// Entrevista: Ronald Lamola
Ministro da Justiça e dos Serviços Penitenciários, África do Sul
O Sr. foi nomeado ministro da Justiça e dos Serviços Penitenciários recentemente. Como vê esse papel?
RL: Desde que fui nomeado Ministro da Justiça e dos Serviços Penitenciários, passei a compreender e valorizar a importância de integrar os dois departamentos.
Ressocializar os infratores é um elemento inegociável no sistema de justiça da democracia constitucional na África do Sul. Em muitos aspectos, essa integração está no núcleo da criação de um Sistema de Justiça Criminal bem coordenado e eficaz.
É com a ajuda de promotores dedicados e funcionários dos serviços penitenciários comprometidos, que podemos atingir o equilíbrio constitucional entre a busca da justiça sem comprometer a dignidade das pessoas que ofenderam os Boni Mores (bons costumes) de nossas comunidades.
Que abordagem e esforços têm sido feitos para fortalecer a eficácia do Sistema de Justiça Criminal sul-africano?
RL: O sistema de justiça da África do Sul é parte integrante da reconstrução do país a partir de um Estado que foi projetado, de uma perspectiva legislativa, para atender a poucos e enfraquecer a maioria. Inevitavelmente, essa reconstrução não ocorre sem desafios, em partes, implica a revogação de leis discriminatórias e a inclusão de leis inclusivas. Como tal, garantir que nosso sistema de justiça funcione é um processo transformador.
De acordo com as diretrizes presidenciais, foi dada maior atenção aos assuntos relacionados com crimes de gênero e sexuais. Os tribunais continuam dando ênfase especial na condenação por esses delitos.
A melhora de 74,4% na taxa de condenação por crimes sexuais durante o exercício de 2018/19 reflete um firme compromisso de fazer justiça às vítimas desses crimes. Foi registrada uma taxa de condenação de 73,5%, com 1.636 condenações, com auxílio dos Centros de Assistência de Thuthuzela, que são centros especializados nas denúncias desse tipo de infração.
Apesar desses resultados, reconhecemos que ainda há o que melhorar em relação à proteção, defesa e apoio dos mais vulneráveis, inclusive abordando a luta contra o feminicídio. Os Small Claims Courts (Juizados de Pequenas Causas) continuam melhorando o acesso à justiça e fazendo com que seja mais barata, menos formal e acessível àqueles que não podem arcar com processos nos tribunais civis comuns.
A assistência jurídica gratuita na África do Sul continua defendendo os direitos de todas as pessoas ao acesso à justiça, através da prestação de serviços de assistência jurídica independentes, acessíveis e de qualidade em assuntos jurídicos penais e civis.
Em parceria com a Fundação para os Direitos Humanos, nosso Programa de Justiça Socioeconômica (SEJA, segundo sua sigla em inglês) tem como objetivo facilitar o cumprimentos dos direitos socioeconômicos de grupos vulneráveis e marginalizados e o fortalecimento das organizações da sociedade civil no setor de justiça social.
Ressocializar os infratores é um elemento inegociável no sistema de justiça da democracia constitucional na África do Sul. Em muitos aspectos, essa integração está no núcleo da criação de um Sistema de Justiça Criminal bem coordenado e eficaz.
Quais são os principais desafios enfrentados pelo sistema penitenciário atual?
RL: Nossa democracia constitucional tem como fundamento a dignidade humana. Em outras palavras, a filosofia Ubuntu/botho (humanidade) é central, inclusive na busca da justiça.
Em uma das pautas abordadas pelo Tribunal Constitucional do país, no ano de 2006, durante Dikoko vs Mokhatla, o Juiz Sachs, ao proferir o julgamento, elevou ubuntu como um padrão internacional de justiça restaurativa.
“O Ubuntu/botho (humanidade) está totalmente relacionado com as noções internacionais de justiça restaurativa em rápida evolução. Profundamente enraizada em nossa sociedade, ela se liga à luta mundial para desenvolver sistemas restauradores da justiça baseados em princípios de reparação e não puramente punitivos. Os elementos-chave da justiça restaurativa foram identificados como encontro, reparação, reintegração e participação.”
