Entrevista
Ivan Zinger
Ouvidor do Sistema Penitenciário do Canadá
Qual é o papel e a importância da Ouvidoria do Sistema Penitenciário do Canadá (OCI segundo sua sigla em inglês)?
IZ: Como ouvidor do Sistema Penitenciário Federal, investigo as denúncias de presos ou infratores que cumprem o restante de suas penas na comunidade.
Tenho autoridade legal para isso – posso entrar em qualquer penitenciária a qualquer momento; entrevistar, com confidencialidade, qualquer preso; e até intimar funcionários das penitenciárias para testemunhar. Além disso, posso realizar audiências públicas, fazer com que as pessoas testemunhem sob juramento e tenho direito ao acesso de qualquer documento de acordo com uma investigação.
Apesar dessas autoridades legais, meu poder limita-se a fazer recomendações, que não são vinculantes ao Serviço Penitenciário do Canadá (CSC, por sua sigla em inglês).
Quais são as prioridades que orientam o seu trabalho?
Quais as áreas que refletem os atuais desafios que o sistema penitenciário enfrenta na resposta a queixas individuais e quais os pontos preocupantes?
IZ: Temos várias prioridades institucionais, mas certamente no ano passado, a COVID-19 foi a principal preocupação. Uma de nossas prioridades são as condições de confinamento. Trabalhamos para garantir que as condições da prisão sejam adequadas, seguras e humanas.
No Canadá, temos uma infraestrutura prisional muito antiga: a maioria dos edifícios tem 40 ou 50 anos e não refletem a filosofia moderna atual de ressocialização e reintegração segura.
Meu escritório vem há muito tempo se manifestando contra o confinamento solitário, que é a prática de manter um preso por 23 horas ou mais na cela. No ano passado, tivemos uma nova legislação que substituiu o antigo regime de segregação administrativa. É claro que, com a COVID-19, o cumprimento desses requisitos legais tem sido muito desafiador.
Por lei, o Serviço Penitenciário deve fornecer programas de ressocialização para reduzir o risco de reincidência. Por causa da pandemia, o acesso a esses programas foi suspenso durante a primeira onda (final de março a meados de maio de 2020) e teve fortes restrições durante a segunda onda (a partir de meados de novembro de 2020).
Nossos dados mostram que o acesso aos programas está entre 30 e 50% do que costumava ser antes da COVID-19. Sem o acesso a esses projetos, os infratores acabarão cumprindo penas mais longas porque não podem obter liberdade condicional a menos que tenham cumprido os programas. Isso tem um impacto sobre as liberdades e nos preocupa bastante.
As penitenciárias femininas também são uma de nossas prioridades. No Canadá, temos cinco penitenciárias regionais para mulheres. Vinte e cinco anos atrás, quando essas instalações foram inauguradas, havia um compromisso genuíno de adotar uma abordagem centrada nas mulheres , uma filosofia que foi se perdendo ao longo dos anos. Tem sido um verdadeiro desafio fazer diferente, especialmente nas unidades de segurança máxima, que são muito austeras e possuem limitações quanto aos programas de ressocialização.
Outra prioridade crítica para nós são os infratores indígenas. Temos uma representação desproporcional dos indígenas em prisões federais. Na sociedade canadense, os indígenas representam cerca de 5% da população, mas correspondem a 31,5% da população de detentos, além de 42% das mulheres encarceradas serem indígenas.
Os tratamentos penitenciários para os indígenas são extremamente adversos: eles tendem a cumprir uma parte maior de sua pena na prisão antes de serem postos em liberdade; normalmente são alojados em instituições de segurança superior; estão sujeitos ao uso da força com mais frequência e são encaminhados constantemente às Unidades Especiais de Intervenção (SIUs, segundo sua sigla em inglês).
Além disso, os presos indígenas tendem a se automutilar com mais frequência e, uma vez libertados, são mais propensos a ter sua liberdade condicional suspensa ou revogada. As taxas de reincidência dos povos nativos é muito maior. Temos pressionado o Serviço Penitenciário do Canadá a fazer as coisas de forma diferente, mas tem sido uma batalha difícil.
