Artigo
Mana Yamamoto, Matthew Burnett Stuart & Alice Roberti
Alinhadas às Regras Mínimas das Nações Unidas (ONU) para o Tratamento de Prisioneiros (Regras de Nelson Mandela), às Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras (Regras de Bangkok), várias jurisdições têm explorado abordagens eficazes no contexto da educação, saúde mental, treinamento vocacional e emprego para facilitar a reintegração bem-sucedida de pessoas presas à sociedade.
Em todos esses esforços, as autoridades prisionais enfrentam vários desafios de implementação. Esses desafios incluem recursos limitados, um ambiente prisional adverso e a dificuldade de simular situações da vida real ou garantir o contato regular com a família e o acesso ao apoio da comunidade.
As tecnologias digitais têm o potencial de superar esses desafios. Nos últimos anos, o ritmo de desenvolvimento da introdução do uso de tecnologias na reabilitação de prisioneiros tem aumentado exponencialmente.
A reabilitação digital nas prisões inclui a prestação de serviços e o apoio a pessoas sob custódia ou em transição para fora da prisão, a fim de permitir que elas tenham uma vida plena na comunidade. Por exemplo, em programas de mudança de comportamento, a tecnologia pode ajudar os prisioneiros a se prepararem para os desafios que poderão enfrentar ao serem libertados.
Isso pode ser feito permitindo que eles visualizem, participem e reflitam sobre cenários da vida real, aprendam novas habilidades e apliquem e pratiquem alternativas positivas. No entanto, a coleta e a avaliação sistemáticas de modelos de reabilitação que incorporam intervenções digitais e o desenvolvimento de estruturas políticas, legais e éticas para orientar e regular seu uso estão avançando mais lentamente.
Projeto e relatório de pesquisa do UNICRI
Nesse contexto, o Instituto Inter-Regional de Pesquisa sobre Crime e Justiça das Nações Unidas (UNICRI), com o apoio do Instituto das Nações Unidas para a Ásia e o Extremo Oriente para a Prevenção do Crime e o Tratamento de Infratores (UNAFEI) e do Governo do Japão, lançou recentemente um projeto que explora as possíveis vantagens de tecnologias inovadoras para a reabilitação de prisioneiros.
Essa iniciativa tem como objetivo apoiar e facilitar o desenvolvimento de estratégias abrangentes de reabilitação digital que estejam em conformidade com os princípios de direitos humanos e abordem de forma eficaz os desafios exclusivos enfrentados pelos prisioneiros.
Os esforços de pesquisa do primeiro ano desse projeto resultaram em um relatório intitulado “Digital Rehabilitation in Prisons” (Reabilitação Digital em Prisões), publicado em março de 2024.
Esse relatório fornece orientação em três áreas amplas:
(i) Os princípios éticos que devem orientar o uso da reabilitação digital nas prisões;
(ii) Planejamento para o desenvolvimento, implementação e fornecimento contínuo de recursos digitais para apoiar a reabilitação; e
(iii) Os aplicativos e sistemas que podem ser usados para apoiar a reabilitação, reduzir a reincidência e promover a desistência.
O documento tem como objetivo auxiliar os formuladores de políticas e profissionais a entender como aproveitar as tecnologias para apoiar a reabilitação de prisioneiros de forma eficaz e ética, ao mesmo tempo em que examina os possíveis riscos e benefícios. De fato, a reabilitação digital pode trazer alguns benefícios importantes, incluindo uma prestação de serviços mais acessível, enriquecedora, flexível e econômica, mas também apresenta desafios éticos, técnicos e operacionais significativos.
Desenvolvimento de uma estratégia de reabilitação digital
As tecnologias digitais têm o potencial de remodelar significativamente a forma como os serviços prisionais oferecem reabilitação às pessoas presas. Entretanto, há desafios profundos envolvidos nessa transformação.
A adoção ad hoc de programas e tecnologias é potencialmente problemática devido ao rápido ritmo de desenvolvimento, às dificuldades de projetar e integrar intervenções digitais, à falta de dados de avaliação sólidos e ao estado subdesenvolvido das estruturas regulatórias.
O relatório do UNICRI constatou que um dos principais desafios enfrentados pelas prisões não é o problema tecnológico da implementação de métodos e processos digitais, mas sim a integração dessas plataformas aos valores, à cultura prisional, às metodologias, aos fluxos de trabalho e às operações do setor. Isso requer a criação de práticas de igualdade e inclusão, engajamento e propriedade entre os usuários.
