Prática Notável – Cidade de Nova York
Programa de Liberdade Condicional Supervisionada
Centro de Inovação Judicial (Center for Court Innovation), EUA
Nos últimos anos, comunidades em todo os Estados Unidos começaram a enfrentar um grande problema social: meio milhão de pessoas se encontram em prisão preventiva em centros de detenção locais, espalhados por todo o país (1).
De forma geral, esses indivíduos foram acusados de cometer um crime, mas não foram condenados. Em outras palavras, eles estão simplesmente esperando para serem julgados.
Para muitos, a razão pela qual estão presos é porque um juiz fixou um valor de fiança – uma quantia que um réu em um processo criminal deve pagar como garantia para de sua liberdade, enquanto seu caso está pendente.
Em teoria, a fiança incentiva a comparecer ao tribunal e evitar novas detenções. Na prática, significa que apenas aqueles, entre os acusados, que conseguem pagar a fiança podem comprar sua liberdade provisória. Todos os outros, todas as pessoas que não têm recursos suficientes, permanecem presos.
Esse processo é injusto e agrava as desigualdades raciais em todo o sistema de justiça criminal. Também acarreta danos a longo prazo: as pessoas em prisão preventiva são isoladas de suas famílias, de seus empregos e apoios comunitários.
Entre outras coisas, a pesquisa (2) mostrou que mesmo um curto período de detenção preventiva pré-julgamento aumenta a probabilidade de uma pessoa reincidir, na atividade criminosa, no futuro.
Estadunidenses de todas as crenças políticas passaram a reconhecer a necessidade urgente de tornar este sistema mais eficaz, justo e equitativo.
Mas o que deve substituí-lo? Como o interesse público na administração eficiente da justiça pode ser equilibrado com a necessidade de dar a todos a oportunidade de permanecerem livres enquanto seu caso está pendente?
Um número crescente de cidades e estados em todo os EUA estão respondendo a esse desafio mudando suas leis para diminuir a fixação de fiança e, em vez disso, considerar o risco de uma pessoa não comparecer ao julgamento ou ser detida novamente. Assim, a decisão sobre liberdade provisória é tomada com base nessas informações.
A cidade de Nova York tornou-se líder nacional nos últimos anos na redução da prisão preventiva.
Historicamente, juízes da cidade concederam liberdade à maioria das pessoas acusadas de crimes sem fixar fiança ou impor outras condições — uma medida conhecida como libertação por conta própria, ou “ROR” (da sigla em Inglês de Release On your own Recognizance). A esmagadora maioria das pessoas sob essa medida cumpre as ordens de comparecimento ao tribunal.
Com base nesse caso de sucesso, em 2009 Nova York iniciou um teste piloto de um novo programa para permitir que pessoas, que, de outra forma, teriam sido sujeitas a pagar fiança ou a permanecer em prisão preventiva, fossem libertadas sob condições específicas de supervisão.
Conhecido como Liberdade Condicional Supervisionada, o programa exige que pessoas se apresentem para verificações periódicas, com gerentes de casos em contexto comunitário. Esses funcionários prestam serviços de apoio e efetuam conexões voluntárias a recursos que ajudam a ultrapassar as barreiras para comparecer ao tribunal.
Durante esse período, a elegibilidade para o programa de Liberdade Condicional Supervisionada abrangeu apenas pessoas acusadas de crimes menores, conhecidos como contravenções, e crimes mais graves , mas apenas os não violentos. (3)
Depois que os dados iniciais mostraram resultados encorajadores em Queens (4), Manhattan (5) e Brooklyn (6) — incluindo a redução da população em prisão preventiva sem aumento no risco de não comparecimento ao tribunal — o programa foi expandido para todos os cinco distritos da cidade de Nova York.
Esta expansão para toda a cidade aconteceu à medida em que os esforços locais para reduzir a prisão preventiva eram cada vez mais urgentes e enquanto o programa de Liberdade Condicional Supervisionada tornou-se um pilar essencial no plano do governo de fechar Rikers Island, o complexo prisional notoriamente inseguro da cidade de Nova York.
Então, em 2020, uma nova lei de reforma entrou em vigor no estado de Nova York, projetada para reduzir significativamente a prisão preventiva em todo o estado, restringindo drasticamente o uso de fiança, exceto em certos casos (as principais exceções são para crimes violentos graves).
Quando um juiz identifica um risco de que o indivíduo não compareça ao tribunal, a lei exige que o tribunal imponha a condição “menos restritiva” necessária para garantir o comparecimento, como lembretes de datas judiciais ou supervisão pré-julgamento.
Ao contrário de algumas outras jurisdições, o estado de Nova York proíbe considerar a “periculosidade” (o grau de perigo) ou probabilidade de uma nova detenção na decisão de liberação provisória. Esta decisão baseou-se, em parte, na preocupação de que tal norma reforçaria as históricas desigualdades raciais sobre a quem é concedida a liberdade provisória até o julgamento.
