Rumo a um sistema inteligente de gerenciamento de infratores

Artigo

Pedro das Neves

Aprisionamento e o custo do crime

No final de 2021, havia 10,77 milhões de pessoas presas ou detidas em todo o mundo (Walmsley, 2021). Estima-se que o número de pessoas condenadas a sentenças não privativas de liberdade (cumprindo pena na comunidade) seja, em média, três a quatro vezes o número de pessoas presas, e a porcentagem de egressos que retornam à atividade criminosa (reincidência geral) e à prisão em um curto período é estimada entre 20% e 80%, podendo até exceder esse número em alguns países.

O custo anual direto de uma pessoa privada de liberdade também varia muito entre países e regiões do mundo, indo de algumas centenas de dólares em alguns países da África ou da América Latina até cerca de 75.000 euros no Estado de Nova York, no Canadá ou na Noruega.  Por sua vez, o custo total do crime e da reincidência, que inclui, entre outras variáveis, o custo de oportunidade e a ineficiência da intervenção e do tratamento penitenciário, a renda não gerada a partir dos cidadãos encarcerados, a renda não gerada em consequência dos homicídios, os custos diretos para as vítimas e os custos indiretos para a sociedade, que incluem a perda de qualidade de vida, a insegurança do cidadão e a falta de confiança dos agentes econômicos (Jaitman, L; et al, 2017) está em uma dimensão que poucos de nós podemos avaliar (na América Latina, esse custo representou, em 2014, 3% do PIB na região, ou seja, 236.236 bilhões de dólares).
 
A promoção da redução da reincidência e da desistência deve, portanto, ser um imperativo de qualquer política social, de segurança e de justiça criminal. 

A oportunidade da transição digital

O impulso para a transformação digital proporcionou grandes ganhos em eficiência e eficácia no setor público, na indústria e nos serviços privados (Misuraca, Barcevičius & Codagnone, 2020). Esse processo, embora disruptivo, tem sido relativamente lento em organizações mais tradicionais, hierárquicas e complexas. Os serviços penitenciários são, em geral, um caso paradigmático: invariavelmente subfinanciados nos orçamentos anuais dos Estados e avessos a riscos, eles permanecem pouco modernizados na maioria dos países. 
 
Além da renovação essencial de sua infraestrutura física, há uma necessidade urgente de inovação em termos de automação de processos, registro e análise de informações. Em muitos países, esses procedimentos ainda são realizados manualmente, em papel, ou usando ferramentas de TI obsoletas e pouco sofisticadas. Registros alimentados manualmente em livros de registro ou programas/formulários eletrônicos não atendem às necessidades de confiabilidade e acessibilidade necessárias no gerenciamento, análise e relatórios exigidos pelas instituições do setor. Além disso, geram ineficiências, falhas de comunicação e incertezas sobre aspectos importantes – como a mensuração do cumprimento de rotinas e regras por parte de presos e funcionários.
 
Alguns estudos sobre a organização do setor público argumentam que o uso de modelos de gestão tradicionais com relatórios não documentados eletronicamente e/ou não integrados pode criar bloqueio de informações dentro das hierarquias internas, dificultando o monitoramento do comportamento e do desempenho dos profissionais da linha de frente. Por outro lado, os modelos de gestão integrada, apoiados por tecnologias de informação avançadas, oferecem capacidade organizacional para controle e mitigação de más práticas, abuso de poder e corrupção (Evans, 2015).
 
A disseminação desses modelos nos sistemas prisionais garantirá: ganhos em transparência e justiça na tomada de decisões que afetam as pessoas privadas de liberdade; eficiência (melhor gestão de recursos humanos, físicos e financeiros, processos mais rápidos); e eficácia (qualidade dos resultados) no cumprimento de sua missão (garantir a segurança pública, a ressocialização dos custodiados e a redução da reincidência). Há também benefícios indiretos, incluindo uma melhor coordenação entre organizações e melhores práticas ambientais (redução do consumo de papel, redução de resíduos, otimização da infraestrutura).
 

O Sistema de Gerenciamento de Infratores (OMS ) define o sistema de informações usado pelas administrações penitenciárias e de liberdade condicional, às vezes compartilhado com profissionais de outras instituições que compõem o sistema de justiça criminal (por exemplo, polícia, órgãos de investigação criminal, defensores e juízes) para coletar, armazenar, recuperar, analisar e disponibilizar dados, informações e conhecimentos sobre os infratores que são necessários para a tomada de decisões sobre seus casos, enquanto cumprem suas penas na prisão ou na comunidade. Atualmente, ele é o sistema central de informações para as administrações penitenciárias.

