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O sistema penitenciário catarinense avança em várias frentes apesar dos desafios

Entrevista

Leandro Lima

Secretário de Estado da Administração Prisional e Socioeducativa, Santa Catarina, Brasil

O panorama penitenciário brasileiro apresenta, em geral, diversos desafios, notadamente, a superlotação dos presídios e a elevada taxa de encarceramento. As más condições das infraestruturas prisionais, a escassez de servidores penitenciários, incluindo de policiais penais, a que acresce a proliferação de facções criminosas, também muitas vezes noticiadas na mídia. Nos seus 51 estabelecimentos prisionais, o Estado de Santa Catarina alberga 24.201 detentos, apesar de uma capacidade inferior a 19.706 vagas, de acordo com dados do I-pen, Sistema de Informações Penitenciárias, relativos a janeiro de 2022 .

Até que ponto a superlotação dificulta a concretização da missão da Secretaria de Estado da Administração Prisional e Socioeducativa? E que medidas são necessárias e/ou estão sendo tomadas para lidar com a falta de vagas nas unidades prisionais?

LL: O desafio da construção de vagas é premente e deve preocupar quase todos os sistemas prisionais do país, pois temos um fenómeno de encarceramento muito forte. Santa Catarina é um estado que encarcera bastante e que mantém as pessoas presas por longos períodos. Isto significa que somos conservadores na aplicação da lei, tanto na questão da prisão, quanto na execução da pena. 

Evidentemente, a abertura de vagas novas é importante para todo o gestor prisional, considerando a situação do nosso sistema judicial. Enquanto permanecer dessa forma, vamos precisar continuar gerando vagas.

Eu sou policial penal há mais de três décadas e faz dez anos que trabalho na gestão. Nos últimos anos , temos investido na regularização de vagas, ou seja, transformamos as vagas existentes em espaços dignos para o cumprimento da pena.

Neste período, também construímos novas unidades, nas quais sempre consideramos espaço s para o trabalho e para a educação, na proporção do número de vagas nas celas. O trabalho e a educação decorrem agora em espaços diferentes do lugar de convívio do interno e isso representa uma mudança significativa, pois não temos presos trabalhando dentro das celas.

Além disso, já não existe trabalho de artesanato ou qualquer tipo de trabalho análogo a escravo dentro das unidades prisionais. Todo o trabalho resulta de convênios assinados com cerca de 260 empresas e o interno é remunerado com o salário mínimo obrigatório.

Os detentos trabalham oito horas diárias , têm pausa para refeição, uniforme e equipamentos de proteção individual. Outra preocupação é atrair empresas da região onde está inserida a unidade prisional. Desta forma, quando o interno ganha a liberdade ele tem mais chances de se recolocar no mercado de trabalho. 

Apesar da construção de novas unidades, da reforma de algumas outras e da desativação de presídios antigos, é verdade que ainda temos algumas unidades que precisam ser demolidas para dar lugar a novas.

Nos próximos dois anos prevemos criar pelo menos 2500 novas vagas. Porém, levará mais alguns anos para regularizar todas as vagas necessárias para atender as demandas do sistema.

Que investimentos têm sido feitos no trabalho e indústrias prisionais?

LL: Temos inúmeras indústrias e a cartela de produtos fabricados nas unidades prisionais vai do metal até à confecção roupas de alta-costura. Vale destacar também a indústria têxtil assim como a do mobiliário. 

Além das empresas, temos vinte prefeituras, em todo o Estado, que contratam presos do regime semiaberto. Esses internos trabalham na limpeza e manutenção de ruas e no ajardinamento das cidades.

Como Santa Catarina é um pólo importante da indústria têxtil no país, criamos o programa SAP Têxtil, que teve um investimento de mais de R$ 30 milhões (cerca de 4,7 milhões de euros) na construção de dezoito galpões industriais, na aquisição de centenas de máquinas e, também, na contratação do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI). 

Esta entidade dá treinamento para 2100 internos que já estão aptos a atuar em corte e costura, serigrafia industrial, manutenção de máquinas e logísticaUm dos nossos projetos é fabricar uniformes escolares para a rede pública de Santa Catarina, bem como produzir todos os insumos têxteis para a Secretaria de Estado da Saúde.

Estou convencido de que a ativação econômica do preso por meio do trabalho remunerado e qualificado, durante o cumprimento da pena, aumenta as possibilidades de reintegração social, visto que ele poderá, por exemplo, sustentar a sua família.