À medida que as reformas legislativas estaduais entraram em vigor em 2020, a cidade de Nova York eliminou todas as restrições de elegibilidade para a Liberdade Condicional Supervisionada. Isso levou a uma expansão significativa do programa, que é financiado de forma centralizada pela cidade e atualmente gerenciado por quatro diferentes provedores sem fins lucrativos. (7)
Em 2021, o programa atendeu mais de 12.000 pessoas em toda a cidade, um incremento de várias centenas de participantes por ano em relação à fase de teste piloto de uma década atrás.
Na prática, um juiz ordenará a Liberdade Condicional Supervisionada se acreditar que um indivíduo representa risco de fuga de sua jurisdição. Cada juiz tem à sua disposição os resultados de uma avaliação de “Não comparecimento” (8) — uma ferramenta validada que mede a probabilidade de uma pessoa comparecer no tribunal.
Essa avaliação é feita junto com a gravidade da acusação (que determina se, de acordo com a lei, é possível fixar fiança ou decretar prisão preventiva) para atribuir um indivíduo a um dos cinco níveis de supervisão possíveis.
A supervisão começa imediatamente após o ingresso no programa e os participantes são designados para um gerente de caso.
A atribuição da supervisão a assistentes sociais e gerentes de casos provenientes de organizações locais, sem fins lucrativos, distingue a cidade de Nova York de outras jurisdições, que utilizam policiais nessa função.
Os gerentes de casos são capacitados para reconhecer necessidades e conectar os participantes a serviços voluntários, em suas comunidades, que possam atender a essas necessidades.
E os prestadores de serviços do programa contam com redes de prestadores parceiros, especializados em assistência às necessidades de moradia, saúde mental, tratamento de uso de substâncias e emprego. Essas redes robustas permitem que a equipe do programa proporcione respostas individualizadas a cada participante do programa ao longo de seu caso.
Nas verificações, os gerentes de casos lembram os participantes do programa das próximas datas judiciais, os incentivam a seguir as ordens judiciais e discutem quaisquer barreiras para comparecer ao julgamento ou participar das verificações.
Se necessário, os participantes receberão recursos para pagar o transporte e um telefone para garantir uma comunicação estável. Para muitos, esses pontos de contato regulares são cruciais.
Outro elemento-chave do programa é a comunicação regular entre os funcionários do programa e o tribunal. Usando um formulário de conformidade padrão, os funcionários informam ao juiz, ao promotor e ao advogado de defesa, antes de cada data do tribunal, se o participante cumpriu todas as verificações e outros requisitos do programa.
O descumprimento bem como qualquer outra detenção são reportados ao tribunal e o juiz então decide sobre a resposta apropriada. O programa também emprega uma política de “resposta graduada”, pela qual os requisitos de supervisão podem ser intensificados ou reduzidos para incentivar o cumprimento do participante e recompensar seu progresso.
Entre 2016 e 2021, mais de 35.000 participantes foram admitidos no programa de Liberdade Condicional Supervisionada em Nova York — e esse número continua aumentando.
Só no Brooklyn, a adesão aumentou quase 300% nos últimos cinco anos. Cada uma dessas inscrições no programa representa uma pessoa que poderia ter sido sujeita a prisão preventiva.
As recentes reformas legais de Nova York também trouxeram uma mudança em relação a acusações mais graves. Em 2020, quase um quarto de todos os novos participantes do programa foram acusados de um crime violento (9) — contra 3% em anos anteriores, quando a maioria desses casos não era elegível para integrar o programa.
A crescente gravidade das acusações, juntamente com o aumento do alcance do programa, sugere fortemente a confiança do sistema judicial nesta iniciativa como uma opção de liberação pré-julgamento. Além disso, a Liberdade Condicional Supervisionada está servindo, na prática, como uma verdadeira alternativa à prisão preventiva.
Isso acontece, provavelmente, porque o programa está conseguindo com que as pessoas compareçam perante o tribunal nas datas em que é suposto. Entre outros resultados promissores, destacam-se os seguintes:
- 87% dos participantes, desde 2016, nunca perderam uma única data judicial (10) enquanto estavam inscritos no programa;
- Uma avaliação independente recente (11) constatou que o programa reduziu tanto a aplicação da medida de fiança quanto a consequente prisão preventiva, não influenciando nas taxas de não comparecimento em tribunal ou nova detenção;
- 87% dos participantes não foram presos (12) por uma nova acusação grave (crime) enquanto estavam inscritos no programa, entre 2016 e 2020.
(Considerando o tempo, outra análise 13 constatou que, em um determinado mês, apenas cerca de 1% dos participantes do programa foram presos novamente por crime violento e, em média, 93% não foram presos de novo); - Dados sobre o cumprimento [dos requisitos do programa] de 2020 e 2021 mostram que os participantes realizaram cerca de 98% das verificações necessárias. (14)
Esses resultados são fundamentais, especialmente dada a pesquisa existente (15) documentando que a alternativa — à prisão preventiva — aumenta as taxas de reincidência a longo prazo.
A pandemia da COVID-19 trouxe interrupções generalizadas ao sistema judicial. O programa de Liberdade Condicional Supervisionada adaptou-se rapidamente, implementando práticas como verificações remotas, com os gerentes de casos, e fornecendo telefones, se necessário.
