partes interessadas desde o início do processo de planejamento e projeto.

As necessidades, o propósito e a visão devem orientar o projeto, e não o efeito oposto que descrevi anteriormente, em que uma infraestrutura penitenciária mal planejada afeta negativamente o tratamento e a dignidade das pessoas privadas de liberdade.

Obviamente, o tratamento humano e o respeito à dignidade vão muito além de uma infraestrutura bem planejada, projetada e construída. Uma administração penitenciária eficaz, fundamentada nas Regras de Nelson Mandela, em outras normas internacionais e na legislação nacional, com supervisão independente robusta, é essencial. No entanto, ao adotar essa abordagem participativa e baseada em princípios, o CICV acredita que o ambiente construído pode fornecer uma base sólida para unidades penitenciárias humanitárias.

Quais são os desafios que o CICV vê na aplicação universal desses princípios em diferentes países e contextos? Em sua opinião, qual deve ser o papel da cooperação internacional no apoio a esses projetos em países com poucos recursos?

TH: Os princípios descritos em Towards Humane Prisons são universais e podem, de fato, ser aplicados em qualquer país e adaptados a qualquer contexto cultural ou socioeconômico. Entretanto, a vontade política e uma forte liderança por parte das autoridades penitenciárias é, obviamente, um fator essencial. Com muita frequência, testemunhamos a politização da detenção, o que pode inibir uma abordagem inclusiva e participativa do planejamento e do design das unidades penitenciárias. Além disso, é importante garantir que os princípios sejam aplicados desde o início de qualquer processo de planejamento, pois é muito mais fácil e econômico alterar uma linha em um projeto do que mover ou modificar uma parede depois de construída.

O papel da cooperação internacional deve ser de facilitação, não de imposição. É fundamental que os modelos de projeto não sejam simplesmente importados de maneira padronizada, mas que soluções sustentáveis e locais sejam desenvolvidas e implementadas, adaptadas ao contexto, aos riscos climáticos e aos recursos disponíveis. Uma maior cooperação e coordenação entre as agências também são essenciais para otimizar recursos e fortalecer o comprometimento das autoridades locais. Por fim, uma abordagem participativa e baseada em princípios por todos os envolvidos no desenvolvimento de novas infraestruturas servirá como uma base sólida para garantir um ambiente penitenciário mais humano.

Terry Hackett

Chefe da Divisão de Pessoas Privadas de Liberdade do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV)

Terry Hackett tornou-se o chefe da Divisão de Pessoas Privadas de Liberdade do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) em Genebra em 2022. Ele ingressou no CICV em 2018 como consultor do sistema penitenciário após uma carreira de 22 anos no Serviço Penitenciário do Canadá (CSC), incluindo funções como diretor de várias instalações e vice-comissário assistente de operações correcionais (Pacífico). Terry possui diplomas avançados em Direito Internacional de Conflitos Armados (Academia de Direito Humanitário Internacional e Direitos Humanos de Genebra), Segurança Humana e Construção da Paz (Royal Roads University) e bacharelado em Psicologia (Trinity Western University).

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