Entrevista
Jeremy Lightfoot
Diretor Executivo, Ara Poutama Aotearoa – Departamento de Serviços Penitenciários, Nova Zelândia
Nosso entrevistado lidera uma força de trabalho de quase 9.000 pessoas que gerenciam cerca de 10.000 pessoas na prisão e 30.000 pessoas cumprindo penas ou ordens judiciais na comunidade. Ele desempenhou um papel de liderança crítica no desenvolvimento de Hōkai Rangi, uma estratégia de cinco anos que estabelece o compromisso da agência em eliminar a super-representação de Māori no sistema de justiça criminal. Nesta entrevista, ele destaca as prioridades para ambientes e comunidades mais seguras, colocando o bem-estar no centro do trabalho do Departamento.
JT: A Nova Zelândia possui uma representação significativa dos cidadãos Māori no sistema penitenciário. No final de 2018, o percentual de Māori na população carcerária era de 52% enquanto representavam cerca de 15% da população nacional. (Fonte: Departamento de Serviços Penitenciários).
Quais são os principais desafios causados por essa realidade e quais são as principais prioridades e metas do Departamento de Serviços Penitenciários nesse sentido?
JL: Vários fatores impactam a população carcerária e é importante que trabalhemos em estreita colaboração com o sistema de justiça em geral, outros parceiros e ONGs para reduzi-los.
Um grande foco tem sido oferecer alternativas penais mais seguras, que o poder Judiciário possa considerar ao decretar a sentença. Uma delas é a iniciativa serviços de apoio à liberdade condicional, que é testada desde 2018.
O serviço apoia pessoas mantidas sob custódia ou sob risco de serem detidas para solicitar a liberdade condicional através de pedidos robustos e oportunos. Se a liberdade condicional for concedida, por meio de fiança ou monitorada eletronicamente, o serviço apoia as pessoas para garantir que elas sejam mantidas.
Isso inclui ajudá-las a entender suas condições de aval, conectá-las a serviços para atender as necessidades sociais não atendidas e fornecer orientação para ajudá-las em uma trajetória fora do sistema de justiça.
O serviço é prestado em colaboração com nossos parceiros do setor de justiça, incluindo Polícia, Tribunais, Ministério do Desenvolvimento Social e Ministério da Justiça.
A iniciativa obteve resultados positivos, como a redução do tempo necessário para a concessão de liberdade condicional, uma redução do número de pessoas reincidindo devido a acusações de incumprimento e uma maior proporção de sentenças alternativas na comunidade (em comparação com aquelas não apoiadas pelo serviço).
O serviço está sendo implementado em toda a Nova Zelândia, distrito por distrito, ao lado do iwi (o povo), dos provedores de serviços sociais Māori e de partes interessadas do setor de justiça.
Além disso, temos olhado para os programas e intervenções que fazem a diferença mais significativa para as pessoas não voltarem para a prisão. Em 2017, o Tribunal de Waitangi publicou Tū Mai Te Rangi: Reporting on the Crown and Disproportionate Reoffending Rates (traduzido livremente como: Relatório sobre a Coroa e Taxas de Reincidência Desproporcionais).
O relatório chamou a atenção para o nosso sucesso na redução da reincidência geral. Ainda assim, concluiu que violamos os princípios do tratado de proteção ativa e equidade por nossa falta de foco estratégico na população Māori.
Em resposta, lançamos o Hōkai Rangi em agosto de 2019, que descreve nosso compromisso de melhorar os resultados com, e para, os Māori. Foi desenvolvido com os Māori e incorpora uma visão Te Ao Māori do mundo.
No centro de Hōkai Rangi está o conceito de bem-estar para todas as pessoas envolvidas, incluindo nossos funcionários, pessoas cumprindo sentenças e ordens judiciais, sua família, vítimas e nossas comunidades.
Focamos nosso trabalho em seis áreas de resultados: parceria e liderança; humanização e cura; whānau (família); incorporação de uma visão Te Ao Māori do mundo; whakapapa (genealogia); e estabelecimento de bases para a participação.
Esses resultados nos ajudarão a cumprir nossos objetivos estratégicos de melhorar a segurança pública, reduzir a reincidência e trabalhar ao lado de nossos parceiros para reduzir a super-representação dos Māori no sistema penitenciário.
Um grande foco tem sido oferecer alternativas penais mais seguras, que o poder Judiciário possa considerar ao decretar a sentença.
JT: O Plano Estratégico do Departamento de Serviços Penitenciários 2019-2024 prevê uma verdadeira mudança sistêmica.
O que o Sr. destaca sobre isso e que resultados já foram alcançados?
