Sobre o uso da prisão provisória: contribuições de especialistas da Europa e mais além

Leia o artigo desta edição sobre a o uso excessivo da prisão provisória na Europa e no mundo.

A aplicação da prisão provisória e a disponibilidade de medidas alternativas são um tema fundamental para a União Internacional de Juízes.

José Igreja Matos, Juiz e Presidente da União Internacional de Juízes

José Igreja Matos

Juiz e Presidente da União Internacional de Juízes

Para os juízes, as questões em torno da prisão provisória vão muito além de ser um tema importante. Esta é mesmo uma questão fundamental no exercício do nosso cargo porque o que está em causa é decidir em que circunstâncias privar um indivíduo da sua liberdade.

 
A aplicação da prisão provisória e a disponibilidade de medidas alternativas estão regularmente em discussão nas reuniões entre magistrados e são também um tema chave para a União Internacional de Juízes.
 
Devemos ter em conta que, quando se trata da resposta pública às decisões sobre a prisão provisória nos tribunais, somos confrontados com dois pontos de vista diametralmente opostos. Um deles é o ponto de vista muito comum, de quem vê a libertação do acusado como uma falta de ação por parte do sistema judicial, contribuindo assim para um sentimento geral de impunidade. O outro é o de quem leva em consideração os direitos básicos dos arguidos e que promove o uso de medidas alternativas.
 

A nossa prioridade é garantir a proteção destes direitos, assegurando a comparência imediata do arguido perante um juiz e e reservando o recurso à prisão provisória como a última entre as alternativas disponíveis. Para além da questão da aplicação da prisão provisória, creio que também há trabalho a fazer, globalmente, para melhorar as condições de detenção neste regime. Mesmo nos casos em que a prisão provisória se justifica, há muitos países em que os acusados são mantidos em condições problemáticas.

Embora isso possa acontecer em alguns países, o uso limitado de alternativas não se deve necessariamente à falta de opções.

Walter Hammerschick, Vice-diretor do Departamento de Sociologia Aplicada de Direito e Criminologia da Universidade de Innsbruck, na Áustria

Walter Hammerschick

Vice-diretor do Departamento de Sociologia Aplicada de Direito e Criminologia da Universidade de Innsbruck, na Áustria 
Juízes e promotores frequentemente se referem à prisão provisória como a forma mais segura quando são necessárias medidas para garantir o andamento do processo ou prevenir novos crimes. A prisão provisória pode ser necessária em alguns casos e não podemos ignorar o fato de que sempre haverá situações em que é preciso manter o indivíduo sob custódia. No entanto, considerar, em geral, a prisão provisória como o caminho seguro preferencial ignora os princípios legais fundamentais que são mantidos na União Europeia e fora dela, já que entre eles estão os da presunção de inocência, ultima ratio e proporcionalidade.
 
Pode parecer redundante ressaltar repetidamente a necessidade de medidas que aumentem a conscientização sobre direitos humanos e os princípios legais fundamentais mencionados acima. Juízes e promotores às vezes tomam como um insulto se sua adesão a esses valores é questionada. As violações dos direitos, no entanto, não necessariamente acontecem de propósito; muitas vezes ocorrem devido a uma interação de condições estruturais, necessidades práticas e falta de informação. Defender esses princípios em tais situações pode exigir uma mentalidade muito clara, que precisa de reforço, apoio e possibilidade de reflexão. 
 
Dos resultados obtidos no projeto PRE-TRIAD, conclui-se que é recomendado prestar mais atenção a esses problemas que estão influenciando a prática judicial. Ligado a isso, está uma questão bem conhecida, a de que as decisões sobre a prisão provisória são tomadas partindo de muito pouco conhecimento sobre os réus, suas famílias e suas condições socioeconômicas de vida. Um apoio profissional que proporcione mais e melhores informações nesse sentido pode melhorar a qualidade das decisões e apoiar a aplicação de alternativas adequadas.
 