Outro fato que chama a atenção e é muito positivo é que todo o preso que trabalha tem também procurado estudar, no outro turno. Quando os presos estão trabalhando e estudando, os níveis de tensão de uma unidade prisional baixam, por isso a atividade laboral e educativa constituem uma estratégia de segurança. Um exemplo disso é que as rebeliões aqui, em Santa Catarina, são cada vez mais raras; a última foi em outubro de 2011.

A ativação econômica do preso por meio do trabalho remunerado e qualificado, durante o cumprimento da pena, aumenta as possibilidades de reintegração social. Todo o preso que trabalha tem também procurado estudar, no outro turno. Quando os presos estão trabalhando e estudando, os níveis de tensão de uma unidade prisional baixam, por isso a atividade laboral e educativa constituem uma estratégia de segurança.

O sistema penitenciário catarinense está investindo na ativação econômica dos presos, através de trabalho remunerado e qualificado.

Santa Catarina foi pioneira na implementação do Fundo Rotativo do sistema prisional. Em que consiste este instrumento de política pública e qual o seu impacto, na prática?

LL: As unidades prisionais estão organizadas em sete regionais e cada uma delas tem um Fundo Rotativo com dois decisores: o superintendente regional e o responsável pela atividade laboral da região.

O Fundo Rotativo é alimentado por 25% do salário que todo o preso ganha da empresa que o contrata, a título de indenização, conforme está previsto na Lei de Execução Penal. Outra fonte de recursos é o lucro de operações das oficinas que o próprio Fundo empreende.

Por exemplo, a fábrica de cimento no Complexo Prisional de Chapecó é um empreendimento do Fundo Rotativo. Tanto o Estado como as prefeituras da região compram, à unidade prisional, os blocos de concreto de que precisam para as suas obras. O lucro que essas vendas geram reverte para o Fundo.

Então, o Fundo Rotativo é uma experiência de gestão regional abastecida de recursos descentralizados, pois difere da conta central do Estado. Além disso, este instrumento desonera o Estado. As unidades regionais estão com a manutenção e zeladoria em dia e estão providenciando a captação de recursos próprios.

Além do mais, as unidades prisionais regionais tendem a competir entre si. Os próprios superintendentes regionais têm procurado as associações comerciais e industriais da sua região. 

Neste momento, temos atividade industrial nos complexos prisionais em todas as regiões do Estado. Na região da Serra e Meio Oeste temos a primeira penitenciária no Brasil com uma adesão de 100% dos presos ao trabalho. Este cenário é muito positivo e apoia o índice de autossustentação das unidades prisionais. 

Além disso, o Fundo contribui para a ressocialização dos presos por meio do trabalho e para um ambiente mais seguro nas unidades.

Este sistema permite realmente uma melhor utilização do orçamento do Estado, porque muitas despesas do sistema penitenciário são feitas a nível regional, através dos respectivos Fundos Rotativos. 

Inclusive, os recursos dos Fundos Rotativos têm permitido diversas benfeitorias nas unidades prisionais como melhorias nas salas de visitas onde os internos recebem os familiares, entre outras obras.

Nosso Fundo Rotativo permite realmente uma melhor utilização do orçamento do Estado, porque muitas despesas do sistema penitenciário são feitas a nível regional.

Policiais penais, Estado de Santa Catarina, Brasil

 JT: Notícias publicadas no portal do Governo de Santa Catarina, nos últimos meses, deram conta da integração de centenas de novos policiais penais e informaram que o Governador sancionou a Lei da Polícia Penal.

Que necessidades, desenvolvimentos e conquistas têm se registado relativamente aos servidores penitenciários. E que importância assume o tema da formação e desenvolvimento dos policiais penais (agentes penitenciários)?

LL: Com esta nova lei, regularizaram-se uma série de procedimentos pelos quais o agente penitenciário já era responsável, na prática. Mais importante ainda do que aumentar o nível de autoridade, esta alteração legal veio ampliar a responsabilidade do policial penal.

Ao mesmo tempo, conseguimos melhorar a remuneração e as gratificações atribuídas aos policiais penais. Em conjunto, eu acredito que estas concretizações irão diminuir muito a corrupção, a entrada de ilícitos nas unidades prisionais e até as fugas de presos.

