Reflexões éticas e morais sobre a prisão digital

O uso da tecnologia está aumentando no cenário da justiça criminal. Isso está lentamente recebendo atenção da pesquisa acadêmica no novo campo da criminologia digital. Essa transformação levanta dilemas morais e éticos inexplorados.
É inevitável que a tecnologia desempenhe um papel importante na prestação de serviços em nossas prisões. A tecnologia não é neutra – seu impacto tem implicações sociais, psicológicas, políticas e econômicas para nossas prisões. Estamos atentos a isso e podemos fazer algumas sugestões valiosas sobre como a tecnologia é implementada. Acreditamos que a tecnologia, se gerenciada com sensibilidade, pode ajudar na ressocialização.

 

Por que devemos usar a tecnologia em nossas prisões?

O panorama prisional é peculiar e o uso da prisão para criminologistas é um debate complexo. Nossas prisões são instituições organizadas pelo poder, controle e ordem e o projeto de encarceramento priva deliberadamente os infratores não apenas de sua liberdade, mas de sua autonomia, suas relações e sua cidadania.

Este é o cenário em que estamos lidando e as suposições sobre o impacto que a tecnologia pode ter, de fato exigem atenção. Portanto, as discussões sobre direitos dos cidadãos e tecnologia têm, no cenário prisional, um significado distinto.

Os direitos, a escolha e a autonomia dos reclusos são fortemente regulados e as consequências deste tipo de privação são amplamente reconhecidas. Ao fazê-lo, o debate para introduzir a tecnologia nos contextos prisionais tem que considerar corretamente os danos que ela pode criar. Estes são os dilemas éticos que enfrentamos.

Em muitos casos, a tecnologia não é a solução, mas igualmente pode ser a melhor solução. Equilibrar os benefícios e riscos é algo que precisamos nos atentar. No entanto, aumentar ainda mais os danos à experiência do preso não deve ser uma consequência não intencional da transformação digital. Esta deve minimizar os danos e ajudar com os resultados da ressocialização.

Temos a responsabilidade de preparar as pessoas na prisão para sobreviver nesta sociedade impulsionada pela tecnologia e a questão sobre como usamos a tecnologia deve basear-se em princípios éticos e morais.

Depois que um preso estoniano se opôs ao fato de que ele não tinha acesso à internet, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) declarou que negar a um detento o acesso à Internet pode constituir uma violação do artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH).

Embora o Tribunal de Justiça tenha considerado que o artigo 10° da Convenção não pode ser interpretado no sentido de que impõe uma obrigação geral de facultar aos reclusos acesso à internet, sublinhou que o acesso à Internet tem sido cada vez mais entendido como um direito. Assim, recomenda que sejam desenvolvidas políticas eficazes para o acesso à internet e para superar a “exclusão digital”. No entanto, com os direitos vêm as responsabilidades.

 

A responsabilidade da privacidade: a necessidade de transparência

Nos EUA, o caso “o Estado contra Loomis” estava relacionado ao uso de uma ferramenta de avaliação de risco de infratores que utilizava um algoritmo (de Inteligência Artificial) para tomar decisões de condenação.

No caso, foi delineado que a um réu considerado em alto risco de reincidência se negava a possibilidade de liberdade condicional e se impunha uma sentença de seis anos. A Suprema Corte de Wisconsin considerou que o uso de uma avaliação de risco algorítmica por um tribunal de primeira instância na sentença não violava os direitos do réu, embora a metodologia usada para a avaliação não foi divulgada ao tribunal nem ao arguido.

O tribunal depositou sua confiança no algoritmo, apesar de os atores do sistema de justiça terem visibilidade limitada do raciocínio do algoritmo. Este caso destaca a necessidade de entender a fundamentação ética e moral e nos perguntamos se uma máquina pode ser ética em seu trabalho.

Entretanto, em dezembro de 2018, a Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça (CEPEJ) publicou uma Carta Ética Europeia sobre o uso da Inteligência Artificial no sistema judiciário e seu entorno. Saudamos este fato, no entanto, um ponto que queremos destacar é que os quadros, a política e a orientação têm de ser específicos para cada contexto, tendo em mente cada sistema prisional e o sua população.