A primeira geração de sistemas de gerenciamento de ofensores e sistemas de gerenciamento de prisões foi implementada em meados da década de 1990. Esses sistemas, agora chamados “sistemas herdados”, foram desenvolvidos à medida, com base em bancos de dados pesados e complexos. Desatualizados e longe de atender às necessidades de gerenciamento das organizações penitenciárias modernas, eles satisfazem as funções básicas de registro de dados e consulta para as quais foram originalmente projetados, e sua evolução ou interação com outros sistemas mais recentes é difícil, cara ou até mesmo inviável. Altos custos de manutenção, dados isolados que impedem a integração entre módulos ou sistemas, não conformidade com regulamentos recentes e problemas de segurança são alguns dos problemas desses sistemas, os quais persistem em muitos países.

A falta de informações sistematizadas e integradas em um único sistema sobre a pessoa privada de liberdade e a “trajetória” percorrida durante o cumprimento da pena (informações sobre sua situação processual, avaliações de risco e necessidades, participação em educação, formação, trabalho, mudanças comportamentais, conflitos e processos disciplinares, relacionamentos dentro e fora da prisão, comparecimento a julgamentos e outros procedimentos, registros clínicos, informações sobre vícios e saúde mental, entre outros) dificulta o trabalho dos técnicos e tomadores de decisão do sistema prisional, bem como o dos magistrados judiciais que devem tomar decisões sobre a alocação de medidas alternativas não privativas de liberdade, medidas de segurança, tratamento ou liberação antecipada.

Um OMS inteligente deve permitir que as administrações prisionais agreguem e correlacionem as informações geradas na linha de frente e as disponibilizem e utilizem para apoiar a tomada de decisões (judiciais e executivas) e o planejamento estratégico. A integração dos dados operacionais e do infrator com as informações de outros órgãos do sistema de justiça criminal será indispensável para o planejamento da intervenção prisional com o objetivo de ressocializar os infratores e reduzir a reincidência, mas também para a segurança pública (Jackson et al, 2015).  Para apoiar o processo de avaliação e o tratamento prisional e fornecer informações contínuas sobre riscos, necessidades e contexto (social e institucional), um sistema que atenda às necessidades contemporâneas e futuras do sistema de justiça criminal deve incluir todos os processos que fazem parte da jornada do infrator, desde o início da detenção até a libertação em liberdade condicional ou o fim da pena.

Contribuição para reduzir a reincidência

A avaliação do risco de reincidência e das necessidades de um infrator baseada em evidências é uma das principais preocupações dos tomadores de decisões judiciais e dos profissionais dos sistemas penitenciário e de liberdade condicional. Altos níveis de reincidência têm custos sociais muito altos, conforme mencionado acima, e revelam a ineficácia dos sistemas penitenciários e de liberdade condicional, bem como dos sistemas e estruturas de apoio social para pessoas socialmente vulneráveis.

A avaliação dos infratores e a elaboração e implementação de intervenções especializadas para motivar a mudança de comportamento e modificar os fatores de risco de reincidência é, portanto, um elemento-chave das políticas de gestão prisional e tem um escopo que vai muito além da segurança, permitindo um melhor planejamento da intervenção prisional. O apoio às decisões judiciais de soltura contribui para a redução da população carcerária e para a alocação de níveis adequados de supervisão na comunidade, além de ser fundamental para a adequação dos programas de tratamento. Nesse contexto, o modelo Risco-Necessidade-Responsividade (RNR) tornou-se particularmente influente a nível internacional (Blanchette e Brown, 2006; Ward, Mesler e Yates, 2007).

Apesar dos avanços proporcionados pelos métodos de avaliação disponíveis, a complexidade da previsão do comportamento humano persiste, com implicações importantes para a política e a prática penitenciárias. O grande número de fatores situacionais que podem influenciar o comportamento violento – refletindo a interação entre características pessoais, influências ambientais, situações comportamentais passadas e presentes, eventos precipitantes e, às vezes, eventos casuais (Bandura, 2016) – dificulta a previsão (Douglas & Skeem, 2005; Polaschek, Calvert, & Gannon, 2009).  