O acesso à saúde também é uma de nossas prioridades, particularmente à saúde mental. Temos um número desproporcional de pessoas entrando no sistema com problemas significativos de saúde mental. Entre os homens, aproximadamente 35% das internações são de pessoas com algum tipo de problema de saúde mental e para as mulheres, a taxa é mais de 50%. O CSC tem tido dificuldade em responder a essas questões.
Alguns anos atrás, fizemos um relatório sobre envelhecimento e morte na prisão. Temos um número significativo de presos mais velhos (55 anos ou mais) e temos outros que estão sob cuidados paliativos ou são doentes terminais e que, na minha opinião, não deveriam estar presos. Há presos com demência, Alzheimer, restrições de mobilidade, e alguns estão até acamados.
Seria melhor transferir esses indivíduos para cumprir a parte restante de suas penas na comunidade, seja em hospitais psiquiátricos ou em centros de cuidados continuados. O CSC poderia facilmente criar vagas para cumprimento de penas na comunidade ao transferir recursos para esse tipo de condenação.
Mais recentemente, temos lidado com a questão da morte assistida (ou MAID, por sua sigla em inglês) no sistema penitenciário federal. A morte assistida deve estar disponível para qualquer pessoa no país, incluindo aqueles que estão encarcerados.
No entanto, não creio que o procedimento deva ser realizado dentro de uma penitenciária, o que é inadequado e antiético. A legislação proposta pode ampliar o acesso à morte assistida, e fizemos algumas propostas para proibir a sua execução dentro de uma penitenciária.
Como é o processo pelo qual seu gabinete contribui para que as penitenciárias federais sejam seguras, humanas e cumpram requisitos legais no Canadá?
IZ: Recebemos entre cinco e seis mil denúncias individuais por ano, as quais a minha equipe trata por telefone, correio ou (antes da COVID-19) pessoalmente nas instituições.
Todos os anos, os outros ouvidores e eu passamos cerca de quatrocentos dias nas prisões, no local, entrevistando reclusos e falando com os funcionários. Buscamos o cumprimento da lei e a tomada de decisões justas. Se identificamos transgressões, fazemos recomendações, geralmente ao diretor da unidade prisional e tentamos resolver as questões de modo informal e ao nível mais baixo possível.
Também nos especializamos em investigações sistêmicas, que analisam situações de preocupação geral ou específica, muitas vezes em áreas onde temos muitas queixas. Conduzimos investigação sistêmica sobre povos indígenas, suicídio e automutilação, infratores negros, mais velhos e jovens (menores de 21 anos), educação, trabalho e formação profissional, todos estes relatórios estão no nosso site.
Para além disso, publicamos um relatório anual que é apresentado no Parlamento. Cada relatório contém uma série de recomendações a nível sistêmico, as quais geralmente se dirigem ao Comissário do CSC e são elaboradas com intuito de provocar mudanças e a melhorar o cumprimento da lei.
Também fazemos recomendações ao Ministro da Segurança Pública. Quando fazemos recomendações a nível institucional, geralmente temos muito sucesso, por exemplo, normalmente há uma boa adesão de nossas recomendações quando nos dirigimos ao Comissário.
No entanto, o progresso em questões sistêmicas é mais lento. Há recomendações que fizemos várias vezes ao longo de uma década. Não é incomum para um representante dos cidadãos ter algumas frustrações, mas analisei o orçamento e o contingente de pessoal do CSC e descobri que é uma das organizações penitenciárias com maiores recursos do mundo.
O CSC tem uma proporção de detentos para funcionários de um para um, o que é extraordinariamente rico de qualquer ponto de vista. Você pensaria que, com esse montante de recursos, teríamos excelentes resultados, mas infelizmente, o Canadá está ficando para trás em várias áreas, incluindo, por exemplo, o acesso dos detentos ao mundo digital. Os presos no sistema federal não têm acesso a e-mails monitorados ou uso supervisionado da internet. Isso não épor uma questão financeira, mas sim de prioridades.
(...) O progresso em questões sistêmicas é mais lento. Há recomendações que fizemos várias vezes ao longo de uma década.
Que tipo de relacionamento e colaboração existem entre seu gabinete e o Serviço Penitenciário do Canadá?