Este é o desafio daqui para frente. Como sugere Hildebrandt (2015) em seu trabalho sobre tecnologias inteligentes e direito, precisamos reconsiderar como fazemos as coisas agora. Ela sugere que o que foi feito antes precisa de uma revisão completa. As velhas regras e leis precisam ser reescritas tendo em mente a questão da tecnologia.

Sua mensagem para nós é clara e propomos que a transformação digital nas prisões exige uma abordagem revisada e sob medida. Todas as regras, políticas e orientações têm de incluir o comportamento digital. A transformação digital está apenas no início e há uma oportunidade de fazê-la bem agora mesmo.

 

Desenvolver princípios éticos para a ressocialização digital nas prisões

Em 1764, o filósofo italiano Cesare Beccaria descreveu sua visão de eliminar os fundamentos das práticas de justiça criminal do antigo regime e avançar em direção ética e moral. Assim, baseando-nos em seus princípios, queremos destacar quais aspectos exigem o desenvolvimento de um quadro ético e moral.

 

  • O princípio da legalidade

O ato de prisão é legal – retira e priva os presos de direitos específicos.
Estender o projeto de IA para o cenário prisional poderia comprometer a progressão de um preso e negar-lhe oportunidades de igualdade para ressocialização.

Negar, limitar e privar oportunidades de ressocialização pode ser uma questão para mais litígios. Se a tecnologia é usada para fazer essas avaliações, que direitos os detentos têm em reivindicar uma compreensão dessa tomada de decisão?

Além disso, no advento dos serviços de e-mail para os reclusos, que direitos eles têm de manter e conservar essas interações quando saem da prisão? Projetar esses processos exige uma perspectiva que considere plenamente os direitos e a necessidade de reduzir os danos nesses ambientes. Além disso, estabelecer uma base segura sobre quais são os direitos dos presos requer uma reflexão mais aprofundada à luz da digitalização.

 

  • O princípio da publicidade e da transparência

Para além do princípio da legalidade, é importante a necessidade de tornar a tomada de decisões transparente. Um ambiente onde regras e regulamentos impactam diretamente na vida cotidiana do detento pode ser experimentado como comprometedor e sufocante.

Muitos internos falam sobre justiça e humanidade quando se trata de tomada de decisão e o uso da IA, por exemplo, para tomar decisões e avaliar o risco poderia ter o potencial de eliminar a subjetividade. No entanto, isso depende da metodologia do algoritmo. E há, naturalmente, o perigo da discriminação. Divulgar a tomada de decisões é crucial.

 

  • O princípio da proporcionalidade

As prisões coletam com competência dados sobre os internos, registrando meticulosamente seu comportamento, suas visitas, suas realizações e suas violações. O “poder da caneta” é uma forma de soft power que traz aos presos dores distintas do encarceramento (ver Crewe, 2011). Esse nível de vigilância é um componente-chave para o encarceramento e a tecnologia pode amplificar o volume e a frequência com que um detento pode ser monitorado.

Em uma prisão digital, cada pressionamento de tecla, pesquisas, interação digital feita pelo detento é gravado permanentemente. A coleta desses dados sem restrições precisa ser explorada. A proporcionalidade da recolha de dados não deve ser exaustiva e deve se considerar seriamente a compreensão dos tipos de dados que as máquinas podem coletar e utilizar.

Por quanto tempo os dados devem ser mantidos e os usuários (presos) podem solicitar um registro de seu histórico digital? Até onde as organizações prisionais estão dispostas a ir para limitar e colocar em primeiro plano os direitos dos usuários digitais?
O desafio, é claro, será determinado por metas e objetivos prisionais, bem como por organizações de justiça mais amplas, como a polícia e a liberdade condicional.

 

  • O princípio da igualdade e da equidade

Knight (2016) identifica a prisão como um ambiente “pobre em comunicação”. O acesso às tecnologias comunicativas tem sido historicamente fortemente regulado e controlado e isso tem consequências sociais e emocionais para o preso em serviço. Assim, os detentos configuram um grupo que está sujeito à exclusão digital de várias maneiras. Selwyn (2003) explora isso de forma útil em seu trabalho sobre o uso e o não uso da tecnologia.

A questão do acesso não é a única barreira, uma vez que existem restrições pessoais e organizacionais à aquisição e manutenção da competência digital. A transformação digital é desafiadora e muitos desses desafios perpetuam oportunidades de acesso desigual.