Embora isso possa acontecer em alguns países, o uso limitado de alternativas não se deve necessariamente à falta de opções. Muitas vezes, também se deve à falta de confiança em tais medidas por parte dos profissionais, causadas pela falta de informação e pouco ou nenhum dado empírico que forneça orientação. O fornecimento periódico de dados empíricos sobre práticas de prisão provisória e pesquisas sobre alternativas, incluindo seus pontos fortes, limitações e necessidades de melhoria ou desenvolvimento, tem o potencial de criar práticas informadas. Por sua vez, tal abordagem incentiva e apoia o uso de medidas alternativas ao encarceramento com mais frequência e de forma orientada a metas.
 

É claro que o apoio ativo de um base de alta qualidade para tomada de decisões e um uso mais frequente e bem direcionado de alternativas exige recursos. Tais investimentos, no entanto, facilmente compensam no longo prazo, já que podem ajudar a evitar a prisão provisória com mais frequência e, assim, alcançar economias monetárias significativas em várias áreas.

Lidar de forma eficaz com o uso excessivo da prisão provisória tem de começar com uma compreensão clara das causas e dos contextos desta prática num determinado ambiente.

Ioan Durnescu, Professor na Universidade de Bucareste, Faculdade de Sociologia e Trabalho Social e Coeditor do European Journal of Probation (Revista Europeia de Liberdade Condicional)

Ioan Durnescu

Professor na Universidade de Bucareste, Faculdade de Sociologia e Trabalho Social e Coeditor do European Journal of Probation (Revista Europeia de Liberdade Condicional)
A redução da prisão provisória é uma prioridade máxima para a Comissão Europeia, vários Estados, e muitos indivíduos que procuram justiça. Basta olhar para jurisdições como a Áustria, Luxemburgo, ou Holanda, por exemplo, para ver que a proporção da população prisional em prisão provisória gira em torno de 20 e 46% [1]. Se olharmos para a utilização da prisão provisória entre presos estrangeiros, a realidade é ainda mais dramática.
 
Como vimos em muitos documentos e estudos comparativos [2] [3], diferentes jurisdições adotaram soluções distintas para lidar com esta medida preventiva. Isto deve-se principalmente ao fato de as práticas em torno da prisão provisória estarem profundamente enraizadas no contexto cultural e penal de um determinado país.
 
As fontes do uso excessivo podem diferir entre jurisdições. Pode dever-se a um número desproporcionado de estrangeiros envolvidos no crime, a uma criminalização excessiva do consumo de drogas, a uma política penal centrada na prisão, a uma longa história de atitudes punitivas entre os magistrados ou a qualquer outro número de outras razões.
 
Por conseguinte, lidar eficazmente com o uso excessivo da prisão provisória deve começar com uma compreensão clara das causas e dos contextos desta prática num determinado ambiente. As soluções devem envolver todas as partes interessadas, incluindo decisores políticos, peritos penais, organizações judiciárias e instituições de ensino.
 
Em muitos casos, os organismos supranacionais, tais como o Parlamento Europeu, o Conselho da União Europeia ou o Conselho da Europa, desempenham um papel significativo na formação da prática em torno da prisão provisória. A jurisprudência proveniente de tribunais europeus como o Tribunal do Luxemburgo (ver o caso Milev) ou o TEDH (ver Merabishvili v. Geórgia) desempenha um papel cada vez mais crítico na restrição do uso desta medida.
 
Penso que dois aspectos mereciam maior atenção, pelo menos no contexto europeu: a dimensão cultural desta prática e o sentimento do público em geral.
 
Quando falo da dimensão cultural, refiro-me a uma dependência entre alguns juízes de uma abordagem “business-as-usual” (fazer como de costume) ou a uma visão mais punitiva do recurso à detenção pré-julgamento. Para alguns, a medida é uma forma de sentença rápida que excede o quadro de normas europeias.
 
A pressão pública também pode ser um fator extrajudicial crítico que pode impactar na prática. Uma mentalidade pública excessivamente punitiva poderia levar à expectativa de uma utilização disciplinar da prisão provisória.
 

Como qualquer outra mudança social, reduzir o uso da prisão provisória é um processo que levará tempo. Para este fim, o levantamento de dados mais sofisticados para monitorar e avaliar a dinâmica do fenômeno poderia ser benéfica. Pode revelar-se útil, por exemplo, ter dados mais segmentados sobre o uso da prisão provisória por determinado crime ou gênero de quem cometeu, etc.