Por outro lado, o treinamento e desenvolvimento dos operadores são a coluna que sustenta o sistema prisional. A nossa Academia é a grande transformadora do potencial humano e é o nosso maior investimento. A formação fortalece o papel dos agentes e o compromisso da equipe com a atividade, para benefício de todo o sistema.

Recentemente lançámos o SAP Ciência, um programa interno que oferece 650 vagas para estudos de pós-graduação, mestrado e doutorado, totalmente custeados pelo Estado e exclusivos para os servidores da Secretaria de Estado da Administração Prisional e Socioeducativa. 

Com esta iniciativa, estamos aproximando, cada vez mais, o mundo acadêmico do profissional. O interesse foi de tal ordem que vamos ter uma segunda edição do projeto, ainda com mais vagas.

Privilegiamos o investimento no agente penitenciário para que ele possa ser o grande transformador no dia a dia do trabalho nas unidades prisionais. O sistema está cada vez mais aberto e transparente, por isso cada vez temos menos casos de corrupção e de violência.

Qual tem sido a evolução das penas e medidas alternativas não privativas da liberdade, incluindo o monitoramento eletrônico? E qual é a sua visão para o futuro em relação a este tema?

LL: Evitar o encarceramento é muito inteligente e pedagógico. Nos últimos cinco anos, temos investido de uma forma cada vez mais concreta nas Centrais de Penas e Medidas Alternativas (CPMA), onde, atualmente, lidamos com mais de 5.000 processos.

As CPMAs estão institucionalizadas e são fruto de um convênio entre o poder Executivo, o Judiciário e o Ministério Público.

Neste momento existem onze Centrais em todo o Estado e o objetivo é continuar avançando. Os resultados são muito bons; temos um índice de reincidência baixíssimo e verificamos que, especialmente em casos de pequenos delitos, as penas alternativas alcançam uma efetividade acima de 90%.

Em relação ao monitoramento eletrônico, o número atual é de mais de 2100 presos monitorados. São medidas que resultam em baixa reincidência, mas sobre as quais ainda há preconceito. 

As pessoas acham que quando alguém rompe uma tornozeleira todo o sistema falhou e isso não é verdade. Temos um sistema de monitoramento seguro, que funciona 24 horas por dia, sete dias por semana. Os problemas que ocorrem são corrigidos imediatamente. 

Na verdade, a pandemia promoveu uma maior aceitação do uso das tornozeleiras. Antes, nós estávamos trabalhando diariamente, e de uma maneira hercúlea, para convencer os juízes. Hoje em dia isso já não acontece com tanta frequência.

Evitar o encarceramento é muito inteligente e pedagógico. Os resultados são muito bons; temos um índice de reincidência baixíssimo e verificamos que, especialmente em casos de pequenos delitos, as penas alternativas alcançam uma efetividade acima de 90%.

No estado de Santa Catarina, Brasil, há mais de 2.000 infratores sob monitoramento eletrônico.

Quais foram os principais desafios e oportunidades que a crise de saúde pública, causada pela pandemia de COVID-19, apresentou ao sistema prisional Catarinense?

LL: No início, a pandemia nos trouxe muito medo, sensação que nós não já experimentávamos há muito tempo. A primeira reação foi de nos enclausurarmos na Secretaria. Chegamos a trazer colchões para que, caso nos contaminássemos, pudéssemos nos isolar no local de trabalho.

Toda a orientação científica apontava que populações custodiadas constituíam um fator de risco extremo. E nós já temos muitos casos de tuberculose e de HIV/AIDS, portanto o cenário era assustador! 

Mas nós trabalhamos todos os dias de forma presencial tanto na administração, quanto no operacional, pois é impossível fazer trabalho remoto, tendo de cuidar de 24 mil presos.

Recordo que na nossa primeira reunião, no Tribunal de Justiça, em março de 2020, construímos a ideia de uma muralha sanitária. Instalamos uma Sala de Situação na SAP, que fez todo o mapeamento dos sistemas prisional e socioeducativo.

Essas informações foram a base para a elaboração de todas as portarias e protocolos sanitários, sempre validados com a equipe da Secretaria de Estado da Saúde. Alguns médicos nos orientaram diariamente, fazendo palestras para todos os envolvidos no sistema, desde os operadores, aos juízes e Promotores de Justiça.

O levantamento da Sala de Situação apontou ainda a necessidades de produtos, infraestrutura, equipamentos de proteção individual e profissionais de saúde para atender os sistemas prisional e socioeducativo. 