Mesmo durante esse período, o programa manteve com sucesso conexões regulares com os participantes. À medida que os tribunais voltaram a funcionar presencialmente de forma mais regular, a Liberdade Condicional Supervisionada emerge como um programa testado que efetivamente ganhou escala.
Os desafios que se apresentam para os provedores da Liberdade Condicional Supervisionada e das partes interessadas no programa são fortalecer ainda mais os serviços do programa e resolver quaisquer lacunas.
Por exemplo, há uma preocupação geral crescente com a criminalidade em Nova York. Os provedores do programa têm trabalhado coletivamente para identificar como é possível responder a preocupações de segurança pública sem afetar o propósito e a integridade do modelo.
Essas respostas incluem esforços para fornecer maior apoio voluntário, em resposta a acusações mais graves envolvendo o uso de uma arma de fogo, e o reengajamento mais rápido de um participante quando é preso de novo.
Outras iniciativas incluem abrir mais vagas no programa em bairros carentes e expandir parcerias com prestadores de serviços comunitários, para melhor atender o amplo espectro de indivíduos com processos criminais nos tribunais da cidade de Nova York.
À medida que cresce, a Liberdade Condicional Supervisionada continuará oferecendo oportunidades a milhares de pessoas, todos os dias, para permanecer vivendo com suas famílias, trabalhando em seus empregos e recorrendo ao apoio da comunidade enquanto aguardam a resolução de seu caso criminal.
Mais de dez anos após sua criação, o programa tornou-se um modelo para uma maneira eficaz de reduzir a prisão preventiva, que se alinha com as metas de segurança pública e ajuda a garantir que as pessoas compareçam ao tribunal.
Ao mesmo tempo, propicia a todos os acusados de um crime uma chance justa de ficar fora da cadeia.
Referências
(1) Bureau of Justice Statistics, U.S. Department of Justice (2021). Jail Inmates in 2020 – Statistical Tables.
(2) Lowenkamp, C.; VanNostrand, M, & Holsinger, A, (2013). The Hidden Costs of Pretrial Detention.
(3) Em 2018, o programa lançou um teste piloto para jovens adultos acusados de crimes violentos ou designados como alto risco para a repreensão criminal. As elevadas taxas de comparecimento ao tribunal alcançadas neste piloto estabeleceram as bases para expandir o programa para uma população mais diversificada ao nível do tipo de acusações criminais.
(4) Solomon, F. (2013). CJA’s Queens County Supervised Release Program: Impact on Court Processing and Outcomes.
(5) Solomon, F. (2018). Brief No. 42: Reducing Unnecessary Pretrial Detention: CJA’s Manhattan Supervised Release Program.
(6) Hahn, J. (2016). An Experiment in Bail Reform: Examining the Impact of the Brooklyn Supervised Release Program.
(7) O Centro de Inovação Judicial (Center for Court Innovation) atualmente executa o programa de Liberdade Condicional Supervisionada no Brooklyn e em Staten Island; A Fortune Society, no Bronx; a NYC Criminal Justice Agency no Queens; e o Centro de Alternativas Penais e Emprego (CASES) em Manhattan.
(8) https://www.nycja.org/release-assessment
(9) Supervised Release Program Results, Five Years In (2021).
(10) NYC Criminal Justice (2020). Supervised Release Annual Scorecard 2020.
(11) Process and Impact Evaluation of New York City’s Pretrial Supervised Release Program.
(12) NYC Criminal Justice (2020). Supervised Release Annual Scorecard 2020.
(13) Supervised Release Program Results, Five Years In (2021).
(14) NYC Criminal Justice (2021). How many people with open criminal cases are re-arrested?
(15) Process and Impact Evaluation of New York City’s Pretrial Supervised Release Program.
David Hafetz
David Hafetz é o vice-diretor de liberdade condicional no Centro de Inovação Judicial (Center for Court Innovation), onde ajuda a liderar o Programa de Liberdade Condicional Supervisionada. Também foi diretor fundador de uma iniciativa lançada em Manhattan em 2020 para proporcionar uma série de alternativas ao encarceramento, com base na comunidade, para pessoas acusadas de todos os níveis de crimes. Anteriormente, David foi Diretor Executivo do Crime Lab New York, um centro de pesquisa da Universidade de Chicago. David é bacharel pela Universidade de Princeton e Juris Doctor (doutorado profissional) pela Universidade de Columbia.
Tia Pooler
Tia Pooler é vice-diretora de Análise de Dados e Pesquisa Aplicada do Centro de Inovação Judicial (Center for Court Innovation). Tia conduz e supervisiona a gestão e análise de dados, relatórios e pesquisas no âmbito dos projetos e iniciativas operacionais do Centro, incluindo o programa de Liberdade Condicional Supervisionada. Entre seus projetos de pesquisa recentes, está uma avaliação de métodos mistos do Tribunal de Jovens Adultos do Brooklyn, e uma avaliação do Tribunal de Reingressos da Liberdade Condicional do Harlem, entre outros. É bacharel em Economia pela Universidade de Boston, mestre em Política de Justiça Criminal e em Métodos de Pesquisa Social, ambos da London School of Economics.