Com base nas evidências científicas disponíveis, é possível estabelecer cinco premissas centrais no campo da avaliação do infrator:

(i)      A previsão da probabilidade de comportamento futuro pode ser quantificada (com alguma precisão);
(ii)     Os métodos estruturados de avaliação de risco são mais precisos para prever a reincidência do que as abordagens “clínicas” não estruturadas;
(iii)    Fatores contextuais, durante a execução da sentença, além de fatores criminológicos estáticos e dinâmicos, são elementos importantes a serem levados em conta na avaliação de risco;
(iv)    Embora apoiado por avaliações, há um elevado grau de discricionariedade na tomada de decisões;
(v)     As informações sobre o nível de risco e as necessidades dos infratores são muito úteis para que as administrações penitenciárias e de liberdade condicional tomem decisões de gerenciamento.

Portanto, um OMS inteligente deve permitir que as avaliações de risco e necessidades incluam as informações mais relevantes de forma sistemática, permitindo recomendações precisas adaptadas ao infrator e às suas circunstâncias (Russo, Drake, Shaffer, & Jackson, 2017). Atualmente em posse de grandes quantidades de dados (do registro das características individuais dos infratores, seu perfil de infração, o processo judicial, seu comportamento, atividades e relacionamentos durante o cumprimento da pena), as administrações penitenciárias e de liberdade condicional verão um crescimento exponencial no volume de dados gerados por sistemas tão diversos como os sistemas de identificação e monitoramento em tempo real, reconhecimento biométrico, CFTV inteligente, dispositivos RFID, sistemas de IoT, sistemas de registros médicos, comunicações telefônicas de presos, registro de atividades, processo judicial, entre muitos outros. A trajetória de inovação do setor impõe a criação de uma solução que assegure a integração de dados de múltiplas fontes – ‘fusão de dados’ – garantindo assim a produção de bases de dados consistentes e confiáveis, essenciais para a modelagem e análise preditivas (Pires et al., 2016, 2020 ).

No contexto do OMS, a análise preditiva pode, por exemplo, auxiliar na projeção, a médio e longo prazo, da população carcerária ou de indivíduos sujeitos a medidas não privativas de liberdade. Uma projeção precisa permite decidir sobre o planejamento de espaços de detenção, bem como a otimização de recursos humanos e técnicos, resultante da reorientação para apoiar o cumprimento de medidas na comunidade. A identificação de infratores de baixo risco que podem se beneficiar da liberação pode contribuir para a redução da população carcerária. A capacidade preditiva também pode permitir que o sistema recomende os programas de tratamento mais adequados para presos ou grupos de presos, a fim de que eles desfrutem de um processo de ressocialização e reintegração mais eficaz. 
 
A análise multidimensional resultante da fusão de dados mais a análise preditiva usando a Inteligência Artificial (IA) contribuem para a equidade da decisão ao reduzir a descrição subjetiva inerente e os possíveis problemas de viés ou preconceito (Tollenaar, 2019), fornecendo uma ferramenta para apoiar – nunca substituir – as decisões de profissionais e gerentes penitenciários.

Sistemas de previsão em contextos de execução penal

Nos últimos anos, a aplicação da IA tem assumido um papel relevante no apoio à decisão nas mais diversas áreas, desde a medicina (Pombo, Araújo, & Viana, 2014; Matias et al., 2020), à engenharia automóvel (Khayyam, Javadi, Jalili, & Jazar, 2019), ou à engenharia de software (Batarseh, Mohod, Kumar, & Bui, 2020), por exemplo.
 
Há uma literatura científica substancial sobre as vantagens de usar soluções e ferramentas de IA para prever a reincidência criminal como apoio à decisão em um contexto de justiça, na prevenção da reincidência (Lin, Jung, Goel & Skeem, 2020; Zeng, Ustun & Rudin, 2017) ou mesmo na prevenção de suicídios (Ophir, Tikochinski, Asterhan, et al, 2020), bem como estudos que enfatizam possíveis problemas de viés e discriminação (Hao, 2019). Apesar disso, a pesquisa nessa área continua escassa. 

O sistema inteligente de gerenciamento de infratores HORUS 360ºiOMS

Promovido por uma equipe internacional e multidisciplinar, experiente na concepção e implementação de soluções e tecnologia no setor de justiça, o Sistema de Gestão Inteligente de Infratores HORUS 360ºiOMS foi projetado para atender às necessidades dos sistemas prisionais em diferentes níveis (local, nacional e federal) e foi desenvolvido por meio de um processo de pesquisa e desenvolvimento, com a participação de pesquisadores e profissionais do setor prisional com sólida experiência e conhecimento do setor e do estado da arte da tecnologia.