Consequentemente, um planejamento coerente e estratégico é essencial. Envolver-se com algumas questões fundamentais sobre a transformação digital é essencial para compreender adequadamente a reabilitação digital e decidir como projetar, adaptar e implementar seus aplicativos e plataformas para atender às necessidades das pessoas nas prisões. Duas questões principais devem ser consideradas ao desenvolver uma estratégia de reabilitação digital.
A primeira é: “Qual é o escopo dessa estratégia e como ela se relaciona com nossas metas e prioridades, com o nível de prontidão digital e com os recursos disponíveis?”. Para ajudar os profissionais e os formuladores de políticas a responder a essa pergunta, o relatório do UNICRI apresenta três caminhos de reabilitação digital que representam diferentes abordagens para a integração da tecnologia digital na reabilitação.
A segunda é “Como chegaremos lá?”. Para facilitar esse processo, o documento estabelece uma estrutura para o desenvolvimento de estratégias de reabilitação digital que aborda as questões de política e tecnologia envolvidas e avalia o potencial de prestação de serviços de reabilitação digitalmente. Essa estrutura não é um guia de “como fazer”, mas sim um conjunto de questões e princípios a serem considerados no desenvolvimento de uma estratégia digital.
A medida em que os serviços podem se transformar com as tecnologias digitais é uma questão de prontidão – a capacidade e a habilidade de trabalhar digitalmente. No relatório, o UNICRI examina as tecnologias digitais que têm sido usadas para reabilitação, a distinção entre diferentes formas de aplicativos e plataformas digitais, os desenvolvedores e fornecedores de produtos de reabilitação digital e a importância do envolvimento do usuário no domínio digital.
Metodologia do relatório: Consultas a especialistas e exemplos de casos
Um elemento fundamental da metodologia do projeto foi o envolvimento com uma gama diversificada de especialistas nesse tópico, com o objetivo de coletar e analisar um conjunto abrangente de exemplos do uso da reabilitação digital em diferentes contextos em todo o mundo.
Para isso, o professor Stuart Ross (Universidade de Melbourne) e a Dra. Victoria Knight (Universidade De Montfort), que redigiram o relatório sob a orientação do UNICRI, entraram em contato com um Grupo de Especialistas composto por 19 profissionais voluntários para explorar suas perspectivas e práticas em relação à reabilitação digital.
O grupo de especialistas incluía profissionais de diversas áreas relevantes, formuladores de políticas, parceiros e desenvolvedores do setor, líderes de direitos humanos e pessoas com experiência vivida nas prisões.
Com base em entrevistas individuais com esses especialistas voluntários, foram identificados 11 exemplos de casos para ilustrar diferentes temas e oferecer aos leitores uma visão dos objetivos e das realizações das iniciativas. De modo geral, fica evidente que o desenvolvimento da reabilitação em prisões usando recursos e ferramentas digitais não segue um único caminho.
Os exemplos de casos incluem, por exemplo, o conceito de Smart Prison da Finlândia, que aproveita os serviços digitais, como laptops pessoais, para criar um ambiente de aprendizado de reabilitação e enfatiza a melhoria dos direitos dos prisioneiros por meio de ferramentas versáteis de aprendizado digital, incluindo acesso limitado à Internet e plataformas como o Moodle.
Outro exemplo vem do Corrective Services New South Wales, na Austrália, que lançou uma estratégia para aprimorar a reabilitação de infratores introduzindo a tecnologia de tablets nas celas e programas de grupo on-line. O relatório também ilustra um estudo de caso da Tailândia, onde o projeto Hygiene Street Food ajuda os prisioneiros a estabelecer negócios de comida de rua após a libertação. Isso envolve a integração do treinamento de alfabetização digital e a utilização de aplicativos móveis para suporte comercial.
Outro estudo de caso é o da Argentina, onde a Associação Civil de Famílias de Indivíduos Detidos em Prisões Federais (ACIFaD) defende a melhoria da comunicação entre pais encarcerados e seus filhos por meio de ferramentas baseadas na Web, ressaltando a importância da colaboração entre várias agências para facilitar o contato familiar nas prisões.