As disparidades não são apenas identificáveis em diferentes jurisdições em todo o mundo, mas dentro de países únicos, as oportunidades de acessar e usar a tecnologia é uma loteria postal. O direito e a liberdade de utilização da tecnologia são dificultados por muitas razões econômicas e políticas na comunidade em geral, o que tem amplificado as implicações para a prisão.

Precisamos começar a explorar os tipos de competências digitais das quais os presos se beneficiariam; por exemplo, descobrir quais as competências digitais que permitiriam a um detento prosperar. Isto também está ligado ao princípio da legalidade, uma vez que a prisão obscurece direitos, nega-os e limita-os.

 

  • O princípio da agência

É necessário que as implicações do encarceramento não estendam o dano para além do infrator condenado. Famílias e amigos são diretamente afetados pelo encarceramento e isso também cria danos significativos.

Está bem documentado que, se os internos puderem manter relacionamentos saudáveis e funcionais com sua família, há maiores chances de reinserção e é menos provável que regressem à prisão.

A tecnologia, portanto, tem um papel óbvio a desempenhar aqui. A tecnologia de contato pessoal, como e-mail, telefone e chama de vídeo pode aumentar o contato. Isso, no entanto, é agridoce para os internos e suas famílias.

Embora o aumento das oportunidades de ter contato regular seja bem-vindo, o custo disso para as famílias está sujeito a algumas críticas. Serviços como esses não são gratuitos. Alguns temem que a estrutura de preços seja elevada e, normalmente, muitas das famílias dos reclusos pertencem a grupos socioeconómicos mais baixos, o que pode contribuir para a pobreza em curso.

O mercado de tecnologia prisional é restrito e os detentos e suas famílias não podem procurar o melhor negócio – ou usam o serviço implementado na prisão ou não. Em suma, esse mercado fechado compromete a escolha. Ao fazê-lo, pode exacerbar os danos ao preso e aos seus familiares.

 

  • O princípio da normalidade

Alcançar a normalidade na prisão é um desafio, conseguir isso com a tecnologia também. No entanto, a tecnologia pode ajudar os detentos a realizar interações digitais que são espelhadas no mundo exterior. Privá-los de manter competências digitais é essencialmente anormal numa sociedade digital. Gerir o seu dinheiro, candidatar-se a emprego, interagir com a família e os amigos são comportamentos digitais normais.

O digital é o novo normal. Equilibrar esses princípios é um desafio, mas esperamos que, explorando e pensando nessas características éticas e morais, o desenvolvimento e a implementação reduzam os danos e contribuam para os resultados de ressocialização e que a reintegração social seja menos perturbadora possível.

 

 

Referências

Crewe, B. (2011). Soft power in prison: Implications for staff–prisoner relationships, liberty and legitimacy. European Journal of Criminology8(6), 455-468.

Hildebrandt, M. (2015). Smart technologies and the end(s) of law: novel entanglements of law and technology. Edward Elgar Publishing.

Knight, V. (2016). Remote Control: Television in Prison. London. Palgrave Macmillan.

Selwyn, N. (2003). Apart from technology: understanding people’s non-use of information and communication technologies in everyday life. Technology in society, 25(1), pp.99-116.

 

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Dr Victoria Knight, (doutorado, mestrado e graduação com honras), é pesquisadora sênior da Divisão de Justiça Comunitária e Criminal da Faculdade de Saúde e Ciências da Vida, da Universidade de Montfort.Sua especialização e experiência abarcam três áreas principais: uso de tecnologias digitais nas prisões, emoção e justiça criminal e educação de infratores. É membro do conselho editorial do Prison Service Journal e do Advancing Corrections Journal. Publicou seu trabalho sobre televisão na celaRemote Control – Television in Prison, Palgrave Macmillan, 2016. Também publicou extensivamente sobre tecnologia digital nas prisões.

 

 

Steven Van De Steene é arquiteto corporativo e especialista em tecnologia para sistemas penitenciários. Atua como consultor na área de inovação e estratégia tecnológica para prisões e serviços de liberdade condicional. Steven não só é membro do Conselho Associação Internacional de Serviços Prisionais e de Correção (ICPA), mas também é coordenador de sua Rede de Soluções Tecnológicas. Foi diretor de TI dos Serviços Prisionais Belgas até 2015.

 

 

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