JL: Estamos estabelecendo um número cada vez maior de parcerias relevantes. Não podemos concretizar nossa estratégia Hōkai Rangi sozinhos e precisamos reconhecer que não temos todas as respostas. Conseguimos um excelente progresso nos últimos anos.
O complexo Hikitia (anteriormente Serviço de Saúde Mental e Dependência Química Waikeria) e o Programa Percursos Māori são exemplos fantásticos de parceria.Estamos testando novas formas de parceria com os Māori nesses locais pilotos. As lições destes informarão sobre mudanças na forma como trabalhamos em outros lugares.
Algumas melhorias foram feitas para reduzir a população carcerária, e vimos estatísticas encorajadoras. Reduzimos com segurança a população carcerária do pico de março de 2018 de 10.820 para 7.989 hoje (9 de fevereiro de 2022).
Em março de 2018, a taxa de encarceramento na Nova Zelândia era de 218 por 100.000 habitantes, porém em 31 de dezembro de 2021 foi de 148 por 100.000 (resultando em uma redução de 32%). Para os Māori, a taxa de encarceramento em março de 2018 era de 657 por 100.000. Em 31 de dezembro de 2021, havia descido para 459 por 100.000 (portanto, ocorreu uma redução de 30%).
As taxas de novas condenações e reingresso estão melhorando. A proporção de pessoas que saem da prisão e são condenadas de novo, no espaço de 12 meses, diminuiu de 42% para 39% entre 2014/15 e 2019/20, enquanto a proporção de reingresso, no mesmo período, de 12 meses, baixou de 28% para 24%.
As taxas de novas condenações e de reingresso também estão melhorando para os Māori. De 2014/15 a 2018/19, as taxas de reingresso em um período de 12 meses para os Māori caíram de 30% para 27%, enquanto as taxas de novas condenações neste mesmo período de 12 meses diminuíram de 46% para 43%.
O próximo grande desafio é entender o que todo o sistema pode fazer para ter mais foco em equidade. Vejo enormes oportunidades e apoio para uma abordagem do setor de justiça coletiva. Nunca vi uma busca tão unificada por esse objetivo. Precisamos mudar nosso modo para ter impacto coletivo.
Lançamos a estratégia Hōkai Rangi em agosto de 2019, que descreve nosso compromisso de melhorar os resultados com, e para, os Māori.
Qual é a atual abordagem para a formação e desenvolvimento da equipe, e qual a importância que ela tem na estratégia contínua do Departamento?
É essencial apoiar nossa força de trabalho para fazer um dos trabalhos mais difíceis do país. Não há muito reconhecimento público para os ambientes incrivelmente desafiadores que nossos colaboradores tem que lidar todos os dias.
Precisamos ter os suportes certos no local, garantindo que nossa equipe, particularmente aqueles na linha de frente, tenham as habilidades e capacidades que precisam para fazer seu trabalho.
Fizemos muito trabalho fundamental para colocar em prática esses apoios, mas temos muito mais a fazer nos próximos anos. Estamos trabalhando para manter nossa equipe da linha de frente segura através do Plano de Ação Conjunta sobre Violência e Agressão.
Desenvolvido com sindicatos no ano passado, este plano estabelece uma série de ações para prevenir e reduzir o número de agressões aos agentes penitenciários e está focado em cinco áreas-chave.
Essas áreas são: Olhar para o nosso processo disciplinar interno para garantir que os presos sejam responsabilizados por suas ações; Fornecer formação adequada e interessante para os funcionários; Considerar nossa atual gama de equipamentos de proteção individual (EPI) para os funcionários, e garantir que são adequados à finalidade; Garantir que as unidades tenham pessoal suficiente e liberar tempo de tarefas administrativas, para permitir que os funcionários construam relacionamento com as pessoas encarceradas; Garantir o devido apoio para o bem-estar dos funcionários, incluindo sua saúde física e mental.
Se nossa equipe não está bem, não podemos fazer uma diferença positiva para aqueles que gerenciamos e cuidamos. Então, o desenvolvimento da nossa força de trabalho é uma das minhas maiores prioridades e é fundamental para "Hōkai Rangi" ser concretizada.
JT: Uma notícia no site do Departamento nos diz que “Ara Poutama Aotearoa – O Departamento de Serviços Penitenciários está desenvolvendo uma nova prisão com um serviço especializado de saúde mental e dependência na Prisão de Waikeria”.
O que o Sr. pode nos dizer sobre essa nova infraestrutura (Hikitia) e outros projetos de modernização que estão em andamento?