Basicamente, o que devemos conseguir demonstrar em nosso 25º ano de democracia é que nossas instalações penitenciárias são capazes de integrar os infratores de volta à comunidade. Para alcançar esse ideal constitucional, nossos processos devem basear-se no respeito e compromisso mútuos uns com os outros. É por essa razão que mudamos a noção de prisões para instituições corretivas. Esta não é uma mudança superficial, mas de paradigma.
Em uma sociedade democrática, não precisamos apenas manter os indivíduos fora de circulação ou aplicar sem rodeios a punição sentenciada pelos tribunais. Temos a enorme responsabilidade de corrigir comportamentos criminosos, em um ambiente seguro e humano, de realizar ao máximo a ressocialização e, na medida do possível, de evitar a reincidência.
A ressocialização deve ser vista como uma iniciativa social, que incorpora e incentiva a responsabilidade e justiça social, que transmite os valores democráticos e incentiva o empoderamento de nossas comunidades com habilidades para a vida, a fim de que os membros da sociedade façam da África do Sul um lugar melhor para se viver. Como Ministro, estou analisando os programas de ressocialização que temos à nossa disposição.
Em consonância com nossa nova visão, as parcerias com o setor privado e as comunidades são essenciais para garantir que nossas instalações funcionem em benefício da sociedade. Há uma questão importante que eu tenho procurado entender a partir de um nível perceptivo e no nível da realidade, “Quem são os infratores da África do Sul?”. É um fato incontestável que nossas instalações estão superlotadas e isso dificulta a segurança e a execução dos programas de ressocialização.
Nos últimos meses, realizei visitas anunciadas e não anunciadas em várias instalações penitenciárias e continuarei a fazê-lo. Uma imagem clara se cristalizou na minha mente desde essas visitas: o impacto da história violenta da África do Sul permanece até os dias de hoje.
Os altos níveis de violência que vimos em nossas comunidades, especialmente naquelas que suportaram o peso da colonização, não podem ser desvinculados dos altos níveis de atividades criminosas que vemos hoje. A violência tornou-se o processo padrão para a resolução de conflitos na sociedade, especialmente nos confrontos domésticos.
Soma-se a isso o impacto do subdesenvolvimento deliberado nas comunidades africanas, da desigualdade e da pobreza, que criam motivos propícios para o aumento da criminalidade e do crescimento de organizações e grupos criminosos. Isso também se agrava com a marginalização histórica e sistemática da juventude e a incapacidade da economia de absorvê-la no mercado de trabalho.
Outro fator que contribui para altos níveis de violência perpetrada contra as mulheres são as crenças patriarcais e a desigualdade de gênero, que se manifesta evidentemente na forma de relações de poder entre homens e mulheres. Nosso sistema de justiça criminal precisa responder de forma mais substancial às vítimas de crimes, o encarceramento de pessoas dessas comunidades oprimidas é apenas uma das facetas do restabelecimento do equilíbrio em nossa sociedade.
O outro lado da moeda revela que nossas instalações estão cheias de mulheres que retaliaram a violência de seus parceiros. Mulheres e jovens que recorreram ao furto em lojas como meio de sobrevivência. Jovens que estão cumprindo pena porque não podem pagar fiança.
(...) Mudamos a noção de prisões para instituições corretivas. Esta não é uma mudança superficial, mas de paradigma.
JT: Os infratores cumprindo penas alternativas na comunidade constituíam menos da metade da população carcerária em 2018/2019, o que representa pouco mais de 70.500 pessoas em liberdade condicional e supervisionada.[1]
Até que ponto o sistema penitenciário se beneficiaria se tivesse mais infratores cumprindo penas alternativas do que encarcerados? Quais são os desafios na área de penas não privativas de liberdade?
RL: A liberdade condicional consubstancia o princípio da reintegração social do infrator como parte do propósito do Sistema Penitenciário. Também reconhece o fato de que o indivíduo em liberdade condicional é particularmente vulnerável no início do processo de reintegração social.
Deve-se enfatizar que a liberdade condicional ocorre sob a orientação de agentes penitenciários atuando na comunidade e sob condições determinadas pelo Conselho de Liberdade Condicional, com base na avaliação do preso em liberdade condicional.
