// Entrevista: Nathalie Alvarado
Chefe de Segurança e Justiça Cidadã do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)
JT: Como a segurança e a justiça se tornaram um eixo fundamental da intervenção do BID e como a Sra. caracteriza a evolução da região nessas áreas ao longo dos anos?
NA: Apesar dos esforços crescentes no combate à criminalidade e de algumas melhorias em certas áreas, a verdade é que a América Latina e o Caribe (ALC) ainda é a região mais violenta do mundo, com uma taxa média de homicídios quatro vezes acima da média mundial. Essa violência afeta principalmente populações vulneráveis. Na ALC, o homicídio é a principal causa de morte entre indivíduos de 15 a 44 anos.
Além do impacto na vida humana, há um custo significativo para a economia. Nosso último estudo descobriu que a criminalidade e a violência custam à região 3% de seu PIB anual, ou seja, cerca de US$ 261 bilhões. Isso equivale a toda a despesa anual da região em infraestrutura. Não é surpresa, portanto, que os latino-americanos considerem a insegurança o problema número um que afeta suas vidas.
No BID acreditamos que a criminalidade e a violência não são apenas desafios de insegurança, são principalmente desafios para o desenvolvimento. O BID começou a trabalhar em projetos de segurança cidadã no início dos anos 90. Nossa primeira operação foi com a Colômbia, onde ajudamos a desenvolver um observatório do crime. Na última década, o BID vem aumentando o portfólio de intervenções em segurança e justiça cidadã, que atualmente soma US$ 645 milhões e 17 operações em 12 países.
Esse crescimento é uma resposta direta à demanda dos governos da região. Dito isso, há uma tremenda heterogeneidade. Por exemplo, a maioria dos países da América Central tem taxas de homicídios muito altas, enquanto no Cone Sul (ou seja, Argentina, Uruguai, Chile) o problema está mais relacionado ao crime patrimonial. Isso significa que não podemos tomar a região como um todo na tentativa de chegar a uma solução, precisamos, em vez disso, entender as complexidades locais do crime.
JT: Qual o papel do Banco Interamericano de Desenvolvimento no avanço da segurança cidadã e dos sistemas de justiça – incluindo os serviços prisionais – na América Latina e no Caribe?
NA: Estamos sempre procurando oferecer um melhor apoio aos países e, para isso, projetamos um escopo de intervenção no qual o BID possa ter o maior valor agregado. Por isso, apoiamos a região através de três mecanismos: 1) operações de empréstimo; 2) assistência técnica; 3) geração e disseminação do conhecimento.
Nossas intervenções estão focadas em toda a cadeia da justiça criminal, desde a prevenção da violência e reforma policial até questões de acesso à justiça e ressocialização de presos. Consideramos importante abranger todos os elementos relacionados à criminalidade e à violência na ALC e trabalhar no fortalecimento das instituições de segurança e justiça. Isso começa com o apoio a modernização das forças policiais. Envolve a melhoria do recrutamento, formação, mecanismos de compensação e, em alguns casos, avanços no patrulhamento e na gestão estratégica.
Com relação ao sistema de justiça, buscamos melhorar a eficiência na gestão e administração dos serviços de justiça criminal. Hoje, estamos ajudando vários países da ALC na digitalização de seus registros judiciais e os escritórios do Ministério Público a fortalecer sua função investigativa, melhorando suas capacidades técnicas e protocolos no tratamento de evidências. Não é suficiente que os policiais prendam criminosos se estes não forem processados.
Por fim, estamos apoiando a ressocialização de presos e a reintegração após encarceramento, sendo que a primeira não é uma prioridade para a maioria dos governos. Uma abordagem comum é simplesmente construir mais prisões, mas estamos muito mais focados em melhorar os programas de ressocialização dentro delas.
A criminalidade e a violência custam à região 3% de seu PIB anual, cerca de US$ 261 bilhões. (...) Não são apenas desafios de insegurança, são principalmente desafios de desenvolvimento.
JT: Como a complexidade das questões de segurança e justiça na América Latina está sendo tratada pelo BID?