Principais conclusões e próximas etapas do projeto do UNICRI
Para concluir, apresentamos abaixo algumas das principais ideias abrangentes que devem ser observadas no processo de desenvolvimento de uma estratégia de reabilitação digital:
– Não existe uma abordagem única para a introdução de recursos e serviços digitais nas prisões. Não existe um modelo único para o desenvolvimento e a implementação, e uma estratégia apropriada para uma jurisdição não pode ser simplesmente exportada para outra.
– A reabilitação digital precisa ser baseada em princípios éticos claramente declarados e com a compreensão de que as iniciativas digitais podem fazer o bem, mas também têm o potencial de criar ou exacerbar várias formas de desigualdade digital e prejudicar1.
– A reabilitação eficaz requer a compreensão das necessidades das pessoas para garantir que os serviços e recursos oferecidos sejam os mais adequados para ajudá-las em sua jornada rumo à desistência e à adoção de estilos de vida satisfatórios e socialmente integrados.
– As necessidades de reabilitação devem determinar as ferramentas e os sistemas que serão selecionados e a solução tecnológica escolhida para fornecê-los. As decisões devem ser orientadas pelas necessidades humanas, e não pela sedução e promessa da tecnologia.
– A reabilitação digital é uma área em rápido desenvolvimento, e há poucas ferramentas e serviços comprovados. Qualquer estratégia de reabilitação digital deve incluir sistemas para avaliar os resultados das ferramentas e dos sistemas implementados e processos para refinar as políticas, a tecnologia e os sistemas de serviços com base nesse conhecimento. A adoção de uma cultura de avaliação garantirá que as necessidades dos usuários sejam atendidas e, ao mesmo tempo, assegurará o rigor ético.
Com base nos esforços de pesquisa do primeiro ano da iniciativa do UNICRI, a próxima fase se concentrará no apoio ao desenvolvimento de estratégias de reabilitação digital em dois países-piloto: Namíbia e Tailândia.
Esse projeto inovador visa aprimorar as capacidades desses países na implementação de soluções digitais em seus sistemas de justiça criminal para melhorar os resultados da reabilitação de prisioneiros. Essa iniciativa visa beneficiar diretamente os países-piloto e servir de modelo para outros países que buscam integrar soluções digitais em suas estratégias de reabilitação.
Para obter detalhes, fique à vontade para conferir o relatório no website da UNICRI.
1 E-government Survey 2022: The Future of Digital Government (Pesquisa sobre governo eletrônico 2022: O futuro do governo digital). Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas
Mana Yamamoto tem 20 anos de experiência na área de gerenciamento e reforma de prisões no Japão e internacionalmente como psicóloga correcional com Ph.D. em psicologia. Trabalhou para o Ministério da Justiça do Japão, onde foi responsável pelo gerenciamento dos programas de reabilitação de prisões, e foi professora do Instituto das Nações Unidas para a Ásia e Extremo Oriente para a Prevenção do Crime e Tratamento de Infratores (UNAFEI), onde foi responsável por cursos de treinamento internacional para fornecer assistência técnica a países em desenvolvimento. Atualmente, Mana Yamamoto é especialista em pesquisa no UNICRI, realiza pesquisas e implementa projetos de assistência técnica sobre reabilitação e reintegração de infratores.
Matthew Burnett Stuart é especialista associado do UNICRI, onde gerencia iniciativas e projetos de pesquisa voltados para o aprimoramento do estado de direito e a prevenção do extremismo violento em estados frágeis e afetados por conflitos. Sua função atual inclui a cogerência do projeto do UNICRI sobre reabilitação digital em prisões, que busca aproveitar a tecnologia para melhorar os processos de reabilitação de indivíduos encarcerados. Antes de ingressar no UNICRI, Matthew trabalhou em programas de emergência e resiliência no Iêmen, Iraque e Libéria. Ele é mestre em Direito dos Direitos Humanos pela School of Oriental and African Studies (SOAS) da Universidade de Londres.
Alice Roberti é membro da Unidade de Contraterrorismo do UNICRI, onde apóia iniciativas voltadas para a prevenção do extremismo violento, com foco no Sahel. Antes de ingressar no UNICRI, ela trabalhou no contexto de reabilitação e reassentamento de prisioneiros no Reino Unido, coordenando programas de orientação e capacitação. Alice tem mestrado em Política de Justiça Criminal pela London School of Economics e mestrado em Crime Transnacional e Justiça pela Universidade para a Paz, órgão vinculado à ONU.