Prática Notável – Brasil
Audiências de Custódia
No Brasil, a presunção de inocência até o trânsito em julgado é um direito consagrado constitucionalmente (Constituição de 1988, Art. 5º, inciso LVII).
No entanto, dados do Departamento Penitenciário Nacional, em 2014, revelaram que a proporção de presos provisórios ascendia a 40%, ou seja, cerca de noventa mil pessoas.
A justificativa residia, em parte, na escassa aplicação de medidas cautelares não privativas da liberdade previstas na lei. Ao mesmo tempo, a crescente quantidade de processos congestionava a capacidade de resposta do Judiciário.
O Brasil está entre os signatários da Convenção Americana dos Direitos Humanos, a qual aderiu e que promulgou em 1992 (Decreto Nº 678, de 6 de novembro, 1992).
No ponto 5 do artigo 7º, esta Convenção (Organização dos Estados Americanos, 1969) estabelece que,
Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.
Porém, decorridas mais de duas décadas da internalização do pacto, o país ainda não havia adotado medidas concretas para tornar efetivo esse direito.
Embora a Constituição brasileira assente nos preceitos do Estado Democrático de Direito e aspire ao progresso social, com base no respeito pelos direitos fundamentais e pela dignidade humana, tais pressupostos careciam de observação extensiva no contexto da justiça criminal. De resto, trata-se ainda de um tema em desenvolvimento.
Adicional a toda esta conjuntura estava, ainda, a necessidade de enfrentar a problemática da tortura e violência policial em atos de detenção (Human Rights Watch, 2015).
Em setembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil considerou que se verificava um “estado de coisas inconstitucional” relativamente ao sistema penitenciário brasileiro.
O Plenário concluiu que o país estava diante de “violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais; inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura; transgressões a exigir a atuação não apenas de um órgão, mas sim de uma pluralidade de autoridades”.
Entre a população prisional encontravam-se milhares de detentos sem condenação, muitos sem terem tido qualquer contato com o Judiciário. Além disso, constatou-se que 37% dos presos provisórios não viriam a ser condenados a pena de prisão” (IPEA, 2015).
Esta realidade contrariava, ainda, outros pressupostos constitucionais, nomeadamente o que dispõe que a autoridade judiciária deve por fim à prisão ilegal imediatamente, e o que prevê que ninguém deverá ser mantido preso quando a lei prever liberdade provisória, com ou sem fiança.
A conjuntura nacional exigia a adoção de providências estruturais.
O informativo do STF (2015) determinou que os juízes e tribunais realizassem “audiências de custódia”. A audiência de custódia foi, assim, instituída a partir de 2015, impulsionada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em cooperação com os tribunais do país.
O procedimento consiste em que o cidadão preso em flagrante seja levado à presença de um juiz no prazo de 24 horas, contadas a partir do momento da detenção.
Acompanhado de seu advogado ou de um defensor público, o autuado será ouvido previamente por um juiz, que decidirá sobre o relaxamento da prisão ou sobre a conversão desta em prisão preventiva.
O juiz também avaliará se a prisão provisória pode ser substituída por liberdade provisória até o julgamento definitivo do processo, e adotará, se for o caso, medidas cautelares como a apresentação periódica e o monitoramento eletrônico.
A audiência de custódia constitui, também, o momento fundamental para o juiz magistrado averiguar, junto da pessoa, a ocorrência de tortura e/ou maus-tratos no momento da detenção.
Em fevereiro de 2015, São Paulo recebia o projeto piloto das audiências de custódia. Esta audiência estabelece-se como o elo entre o mundo jurídico e a realidade, em matéria penal. A medida insta os magistrados a entender o seu papel para além dos procedimentos previstos na aplicação da lei penal.
Em abril de 2015 assinou-se um acordo de cooperação técnica entre o CNJ, o Ministério da Justiça e o Instituto de Defesa do Direito de Defesa, com vista a implementar o projeto em todo o país. Nos meses subsequentes, a audiência de custódia tornou-se gradativamente em uma realidade nacional.
Ao longo desse ano houve marcos de desenvolvimento de jurisprudência que viabilizaram a consolidação das audiências de custódia, tendo estes culminado na Resolução nº 213/2015 (CNJ, 2015). Este instrumento regulamentou os procedimentos para a apresentação de toda a pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas.
A medida vem se consolidando, desde então, como política judiciária crucial para um melhor controle da porta de entrada do sistema penitenciário.