JL: Hikitia (antigo Serviço de Saúde Mental e Dependência Química de Waikeria) está sendo desenvolvida em nossas prisões da Região Central para homens sob custódia que têm necessidades complexas de saúde mental e dependência química. O nome, Hikitia, nos foi dado por nossos parceiros Māori e significa “levantar, eliminar os problemas que sobrecarregam uma pessoa”.
A unidade de 100 leitos (Te Wai o Pure), localizada no Presídio de Waikeria, será fundamental para o serviço, servindo como ponto de extensão para as outras duas prisões da Região Central (as unidades de Spring Hill e de Tongariro).
Todos os serviços desta nova unidade estão sendo desenvolvidos como parte da nova construção da Prisão de Waikeria e estarão disponíveis a partir de 2023. Esperamos que aproximadamente 2.000 homens se beneficiem do serviço anualmente.
Hikitia é um grande exemplo de nossa direção futura. Além disso, estamos fazendo um investimento significativo para garantir que nossa equipe tenha as habilidades e capacidades especializadas de que precisam.
Também mostraremos o benefício da tecnologia e do acesso aos dispositivos, com controles de segurança adequados.
A reconstrução em Waikeria será a primeira prisão a beneficiar de um ambiente tecnologicamente habilitado. Não será a última - vamos aprender com isso e, em seguida, lançar as soluções em outros lugares.
Recentemente testamos os dispositivos que serão usados na prisão de Waikeria através de um piloto muito bem-sucedido realizado na prisão feminina de Christchurch.
Foi realmente animador ler os comentários das presas, que relataram sentimentos de humanização, dignidade e independência.
Dada a estrutura física do ambiente prisional, é difícil readequar novas infraestruturas tecnológicas. Mas estamos com um projeto piloto de serviço sem fio para nossa equipe na Prisão Feminina de Christchurch, em que testamos um design que nos permite usar dispositivos sem fio.
Este projeto está mostrando o que pode ser necessário para sua implantação a nível nacional.
Os agentes penitenciários estão usando dispositivos robustos (que são à prova de queda e podem ser usados dentro de suas armaduras antifacada); e os próprios agentes penitenciários estiveram envolvidos na seleção desses aparelhos sem fio.
Esses dispositivos estão nos permitindo começar a automatizar tarefas manuais. Estamos envolvendo nossa equipe nisso também, e perguntamos quais tarefas eles preferiam que fossem automatizadas primeiro (a escolhida foi a de reunir e fazer a contagem dos detentos).
A utilização desses aparelhos está liberando tempo para um trabalho mais significativo, incluindo mais engajamento com aqueles que gerenciamos. Há muito potencial para seu uso, inclusive para formação online e serviços de telemedicina.
JT: O número de pessoas cumprindo sentenças e ordens judiciais comunitárias na Nova Zelândia é cerca de três vezes o número de infratores encarcerados.
Qual foi a evolução das sentenças alternativas na Nova Zelândia e como o Departamento de Serviços Penitenciários contribui para o crescimento das alternativas penais?
JL: A Nova Zelândia tem volumes relativamente altos de pessoas cumprindo penas alternativas na comunidade em comparação com outras jurisdições. Em 2007, a liberdade condicional com monitoramento eletrônico foi introduzida como uma sentença por si só e foram criadas novas sentenças, como o recolhimento domiciliar e o programa intensivo de ressocialização na comunidade.
Desde então, temos visto tendências gerais de aumento do uso de sentenças de liberdade condicional com programas de ressocializaçãoda e programa intensivo de ressocialização na comunidade, e o declínio nas sentenças de serviço comunitário. O uso de penas de recolhimento domiciliar e liberdade condicional com monitoramento eletrônico tem permanecido relativamente estável desde sua introdução.
Nossa equipe que trabalha com penas alternativas desempenha um papel vital na segurança da comunidade. Os serviços penitenciários garantem que as pessoas cumpram suas sentenças e ordens e fornecem programas de ressocialização, educação e formação profissional que ajudarão as pessoas a mudar suas vidas e quebrar o ciclo de reincidência.
O monitoramento eletrônico é uma ferramenta importante para gerenciar as pessoas com segurança na comunidade. Em novembro de 2021, assinamos um novo contrato com uma empresa de tecnologia para fornecer nossa solução de monitoramento eletrônico.
A solução permite uma cobertura de monitoramento eletrônico significativamente melhor em todo o país e proporciona um monitoramento muito preciso das condições de liberdade e das ordens judiciais.
O sistema de monitoramento faz das alternativas penais opções seguras e viáveis para muito mais pessoas. Além disso, permite que as pessoas participem mais normalmente na sociedade enquanto cumprem pena.