NA: O crime e a violência são profundamente complexos e exigem respostas igualmente sofisticadas e robustas. Além de trabalhar com as instituições da cadeia da justiça criminal, identificamos as principais áreas de melhoria e pontos chave os quais priorizamos nossas ações:
Falta de dados de qualidade para apoiar políticas baseadas em evidências: Muitas vezes não temos uma visão clara do que está impulsionando a criminalidade e a violência na região. Os registros administrativos diferem por país e, geralmente, ainda são impressos. No caso das prisões, por exemplo, em inúmeros países, não há registros confiáveis de quem está na prisão, por quanto tempo, por qual motivo, e que tratamento, se houver, eles receberam. Esta lacuna deve ser tratada o mais rápido possível e o BID está disponibilizando recursos por meio da cooperação técnica para ajudar os países a gerar melhores dados.
Avaliações insuficientes: Queremos avançar no conhecimento do que funciona e do que não funciona. Atualmente, grande parte do conhecimento vem de países desenvolvidos onde há avaliações sobre o que é eficaz em termos de, por exemplo, mudança de comportamento, policiamento de zonas críticas ou ressocialização dos presos. Na América Latina e no Caribe tentamos adaptar modelos testados em países desenvolvidos, mas ainda precisamos de diagnósticos e evidências mais robustos que se apliquem ao nosso contexto, por isso o BID está impulsionando a agenda de geração e avaliações de conhecimento.
Coordenação limitada: Há uma visão limitada sobre quem deve assumir as questões de segurança, um problema que não deve ser resolvido apenas pela polícia! Há vários fatores que precisam ser abordados antes que o crime aconteça. A prevenção é necessária, mas a coordenação entre os órgãos também é primordial. Temos testemunhado uma grande falta de coordenação entre o setor social e o setor de segurança e justiça – muitas vezes as pessoas trabalham de forma isolada, tentando resolver um problema que tem causas diferentes, mas sobrepostas, e que poderia ser resolvido de forma colaborativa.
E por último, mas não menos importante, há a questão de uma dependência excessiva de modelos punitivos. Uma resposta comum ao aumento da criminalidade na ALC é construir mais prisões ou implementar sentenças mais duras. Às vezes, a frustração de não alcançar a redução da criminalidade leva os governos a adotar um modelo punitivo reativo que pode, em última instância, levar ao colapso e à crise dos sistemas de justiça. Por isso, promovemos modelos que também focam na prevenção, incentivamos o uso de alternativas ao encarceramento, aproximamos as instituições e focamos na mudança de comportamento e na ressocialização.
JT: A Sra. poderia, por favor, citar alguns projetos que o BID está apoiando que considera especialmente bem encaminhados ou que já alcançaram resultados importantes?
NA: A reforma hondurenha é um grande exemplo. Em 2012, quando Honduras era o país com a maior taxa de assassinatos do mundo, o governo nos pediu apoio. Enquanto algumas pessoas eram céticas, estávamos otimistas. O BID apoiou uma profunda reforma da Polícia Nacional, com mudanças em seu esquema de recrutamento, formação e compensação. Também envolveu a renovação do currículo de formação de toda a força policial: cerca de 5.000 policiais já se formaram sob o novo currículo. O projeto também melhorou a infraestrutura para a Academia de Polícia e várias outras instalações – esses esforços contribuíram para a redução de 50% na taxa de homicídios no país nos últimos 5 anos.
Não há soluções rápidas para reduzir a criminalidade e a violência, mas Honduras nos dá uma razão para ter esperanças. Mostra também que o fortalecimento das instituições é um caminho a seguir.
Também há o caso do sistema penitenciário da Costa Rica. Apoiamos o governo na implementação de um novo modelo que combine educação, formação técnica e apoio psicossocial. Isso envolveu a criação de três Unidades de Atenção Integral, as quais consistem em novos centros que abrigam cerca de 1.600 presos que cumprem os últimos seis meses de sua sentença.
Essas Unidades aderem aos mais altos padrões internacionais, possuem equipamentos de segurança modernos e refletem o princípio da normalidade. Nesses centros, há também programas de capacitação para a ressocialização e reingresso bem-sucedidos dos detentos. Esse modelo tornou-se referência para a região e agora estamos no processo de avaliá-lo para determinar seu impacto na reincidência.
A tecnologia pode ser uma ferramenta muito poderosa para melhorar nossas respostas ao crime e à violência.