O HORUS 360ºiOMS permite gerenciar o ciclo de vida do detento (preso preventivo), preso (condenado) ou infrator condenado a uma pena não privativa de liberdade, até o final da pena, apoiando decisões relativas ao processo de ressocialização e definição de tratamento ou intervenção terapêutica; ou decisões judiciais (amparadas por laudos técnicos) para atribuição de medidas alternativas não privativas de liberdade ou decisão sobre medidas de segurança, tratamento ou liberdade antecipada, por meio de análises preditivas derivadas da análise de grandes volumes de dados (Big Data), utilizando tecnologias e algoritmos de Machine Learning / Inteligência Artificial (IA).  Seu objetivo é apoiar a operação e as decisões de profissionais e gerentes de serviços penitenciários e de reintegração social (liberdade condicional) que gerenciam sistemas e subsistemas ou centros penitenciários, centros de detenção juvenil, centros educativos e serviços de execução custodial ou não custodial, bem como juízes de sentença e outros magistrados que precisam decidir com base em informações sobre o histórico criminal, os riscos e as necessidades do infrator.

Trata-se de uma solução comercial disponível no mercado (COTS)1, baseada na nuvem, multilíngue, configurável e personalizável, ágil e modular, escalável, segura e interoperável e financeiramente acessível à maioria das jurisdições, com capacidade de mesclar e analisar grandes volumes de dados de diversos sistemas e dispositivos, que, pronta para enfrentar os desafios da mobilidade, permite desmaterializar e automatizar fluxos e tarefas dos principais processos de gestão prisional e de reintegração social (comuns à maioria das jurisdições nacionais).  Incorpora nativamente a avaliação contextual de riscos, a avaliação de riscos e necessidades, as ferramentas de avaliação psicológica e comportamental, bem como as principais tipologias de programas de intervenção e tratamento penitenciário. A solução permite prever o risco de comportamento criminoso e reincidência, com base em parâmetros derivados das avaliações de risco e necessidades (fatores de risco estáticos e dinâmicos) e das informações contextuais coletadas, aprendendo com casos anteriores e situações análogas, em conformidade com as principais diretrizes, recomendações e padrões internacionais aplicáveis.

As evidências sobre o que funciona – e o que não funciona – no gerenciamento e na intervenção com pessoas privadas de liberdade, mas também nas operações prisionais, em geral, são bem conhecidas. É preciso ter ambição para lidar com a transição digital nos sistemas de justiça criminal e nas operações prisionais, uma visão de transformação que contribua de forma mais eficaz para a redução da reincidência, a melhoria da segurança pública e a maior eficiência dos gastos públicos.

Uma nova visão requer sistemas modernos de gerenciamento, capazes de responder aos problemas que as administrações prisionais enfrentam hoje – diferentes daqueles das últimas décadas – com a flexibilidade e a capacidade de aprender e responder a problemas que não conhecemos hoje, mas que enfrentaremos no futuro.  

Ser capaz de pensar de forma diferente e entender as implicações da transição digital é um desafio que os responsáveis pela administração penitenciária enfrentam. 

Esse é um desafio que você não precisa enfrentar sozinho.

 

 

1 Os produtos comerciais prontos para uso (COTS) são pacotes de hardware ou software que são adaptados às necessidades da organização compradora após o fato, em vez de soluções personalizadas ou sob medida.

Referências

Blanchette, K., & Brown, S. L. (2006). The assessment and treatment of women offenders: An integrative perspective. Chichester, England: John Wiley & Sons.
Bandura, Albert (2016). Moral Disengagement: How People Do Harm and Live with Themselves. New York, NY: Worth Publishers, 2016.
Batarseh, F. A., Mohod, R., Kumar, A., & Bui, J. (2020). The application of artificial intelligence in software engineering. In Data Democracy (pp. 179-232). Elsevier.
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Pedro das Neves

Pedro das Neves é CEO da IPS Innovative Prison Systems / ICJS Innovative Criminal Justice Solutions Inc. Trabalha na reforma da justiça criminal há mais de vinte anos. É formado em Sociologia e tem mestrado pelo College of Europe em Bruges, Bélgica. O Sr. das Neves recebeu o Prêmio de Excelência Penitenciária do ICPA (por Gestão e Formação de Pessoal) em 2017 e é membro do Conselho de Administração do ICPA desde outubro de 2018. É membro dos grupos de especialistas da Comissão Europeia (“DG JUST”) sobre a Implementação da Estratégia Europeia de Formação Judiciária e sobre a Implementação do Mandado de Detenção Europeu (como membro suplente). Na América Latina e no Caribe, Pedro trabalha com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em vários projetos penitenciários e de segurança cidadã em diversos países.

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