Até que ponto a pandemia da COVID-19 impactou o Departamento de Serviços Penitenciários? Que oportunidades e desafios essa crise de saúde pública trouxe para a organização?
JL: Como organização, nossa abordagem à pandemia foi sustentada por três prioridades: 1) A segurança e o bem-estar das pessoas; 2) As necessidades daqueles em nossos cuidados e suas famílias – reconhecendo que as restrições que colocamos em prática, que incluíam a falta de contato físico com suas famílias, afetariam significativamente elas e seu bem-estar; e, 3) Realizar atividades operacionais críticas proporcionais ao risco.
Nosso foco tem sido garantir que possamos prestar nossos serviços da forma mais segura possível e tomar as medidas necessárias. Redesenhamos todas as nossas atividades operacionais com base no risco.
Revisamos as atividades de alto nível que nossos 10.000 funcionários realizam e as mapeamos para os Níveis de Alerta do país.
Assim, por exemplo, no Nível de Alerta 4 (o nível mais alto de alerta), fechamos todos os nossos centros de penas alternativas.
Porém tínhamos que continuar gerenciando 30.000 indivíduos cumprindo sentenças e ordens judiciais na comunidade, então tivemos que identificar rapidamente soluções inovadoras, incluindo um maior uso da tecnologia.
Da mesma forma, para nossas prisões, precisávamos continuar a gerenciar cerca de 8.000 indivíduos sob nossa custódia com segurança e com foco em seu bem-estar e necessidades, juntamente com a segurança de nossa equipe.
Introduzimos uma série de medidas para manter o ambiente seguro como, por exemplo, isolamento de 14 dias para pessoas recém-chegadas na prisão, separando-as do resto da população prisional; controle de temperatura por scanners de imagem e exames de saúde para todos aqueles que entram em nossas prisões, incluindo funcionários e visitantes; distanciamento social; EPI; vacinação; e cartões de proximidade para facilitar o rastreamento de contato.
As medidas que colocamos em prática mantiveram as pessoas em nossas prisões seguras. Tivemos nosso primeiro caso em abril de 2020 e não tivemos identificação de nenhum caso de COVID-19 por quase 16 meses. No total, até 17 de janeiro de 2022, haviamos tido 76 casos em nossas prisões e não houve transmissão do vírus dentro de nossas instalações.
No início deste ano (2022), nossa equipe foi um dos primeiros grupos a ter acesso a vacinação. Nós encorajamos e apoiamos fortemente nossa equipe e aqueles sob nossos cuidados a se vacinarem.
Embora agora seja obrigatório que muitos de nossos funcionários sejam vacinados, a grande maioria foi vacinada mesmo antes disso. Nós fizemos todos os esforços para garantir que nossos funcionários – e as pessoas em nossas prisões – se sentissem seguros e apoiados na vacinação.
As iniciativas incluem a promoção de discussões “de boca a ouvido”, com líderes influentes em nossas prisões, e fóruns educacionais culturalmente direcionados. Também permitimos que nossos funcionários pudessem se vacinar nos centros de saúde da própria prisão e em pontos de vacinação drive-thru.
Estamos agora trabalhando no processo de obrigatoriedade da vacinação para que todos os funcionários que trabalham em Centros de Penas Alternativas também sejam totalmente vacinados até 28 de abril de 2022.
Houve alguns pontos positivos que saíram da nossa resposta à pandemia. Um destaque foi como as equipes apoiaram seus colegas. O bem-estar mental é crucial, e todos nós nos tornamos mais conscientes disso durante a pandemia. Manter-se conectados e apoiar uns aos outros tem sido fundamental para nos ajudar a passar por um momento difícil e incerto.
Outro ponto positivo foi os esforços que fizemos para manter os detentos conectados aos seus entes queridos. Uma parte vital disso foi introduzir chamadas de vídeo. Essa solução ajudou as pessoas a permanecerem conectadas, apesar das visitas terem sido suspensas durante os períodos de confinamento.
Jeremy Lightfoot
Diretor Executivo, Ara Poutama Aotearoa - Departamento de Serviços Penitenciários, Nova Zelândia
Jeremy Lightfoot foi nomeado Diretor Executivo em fevereiro de 2020. Ocupou vários cargos desde que ingressou na administração penitenciária em 2010 – incluindo vice-presidente executivo, gerente geral de finanças, tecnologia e comercial e comissário nacional. Também foi diretor de Parceria Público-Privada (PPP) do Projeto Prisional Wiri (hoje Centro Penitenciário de Auckland Sul). Possui ampla experiência em gestão no setor público, comercial e de contratos, tanto na Nova Zelândia quanto no Reino Unido.