JT: Qual é a sua opinião sobre a aplicação de tecnologias nos sistemas de segurança e justiça do cidadão? E como o BID está apoiando a transformação digital das jurisdições latino-americanas?
NA: Nossa última Semana de Segurança cidadã (realizada em novembro de 2018) foi precisamente sobre tecnologia no setor de segurança e justiça. A tecnologia pode ser uma ferramenta muito poderosa para melhorar nossas respostas ao crime e à violência. Na verdade, há muita tecnologia avançada que pode ser eficiente na prevenção e combate a crimes, como big data e inteligência artificial. Alguns exemplos do tipo de trabalho que estamos fazendo com a tecnologia no setor incluem um projeto de big data para prevenção de crimes em áreas urbanas na Colômbia, o uso de softwares de previsão de crimes para melhorar as políticas, a digitalização dos processos judiciais e a incorporação de inovações tecnológicas para a ressocialização de presos.
Mas devemos ser cautelosos. A parte difícil não é adquirir tecnologia em si, o desafio está em aproveitar a tecnologia para a segurança das pessoas. Identificamos cinco fatores-chave para garantir o melhor uso da tecnologia no que diz respeito ao controle e prevenção ao crime. São lições aprendidas com nossas experiências e trabalho na região.
A primeira é que temos que definir uma visão clara, porque, afinal, a tecnologia é apenas um meio e devemos saber o que queremos alcançar com ela. A segunda é a necessidade de interoperabilidade e abertura; trabalhar de forma isolada não é compatível com tecnologia. Se as instituições não estiverem abertas e dispostas a compartilhar dados, o potencial da tecnologia é minimizado.
O terceiro elemento é a transparência e a ética; Algoritmos cada vez mais complexos estão ajudando estratégias de patrulhamento e até mesmo decisões judiciais. Isso afeta diretamente a vida das pessoas, acreditamos que os cidadãos e os governos devem saber o que está por trás desses algoritmos.
O quarto elemento é a necessidade de capital humano. Uma ferramenta só é tão boa quanto quem a utiliza. Acreditamos que os funcionários públicos precisam de mais competências digitais para melhor utilizar as novas ferramentas tecnológicas à sua disposição. Adquirir tecnologia sem ter capital humano capaz que possa operá-la adequadamente é um desperdício de dinheiro. E o último elemento que eu acho é definir as regras do jogo, dado que a tecnologia evoluiu mais rápido do que as normas.
JT: Quais são suas expectativas para o futuro? É utópico pensar em um setor de segurança e justiça cidadã nos países latino-americanos que seja completamente diferente do atual?
NA: Não é. Os altos níveis de criminalidade e violência em nossa região não são inevitáveis. De fato, mesmo alguns dos países com maior índice de homicídios na região têm visto diminuições em suas taxas de homicídios nos últimos anos (em El Salvador as taxas de homicídios diminuíram 42,9% desde 2015; na Guatemala, caíram 42,7% desde 2009 e em Honduras: as taxas de homicídios caíram 48,7% desde 2011).
Estamos muito focados no problema e acho que precisamos mudar o foco para encontrar soluções. É por isso que gerar conhecimento é fundamental. Precisamos saber o que funciona na redução da violência.
Embora alguns acreditem que a redução da criminalidade seja um efeito colateral natural do progresso econômico, não vimos isso em nossa região. Na última década, os cidadãos da ALC tornaram-se mais ricos, saudáveis e com maior acesso à educação, mas as taxas de criminalidade permanecem altas. Isso significa que não podemos esperar que o crime diminua como resultado do progresso econômico. Devemos tomar medidas concertadas para reduzir a violência.
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Nathalie Alvarado tem 20 anos de experiência trabalhando na área de segurança cidadã e desde 2012 vem supervisionando a concepção e implementação de muitas das intervenções do BID. Foi responsável por definir a estratégia de ação de segurança e justiça cidadã do BID e do programa de conhecimento para a América Latina e o Caribe. Seu trabalho sobre reforma policial, segurança urbana e prevenção da violência tem sido amplamente publicado. É graduada em Direito pela Universidade de Lausanne, na Suíça, e possui mestrado em Direito Econômico pela Université Libre de Bruxelles, na Bélgica.