Contratámos emergencialmente 120 profissionais de saúde, e começamos a fazer a triagem e isolamento das unidades prisionais, restringindo o acesso de visitas. Todas as visitas passaram a ser virtuais.

A atividade laboral foi suspensa por um tempo e a educacional passou a ser à distância. Além de todas estas alterações, reforçamos ao máximo as medidas de higienização e limpeza.

O conceito de muralha sanitária foi bem-sucedido. A taxa de letalidade foi extremamente baixa, uma das mais baixas do Brasil. Lamentamos 17 mortes no âmbito da SAP (8 presos e 9 servidores). 

Toda essa estrutura montada impediu que sobrecarregássemos a rede pública hospitalar, pois tínhamos condições de atender os internos, com sintomas mais leves, dentro das unidades. Os casos graves eram encaminhados para os hospitais.

Eu acredito que as estratégias conjuntas envolvendo a Secretaria da Saúde, o Governo do Estado, o Poder Judiciário e o Ministério Público foram a chave para o nosso sucesso.

 Embora tenhamos tido de isolar unidades inteiras – pois tivemos casos de 600 presos contaminados ao mesmo tempo num só no complexo prisional – as reuniões multilaterais regulares foram cruciais para o entendimento do momento.

Em resposta à pandemia, também criamos mecanismos que ainda estão em funcionamento como a uma “Central COVID” que funciona 24h por dia. Esta central recebe as notificações dos casos e as informações dos operadores.

Estes dados nos permitem fazer um monitoramento que, considerando tendências e estatísticas, auxiliam na tomada de decisões de gestão e operacionais de forma célere e assertiva.

Todos os dias divulgamos um boletim informativo sobre COVID, no website da Secretaria, que traz todos os números do sistema prisional e socioeducativo: casos ativos, suspeitos, número de vacinados, atendimentos de saúde, entre outros.

A vacinação já ultrapassou as 60 mil doses, envolvendo presos e servidores; a dose de reforço também já está sendo aplicada. A vacina, associada ao isolamento social, tem funcionado muito bem.

Se podemos falar de algum legado dessa pandemia, que não nos remeta a algum tipo de dor, é o fato de estarmos utilizando cada vez mais recursos tecnológicos. Hoje, além das visitas virtuais, temos também audiências virtuais e um parlatório virtual com os advogados.

 JT: Está em consulta pública o processo de parcerias público-privadas (PPP) para a infraestrutura penitenciária envolvendo o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Porque é que o estado de Santa Catarina opta pela parceria público-privada e como o Secretário vê o desenvolvimento deste processo?

LL: A abordagem do BID às parceiras público-privadas (PPP) é muito interessante e fez com que eu mudasse a minha visão. 

A experiência de co-gestão de unidades prisionais, que tivémos na última década, precisa ser revista. Houve questões relacionadas ao custo e controle, entre outras, que nos demoveram da modalidade de gestão compartida.

Porém, este modelo de PPP é uma alternativa aos modelos existentes, pois o poder de polícia do Estado não é subestabelecido nem terceirizado de nenhuma forma. 

Além disso, é muito mais caro ter um policial penal desempenhando as atividades intermediárias numa unidade prisional, como as relacionadas ao alojamento e à assistência em saúde.

Assim, juntamos o melhor da iniciativa privada e da Polícia Penal, por isso eu vejo este conceito com otimismo. 

Consigo imaginar hoje a Polícia Penal desempenhando a sua atividade a 100% e a entidade privada desenvolvendo outras ações. Cada um com seu papel e responsabilidades bem definidos para que nenhuma das partes seja prejudicada.

Queremos que a primeira experiência de PPP sob este formato seja bem-sucedida, pois, nesse caso, ficará como o nosso parâmetro a melhorar para o futuro.

Leandro Lima

Secretário de Estado da Administração Prisional e Socioeducativa, Santa Catarina, Brasil

Leandro Lima iniciou sua carreira como Policial Penal em 1988. Pedagogo, formado pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), teve publicações científicas na Revista do Observatório Internacional de Educação nas Prisões, do Instituto da UNESCO para Educação, e no 1º Fórum Internacional de Ações Socioeducativas nas Prisões, tendo sido agraciado com a medalha do Mérito Acadêmico em 2005. Anteriormente às suas atuais funções no Sistema de Justiça e Cidadania de Santa Catarina, atuou como Diretor de vários estabelecimentos penitenciários e foi também Diretor do Departamento de Administração Prisional de Santa Catarina.

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