O uso excessivo da prisão provisória contribui não só para a superlotação e deterioração das condições prisionais, mas também compromete o Estado de Direito em toda a Europa

Norman L. Reimer, CEO global, Fair Trials

Norman L. Reimer

CEO global, Fair Trials
Tal como mostrou o relatório de 2016 da Fair Trials – A Measure of Last Resort? The practice of pretrial detention decision-making in the EU (“Uma medida de último recurso? A prática do processo de decisão de prisão provisória na União Europeia”) – a prisão provisória é usada rotineiramente em países da Europa e contribui para uma crise persistente nas prisões europeias.
 
Isto continua sendo um grande problema em toda a União Europeia (EU). Uma pesquisa da Fair Trials publicada no ano de 2021 mostrou que, em 2020, as taxas de prisão provisória aumentaram entre os Estados-membros da UE, apesar dos graves riscos à saúde originados pela detenção de pessoas durante a pandemia da COVID-19. Isso contribui não só para a superlotação e deterioração das condições prisionais, mas também compromete o Estado de Direito em toda a região. A Fair Trials respondeu com um roteiro abrangente, delineando as ações que a UE deve tomar para enfrentar esta crise.
 

O peso da ação penal, muitas vezes somada à prisão provisória e eventual imposição de uma pena privativa de liberdade, é o meio mais desumano e menos eficaz de lidar com desafios que devem ser tratados de outras formas, como cuidados médicos ou de saúde mental, educação, redução da pobreza e soluções de habitação.

O nosso Serviço tem apoiado a aplicação de sansões e medidas alternativas como ferramenta eficaz de uma política de justiça criminal moderna.

Andrea Matoušková, Diretora-Geral do Serviço de Liberdade Condicional e Mediação da República Tcheca

Andrea Matoušková

Diretora-Geral do Serviço de Liberdade Condicional e Mediação da República Tcheca
Atualmente há uma tendência muito clara em toda a Europa de aplicar sanções e medidas alternativas sempre que possível. Estamos sendo levados a aplicar sanções alternativas da forma mais ampla possível, não apenas por razões econômicas, pois a prisão é o tipo mais caro de sentença, mas também pelos últimos achados da criminologia, que descrevem o processo de desistência. 
 
É necessário ter uma cooperação que funcione bem entre todos os parceiros atuantes no campo da justiça criminal.  Portanto, por vinte anos nosso Serviço tem aplicação sanções e medidas alternativas como ferramenta eficaz de uma política de justiça criminal moderna. 
 
Há anos, nos esforçamos para estabelecer as bases para que promotores e juízes apliquem sanções e medidas alternativas na prática da forma mais ampla possível. Na fase de pré-julgamento, criamos as condições e realizamos a execução da supervisão de liberdade condicional nos casos em que o tribunal substitua a custódia por essa medida.

A privação da liberdade anterior à condenação é limitada, em termos excepcionais, como medida de último recurso.

José Lopes da Mota, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, Portugal

José Lopes da Mota

Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, Portugal
[Em Portugal] A privação da liberdade anterior à condenação é limitada, em termos excepcionais, como medida de último recurso. Temos critérios legais muito exigentes, cuja aplicação é feita caso a caso e requer adequada fundamentação. 
 
A partir da minha experiência, identificaria dois aspetos em que me parece possível introduzir melhorias significativas com efeitos imediatos: no regime de revisão da medida e no regime de recursos.
Tal evolução permitiria reforçar a proteção dos direitos individuais do preso provisório e a gestão e eficácia do processo. A revisão obrigatória da medida, que atualmente é trimestral, poderia ser feita em períodos mais curtos, de dois meses, em debate oral e contraditório, com a presença obrigatória da pessoa, que facilmente pode ser assegurada pelo menos através de videoconferência.
 
Por sua vez, o regime de recurso carece de simplificação e de aceleração, para evitar a inutilidade de decisões de recurso posteriores à revisão da medida. Os prazos deveriam ser substancialmente reduzidos, o julgamento deveria privilegiar a oralidade, à semelhança do que sucede com o habeas corpus, e a decisão poderia ser também simplificada, oral e gravada. Isto conferiria maior celeridade ao processo e reduziria o tempo de prisão provisória ao mínimo indispensável. 
 