Nos últimos anos, a audiência de custódia tem sido objeto de aperfeiçoamento, nomeadamente com a definição gradual de fluxos interinstitucionais, em cada uma das unidades federativas, e também a nível normativo. Por exemplo, a Lei nº 13.964/2019 integrou a audiência de custódia ao Código de Processo Penal.
A partir de 2019, o trabalho do CNJ nesta questão passou a ter o apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. E a parceria envolve também o Departamento Penitenciário Nacional.
A parceria se empenhou desde então, por meio do Programa “Justiça Presente”, numa primeira fase, e do Programa “Fazendo Justiça” a partir de 2020, em conceituar as audiências de custódia, trabalhando estreitamente com os tribunais, em articulação com o poder executivo e sistema de justiça criminal.
O Programa procura adaptar as melhores práticas às realidades locais, e por isso mobilizou profissionais especializados – por meio dos Grupos de Monitoramento e Fiscalização – para apoiar os Tribunais de Justiça, em todos os estados da Federação. Adicionalmente, a parceria desenvolveu manuais e processos formativos visando o fortalecimento da Audiência de Custódia.
Em 2020, o Ministro Edson Fachin determinou a extensão do procedimento a todos os tipos de prisão, abrangendo, dessa forma, não só as detenções em flagrante como também as resultantes do cumprimento de mandados de prisão.
A implementação das audiências de custódia é, assim, uma garantia da legalidade relativamente a toda a detenção, regulando o acesso ao sistema prisional. Entre 2015 e meados de 2022 realizaram-se um milhão de audiências.
Dados do relatório “Audiência de Custódia – 6 Anos” (CNJ, 2021), apontam para o envolvimento de três mil magistrados (no mínimo) nas mais de 750 mil audiências de custódia que foram realizadas entre 2015 e 2021, garantindo “decisões mais qualificadas sobre a necessidade de prisão preventiva”.
Na prática, a audiência de custódia contribuiu significativamente para a redução da taxa de presos provisórios no sistema carcerário, recentemente calculado em torno aos 29% (SISDEPEN, 2022).
A audiência de custódia evitou que mais de 270 mil pessoas entrassem no sistema prisional. Este número representa quase um terço da ocupação atual. Um dos resultados, portanto, é o fomento de uma ocupação mais racional do sistema.
Conforme decisão/sentença penal aplicada futuramente, os indiciados terão eventualmente de cumprir penas alternativas previstas na lei. A liberdade provisória não significa impunidade.
As medidas cautelares, quando devidas, aportam uma maior segurança para a tramitação do processo penal quando a pessoa está em liberdade (acompanhada por equipes interdisciplinares onde o Serviço de Atendimento à Pessoa Custodiada foi implantado).
A audiência de custódia possibilitou uma mudança de paradigma. O novo procedimento fornece mais elementos para que os juízes analisem o contexto de cada detenção. Antes, essa análise era feita por via documental, e, regra geral, de forma intempestiva, vários meses após a entrada da pessoa no sistema prisional.
O procedimento contribui, assim, para respostas penais mais efetivas e individualizadas.
Finalmente, a audiência de custódia constitui uma abordagem humanizada e conforme os direitos humanos, valorizando decisões judiciais informadas e um atendimento multidisciplinar (articulado com uma robusta rede de entidades parceiras) que atuam para a proteção social da pessoa custodiada.
Referências
CNJ – Conselho Nacional de Justiça, Brasil. Resolução Nº 213 de 15/12/2015 (2015).
DEPEN Departamento Penitenciário Nacional, 2014. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. INFOPEN – Dezembro 2014.
Human Rights Watch. (2015). Relatório Mundial 2015: Brasil.
IPEA. (2015). A Aplicação de Penas e Medidas Alternativas. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
Organização dos Estados Americanos. (1969). Convenção Americana sobre Direitos Humanos. San José, Costa Rica.
Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Brasília, DF.
Presidência da República. Decreto No 678, de 6 de novembro (1992). Brasília.
Presidência da República, Secretaria-Geral, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 13.964 (2019). Brasília.
Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (SISDEPEN). (2022). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Período de Julho a Dezembro de 2021.
Supremo Tribunal Federal. (2015). Informativo STF – Brasília, 7 a 11 de setembro de 2015 – Nº 798. Brasília.
Supremo Tribunal Federal. (2019). STF – AgR Rcl: 29303 RJ – Rio de Janeiro.