Em última análise, queremos um sistema penitenciário capaz de aplicar as sentenças impostas pelos tribunais. Para isso, nossa política de liberdade condicional deve estar sempre alinhada com a política de sentenças e à razão para a imposição da sentença particular pelo tribunal de justiça. A política de liberdade condicional também deve prever qualquer possível mudança por parte do condenado que possa reduzir ou remover o risco que ele representa para a sociedade.
Nosso objetivo principal deve ser a contribuição significativa na promoção da responsabilidade da comunidade pela correção.
Para isso, devemos educar a sociedade sobre as disposições legais que envolvem a participação de membros da comunidade, funcionários de departamentos estaduais relevantes no sistema integrado de justiça e familiares e amigos do preso nos processos de supervisão comunitária e conselhos de liberdade condicional. Os próprios presos também têm o direito de fazer representações ao Conselho, assim como a vítima do ato criminoso.
O que queremos alcançar com as penas alternativas é garantir que, quando os infratores forem soltos, eles tenham passado por programas que lhes permitam usar suas habilidades para ganhar a vida fora de nossas instalações e contribuir para o crescimento econômico de suas comunidades.
Apelamos a todos os sul-africanos para dar uma segunda chance aos infratores e não discriminá-los, pois fazendo isso, eles infelizmente voltarão às suas atividades criminosas. Que a sociedade apoie os infratores que são libertados, pois passaram por vários programas que os prepararam com formas de contribuir com a sociedade.
Temos exemplos de infratores que estão tocando negócios de sucesso depois de desenvolver habilidades em nossas instalações prisionais. Esta é uma área que queremos melhorar, para que os réus que saiam de nossas instalações com habilidades que lhes permitam abandonar seus caminhos criminosos.
Estamos encorajando os reclusos para iniciar projetos após sua libertação usando habilidades que eles adquiriram, e temos exemplos disso, como o projeto de mulheres em liberdade condicional, que estão fazendo um Projeto de Tricô que exibimos regularmente durante exposições do departamento.
O projeto fez doações para casas de crianças abandonadas e deu gorros e cachecóis para lares de idosos. A iniciativa recruta continuamente egressas do sistema prisional e este é o tipo de projeto que queremos que tenha marcas em todas as províncias do país.
Também temos presos em liberdade condicional, como Mhambi Mtose, que foi condenado a duas sentenças de prisão perpétua em 2000. Ele atualmente dirige um açougue e também vende comida em um posto de táxi diariamente, além de ter adquirido dois veículos e quatro freezers.
Enquanto estava sob custódia, ele recebeu formação em carpintaria e outras áreas, e também foi chefe de cozinha no Complexo Penitenciário de Drakenstein. Em 2017, Mtose foi admitido no sistema de penas alternativas na comunidade e as habilidades que adquiriu em termos de preparação de alimentos, enquanto estava sob custódia, o colocaram em uma boa posição para ter sua própria participação na indústria alimentícia. Mtose também empregou três pessoas permanentemente e outros infratores devem seguir seu exemplo, pois é isso que queremos que eles façam após sua libertação.
Outro preso em liberdade condicional, Victor Rampeng, foi condenado a 16 anos de prisão em 1996. Enquanto estava preso, realizou sua matrícula e, posteriormente, seu bacharelado em Gestão de Varejo. Atualmente estuda licenciatura em Administração de Empresas.
Em 2016, Rampeng inaugurou sua empresa conhecida como Resinalo Development Projects Pty Ltd, que realiza projetos em soldagem, cercamento, construção, reforma, pavimentação e assim por diante. Atualmente, ele tem 15 funcionários em seu negócio. Estes são alguns dos detentos com quem interagi e constantemente encorajo a crescer seus negócios.
Vamos continuar priorizando a educação de infratores em todos os nossos centros. No ano passado, nossos infratores do ensino médio alcançaram uma taxa de aprovação de 77,3 % e estamos procurando melhorar isso.
Desses infratores, 36,22% se qualificaram para admissão em cursos de bacharelado em universidades, enquanto 24,85% foram elegíveis para obter um diploma nacional (curso de 3 anos, equivalente a um nível 6 de qualificação) e 16,22% dos infringentes foram elegíveis para se inscrever em cursos de certificado superior (estudos de nível superior, equivalentes a um nível 5 de qualificação).