IZ: Como ouvidoria e órgão de fiscalização, é bem provável que haja um grau de tensão entre o supervisor e o supervisionado. Se você é muito amigável, muito próximo ou muito acomodado, o mais provável é que você não está fazendo o seu trabalho.
Se, por outro lado, a relação for negativa ou tóxica, é provável que você não tenha nenhuma de suas recomendações aceitas. Muita tensão não é produtiva, pouca tensão também não é necessariamente desejável. É necessário colaboração para que o sistema penitenciário siga em uma boa direção. Se isso não acontecer, será preciso encontrar outros mecanismos.
Como ouvidor, disponho de muitas ferramentas para conscientizar e fazer cumprir minhas recomendações. Sou bastante ativo nos meios de comunicação, onde também tento conscientizar as pessoas sobre os problemas existentes. Muitas vezes me pedem que compareça perante as comissões parlamentares.
Nosso site também é visitado com bastante frequência. Nossas investigações se fundamentam em acadêmicos, tribunais, ONGs, partes interessadas e outros advogados. Nossos achados são frequentemente citadas em decisões judiciais, chegando às decisões da Suprema Corte do Canadá.
Que conclusões o Sr. tira da gestão do Serviço Penitenciário durante a pandemia da Covid-19?
IZ: Tenho emitido vários relatórios sobre os impactos da COVID-19 nas penitenciárias federais.
Na primeira onda da pandemia, seis penitenciárias sofreram um surto, 360 detentos foram infectados pelo vírus. Na segunda onda, a partir de meados de novembro de 2020, 13 instituições federais diferentes sofreram surtos.
A contagem de casos da segunda onda é mais de 2,5 vezes maior do que na primeira onda. Desde o início da pandemia, pouco mais de 10% da população total de detentos testou positivo para COVID-19, uma taxa de infecção significativamente maior do que na população em geral.
Esses dados sugerem que, como em outros ambientes de convivência aglomerada, as prisões são muito mais suscetíveis à transmissão generalizada do vírus. A diferença é que as prisões são ambientes de aglomeração involuntária, onde as pessoas são mantidas próximas umas das outras, com pouca ou nenhuma possibilidade de distanciamento social.
Para idosos e presos com alguma comorbidade, o risco de contrair o coronavírus dentro da prisão pode trazer sérias consequências ou até mesmo levar a morte.
Continuo preocupado com o caráter cumulativo e, em alguns casos, indefinido do confinamento restritivo e longos períodos de distanciamento social sobre a saúde física e o bem-estar mental dos presos.
As medidas adotadas para controlar os surtos – isolamento quase total nas celas, exercício ao ar livre uma vez a cada dois ou três dias, 20 minutos fora da cela a cada dois dias para tomar banho ou usar o telefone – são excepcionais e difíceis. Há de se reconhecer a resposta do CSC à pandemia, que continua evoluindo à medida que se aprende mais sobre a doença e como sua disseminação pode ser evitada ou contida nas prisões.
Temos visto muito mais testes em massa nas prisões durante a segunda onda. O CSC melhorou sua capacidade de visitação por vídeo, permitindo que os detentos permaneçam conectados com a família e os entes queridos quando a maioria dos presídios ainda estão fechadas para visitas externas.
O CSC também abriu suas portas para a Cruz Vermelha Canadense, que os ajuda a gerenciar surtos maiores. A vacinação de detentos já começou, e acho encorajador que o CSC esteja seguindo os conselhos e orientações do Comitê Consultivo Nacional de Vacinação.
No entanto, poderia ser feito mais – ainda não temos um plano coordenado que permita que os idosos ou presos com comorbidade, que não representam risco para a segurança pública, sejam transferidos para ambientes comunitários. Pedi que mais programas fossem executados na comunidade.
Penso que chegou a hora de realocar pessoal e recursos para apoiar melhor a reintegração comunitária segura, oportuna e saudável e examinar o fechamento gradual de algumas penitenciárias antigas e antiquadas, algumas das quais foram particularmente atingidas pela COVID-19.
Agora estamos fazendo visitas virtualmente através de chamadas de vídeo com detentos (...) Mudamos totalmente nosso modelo, mas mal podemos esperar para voltar para as penitenciárias.