Simultaneamente haveria que providenciar pelo apoio à decisão de aplicação e manutenção da prisão provisória. Uma adequada aplicação das normas de direito internacional e de recomendações da ONU e do Conselho da Europa convoca a participação de serviços encarregados da colocação em liberdade antes do julgamento.

Temos destacado constantemente que o uso excessivo da prisão provisória tem um impacto negativo

Dan Halchin, Diretor-geral da Administração Penitenciária da Romênia

Dan Halchin

Diretor-geral da Administração Penitenciária da Romênia
No que diz respeito à prisão, temos destacado constantemente que o uso excessivo da prisão provisória tem um impacto negativo, principalmente por causar superlotação. Além disso, dada a incerteza relacionada a essa categoria de detentos, a execução da pena e o planejamento de programas de ressocialização ficam em suspenso neste período. Em 2003, quando nossa população prisional total excedeu 48 mil presos, a Romênia introduziu uma disposição legal com alterações específicas que tratavam da prisão cautelar. Após esse projeto de lei, houve uma queda nos presos provisórios de 3.753 para 3.037.
 
Após a entrada em vigor do Novo Código Penal e do Novo Código de Processo Penal, em 1º de fevereiro de 2014, as novas medidas preventivas adotadas resultaram em uma redução de quase 50% no número de detentos em prisão cautelar.
 
Esse feito tem sido alcançado através da aplicação de medidas alternativas ao encarceramento pelos tribunais, como supervisão judicial e prisão domiciliar. Atualmente, temos cerca de 2,4 mil pessoas sob custódia.
 

Em 2020, o Parlamento romeno aprovou um novo projeto de lei que prevê uma base legal e diretrizes para implementar o monitoramento eletrônico dos infratores como medida alternativa à prisão. Estamos  trabalhando atualmente na implementação deste projeto em cooperação com o Ministério da Administração Interna, a Diretoria de Liberdade Condicional e o Serviço de Comunicação Governamental. Estamos confiantes de que, uma vez que este sistema esteja em vigor, o número de presos provisórios reduzirá ainda mais.  

Um dos principais desafios, que persiste até hoje, é neutralizar a narrativa equivocada de que a audiência de custódia existe para soltar pessoas e para aumentar a impunidade.

Luís Geraldo Lanfredi, Juiz Auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça, Brasil

Luís Geraldo Lanfredi

Juiz Auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça, Brasil
Em 2015, o Brasil introduziu as Audiências de Custódia. Além de permitir o contato célere da pessoa presa com a autoridade judicial, as audiências de custódia passaram a fornecer mais elementos para que juízas e juízes, com a participação da defesa e do Ministério Público, analisassem o contexto de cada prisão efetuada, deliberando quando a prisão preventiva era ou não necessária. Um dos principais desafios, que persiste até hoje, é neutralizar a narrativa equivocada de que a audiência de custódia existe para soltar pessoas e para aumentar a impunidade. 
 
Em primeiro lugar, esse procedimento judiciário não alterou a legislação criminal – pelo contrário, existe para reforçar a aplicação da lei penal e da Constituição no caso concreto no momento em que a prisão é realizada, pois abuso de autoridade também é um crime previsto no ordenamento brasileiro. Além disso, não existe se falar em impunidade se as pessoas em liberdade provisória ou com alguma medida cautelar seguem respondendo ao processo.
 
Para uma sociedade acostumada a entender o encarceramento como principal resposta para a insegurança e o medo, a manutenção de quaisquer prisões provisórias parece um atalho satisfatório, ainda que não se reflita sobre quem são essas pessoas que estão adentrando as prisões, por quais crimes e, sobretudo, como sairão de lá depois.  

References
 
[1] World Prison Brief, 2022.
[2] W. Hammerschick, C. Morgenstern, S. Bikelis, M. Boone, I. Durnescu, A. Jonckheere, J. Lindeman, E. Maes, M. Rogan, DETOUR – Towards Pretrial Detention as Ultima Ratio. Comparative report. Vienna: Institut für Recht – und Kriminalsoziologie, 2017.

 

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