Os detentos alcançaram um total de 56 distinções em vários âmbitos, em seus exames, e esperamos que esses resultados melhorem este ano.
Nosso plano é continuar a alinhando o programa de treinamento de infratores com o roteiro para elaboração de programas de ressocialização nas prisões do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), bem como o Relator Especial das Nações Unidas sobre o Direito à Educação, que afirmam que o nosso programa de aprendizagem na prisão tem um impacto positivo na reincidência, em resultados de reintegração e emprego.
Continuamos também com a iniciativa Diálogos Vítima-Agressor (VODs), que visa fortalecer os atuais programas de ressocialização e reintegração. Queremos manter o maior número possível de pessoas longe do encarceramento através da reconstrução de unidades familiares e sistemas comunitários, bem como apoio e capacitação das vítimas, enquanto buscamos a ressocialização daqueles já encarcerados por meio de programas bem gerenciados.
Estamos confiantes de que essas iniciativas aumentarão nossos esforços para atingir nossa meta de alcançar, por ano, 97% das pessoas em liberdade condicional e 97% dos detentos em liberdade vigiada sem infringir sua pena. Não podemos conseguir isso sem um maior envolvimento, encorajamos participação e apoio de todos.
No entanto, é muito importante que nossos planos de ressocialização bem-intencionados não criem a impressão de que o encarceramento cria uma sociedade alternativa melhor do que a vida fora das instalações prisionais.
Houve equívocos de que nossas instalações oferecem vidas luxuosas aos infratores e queremos reiterar à sociedade que isso não é verdade e que não há nenhum elemento de luxo em nenhuma de nossas instalações. Embora os infratores sejam humanamente encarcerados, eles são obrigados a viver apenas com o básico e suas condições estão longe de ser luxuosas.
Como os Serviços Penitenciários abordam os desafios colocados pelas gangues e facções do crime organizado nas prisões?
RL: Uma das tarefas importantes que queremos alcançar nos serviços penitenciários é eliminar a corrupção e o contrabando, e estamos trabalhando duro para eliminá-los através de operações. Usaremos a tecnologia para detectar e prevenir o contrabando.
Todos os funcionários que se envolvem em atos de corrupção devem saber que não têm lugar no departamento e que receberão punições, sem compaixão. Nossos centros devem seguir sendo para reabilitar infratores e qualquer comportamento que não seja consistente com isso não será tolerado de forma alguma.
Estamos conscientes do que precisamos ser eficazes, mas para que isso aconteça, precisamos acertar o básico. Isso significa criar centros penitenciários seguros, onde a ressocialização é propositalmente estruturada para transformar vidas.
Estamos confiantes de que trabalhando em conjunto, vamos mudar as coisas e reabilitar os infratores para que abandonem sua vida criminosa e sejam bons cidadãos, que contribuirão para a construção do nosso país.
Qual é o posicionamento do seu Ministério sobre o futuro do modelo de PPP nos serviços penitenciários da África do Sul?
RL: A África do Sul possui duas instalações penitenciárias privadas, onde empresas privadas são responsáveis pela segurança e provisão de acomodações adequadas, tratamento médico, nutrição e programas recreativos e de reabilitação. Os infratores desses dois centros recebem os mesmos privilégios que os de outros lugares do país.
Nota: [1] Relatório Anual 2018/2019, Departamento de Serviços Penitenciários, República da África do Sul
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Ronald Lamola é ministro da Justiça e dos Serviços Penitenciários da África do Sul desde maio de 2019. Possui extensa formação acadêmica em Direito, incluindo dois mestrados na Universidade de Pretória – um em Direito Societário e outro em Direito Extrativista na África – além de um mestrado em em Direito Societário. Foi vice-presidente da Liga juvenil do Congresso Nacional Africano, ocupando posições no Comitê Executivo Nacional (desde dezembro de 2017) e no Comitê Nacional de Trabalho. Foi porta-voz interino do primeiro-ministro de Mpumalanga de janeiro a outubro de 2011, e anteriormente foi Gerente de Unidade Transversal no Município de Govan Mbeki, em 2009.