Qual é o impacto e os principais desafios da pandemia em relação ao serviço prestado pela OCI?
IZ: Tivemos que suspender as visitas à prisão. Na primeira onda, as penitenciárias foram fechadas para visitantes, incluindo meu gabinete, a partir de meados de março. Tivemos que nos adaptar.
A maioria dos funcionários continua trabalhando remotamente, mantivemos um nível essencial de serviços e operações. Temos contatos regulares com comitês de presos, gestores e chefes de saúde semanalmente.
Em junho e julho de 2020, começamos a fazer visitas novamente às prisões em Ontário e Quebec, já que era possível ir e voltar no mesmo dia. Fizemos cerca de dez dessas visitas, e assim que o número de casos aumentou e a segunda onda chegou, tivemos que recuar. Agora estamos fazendo visitas virtualmente através de chamadas de vídeo com detentos.
Normalmente, anunciaríamos visitas com duas semanas de antecedência, os presos forneceriam seus nomes se quisessem nos ver e nós os entrevistaríamos e realizaríamos sessões de interrogatório com os diretores no final de nossas visitas.
Estamos fazendo tudo isso, mas virtualmente agora. Mudamos completamente nosso modelo. Mal podemos esperar para voltar às penitenciárias, e acredito fortemente que visitas e inspeções no local são uma parte essencial para cumprir nosso mandato legal.
JT: O Sr. preside a “Rede de Especialistas em Supervisão De Prisões Externas e Direitos Humanos” da Associação Internacional de Serviços Prisionais e de Correção (ICPA, segundo sua sigla em inglês).
O que tem sido realizado pela rede e quais são as vantagens da rede de representantes da fiscalização prisional em todo o mundo?
IZ: A Rede Especializada em Supervisão De Prisões Externas e Direitos Humanos foi lançada em 2018 e agora conta com mais de 100 membros e cerca de 30 não-membros que assinam nossos boletins, de 28 países de todos os continentes.
Esta rede busca facilitar um diálogo construtivo e profissional entre as organizações responsáveis pela fiscalização externa das prisões e as autoridades prisionais sujeitas à sua supervisão. A missão da nossa rede é compartilhar informações, melhores práticas e lições aprendidas sobre a efetiva supervisão externa da prisão.
Até o momento, nossa rede publicou seis boletins informativos abrangendo uma série de tópicos, incluindo confinamento solitário, direitos humanos nas prisões e a independência dos órgãos de fiscalização.
Desde a primeira onda da COVID-19, publicamos dois boletins que analisam a fiscalização e o monitoramento da prisão durante uma pandemia e o uso de isolamento médico e quarentena nos presídios.
A resposta a esses boletins tem sido extremamente positiva. Os membros expressaram como os boletins informativos têm sido recursos importantes, que fornecem informações para seu trabalho em sua região. Outros comunicaram como é válido ouvir os órgãos de fiscalização em outras jurisdições que enfrentam problemas semelhantes.
Às vezes, tomamos normas e padrões como garantidos. Achamos que nossa experiência é universal e nos tornamos inflexíveis na forma como abordamos os problemas. Ao nos engajarmos em uma troca global de informações, nos tornamos conscientes do quão diversificada é a experiência humana – mesmo em um campo estreito como a fiscalização prisional.
Espero que, através dessa consciência, as pessoas que trabalham na minha área ou as geralmente envolvidas na administração prisional se tornem mais flexíveis na maneira como abordam o importante trabalho que fazemos.
Ivan Zinger
Ouvidor do Sistema Penitenciário do Canadá
Ivan Zinger foi nomeado Ouvidor do Sistema Penitenciário do Canadá em 2017. Ingressou na Ouvidoria do Sistema Penitenciário em 2004 e tornou-se diretor executivo e conselheiro geral cinco anos depois. Já ocupou vários cargos de alta gestão, política e pesquisa em departamentos e organizações federais de segurança pública desde que ingressou no serviço público, em 1996. É formado em Direito e Doutor em Psicologia da Conduta Criminal. Também é professor adjunto no Departamento de Direito da Universidade Carleton