Entrevista
Ahmed Najmaddin Ahmed
Jurista e Diretor-Geral dos Serviços Prisionais, Ministério do Trabalho e Assuntos Sociais, Região do Curdistão, Iraque
O sistema prisional da região do Curdistão iraquiano enfrenta desafios substanciais, principalmente devido a fragilidades geopolíticas e de segurança. Radicalização, extremismo violento e superlotação prisional são preocupações com que o diretor-geral tem que lidar diariamente. Nesta entrevista, ele nos dá um relato da realidade do sistema prisional. As prioridades são avaliar o risco e promover um ambiente de ressocialização, uma missão para a qual precisam de apoio internacional.
Poderia nos dar uma visão geral do sistema de justiça criminal da Região do Curdistão, incluindo uma caracterização do sistema penitenciário?
AA: No que diz respeito aos procedimentos criminais no Iraque, geralmente há duas fases: a investigação preliminar, que é a fase de apuração judicial dos fatos, e a fase de litígio judicial (o julgamento principal).
O processo criminal é investigativo, os juízes investigadores lideram a fase de apuração judicial dos fatos. Eles têm amplos poderes de investigação, incluindo a responsabilidade pelo processo de coleta de provas e a realização de audiências formais com suspeitos e testemunhas.
Com base nas evidências disponíveis, os juízes investigadores podem anular o caso, suspendê-lo temporariamente ou encaminhá-lo a um tribunal para o julgamento principal. Quando o caso passa do tribunal investigativo para o julgamento principal, o arquivo criado pelo juiz investigador é usado como registro oficial.
O juiz lidera o processo de julgamento em cada caso, e assume a responsabilidade pela audiência e julgamento do caso, onde o juiz investigador coleta provas primárias. As sessões do tribunal geralmente são relativamente curtas.
O papel do Ministério Público no Iraque é principalmente administrativo. Inclui o monitoramento dos procedimentos judiciais e locais de detenção para garantir a legalidade dos procedimentos.
Os acórdãos do Tribunal de Primeira Instância podem ser apelados ao Tribunal de Cassação, que inclui a revisão dos autos. O Tribunal de Cassação revisa automaticamente sentenças de morte ou prisão perpétua. As leis de proteção dos menores se aplicam aos indivíduos até seus 18 anos.
O Governo Regional do Curdistão opera sob a Lei Antiterrorismo de 2006 (nº 3). A lei antiterrorismo aplicada na região do Curdistão criminaliza atos terroristas, incluindo “o uso da violência para espalhar o terror” e “qualquer ato com motivos terroristas que ameace a segurança da região ou danifique o patrimônio público”.
A sentença vai desde a prisão perpétua à pena de morte. Mas temos uma moratória de fato sobre a pena de morte desde 2008. Atualmente, nos centros penitenciários da região do Curdistão. Há 409 pessoas condenadas à morte.
Nosso sistema penitenciário é legalmente enquadrado pela Lei nº 104 de 1981 e pela Lei do Sistema de Reforma Social de 2008 do Governo Regional do Curdistão.
Nossas Diretorias/Superintendências Penitenciárias estão divididas em três cidades. Categorizamos os presos por sexo e idade: as mulheres são separadas dos homens, e os adolescentes são separados dos adultos.
Menores de 18 anos julgados pelo Juizado da Infância cumprirão sua pena no centro de detenção juvenil até os 22 anos. Se eles ainda tiverem tempo restante em sua sentença depois dessa idade, são transferidos para um presídio de adultos.
No sistema penitenciário de adultos, a classificação é baseada no tipo de crime e no nível de risco. Por exemplo, criminosos terroristas são habitualmente separados de usuários de drogas e traficantes, assassinos de ladrões, e assim por diante.
Além disso, sob a autoridade dada ao Ministério pela Lei da Reforma, o ministro do Trabalho e dos Assuntos Sociais emitiu várias instruções abrangendo diferentes assuntos penitenciários. Uma dessas diretivas permite ausências temporárias para que os presos condenados visitem suas famílias, desde que atendam a um conjunto de condições pré-estabelecidas.
Outras diretrizes têm a ver com o uso da força para restaurar a ordem entre os presos, instruções sobre as fileiras e uniformes dos funcionários da linha de frente que têm confrontos com os presos e também diretrizes especiais sobre artigos e produtos proibidos nas celas.
O diretor-geral tem autoridade para emitir ordens administrativas para os agentes penitenciários. Nesse contexto, o diretor-geral emitiu orientações sobre os deveres dos oficiais e o mecanismo de confinamento solitário para presos desordeiros, entre outros temas.
Estamos agora elaborando um projeto de lei sólido que inclui a reformulação de todas as instruções, diretrizes e textos de legislações anteriores.
Este projeto de lei prevê a criação de diretorias separadas para mulheres e jovens e uma Diretoria para a Abolição do Vício em Drogas e Doenças Mentais, considerando a Lei nº 1 de 2021 sobre Drogas e Saúde Mental, da Região do Curdistão.
JT: Há cerca de um ano atrás, havia aproximadamente 450 prisioneiros do Estado Islâmico ( ISIS) na Região do Curdistão (Fonte: Rudaw, 11 nov 2021).
Qual é a situação relativa aos detentos ligados a grupos terroristas, e quais são os principais desafios dessa realidade?
AA: Com a ascensão das organizações terroristas do Estado Islâmico (ISIS), a região do Curdistão, como todas as outras partes do Iraque, foi ameaçada por terroristas extremistas. Esses grupos terroristas atacaram não só as autoridades de segurança mas também civis, com atentados à bomba e tumultos.
Os terroristas formaram unidades organizadas na região do Curdistão e em todo o Iraque. Suas fontes de informações ainda estão ativas, e algumas se reorganizaram. Infelizmente, mulheres, crianças e outros civis estão entre as vítimas do terrorismo.
Atualmente, temos 2.300 prisioneiros terroristas nos complexos prisionais da região do Curdistão. A maioria dos prisioneiros são do centro e sul do Iraque. Em sua maioria, estão cumprindo longas penas e entre eles se encontram muitas mulheres e jovens. Embora as taxas sejam mais baixas do que para os homens adultos, temos muitos jovens que estiveram envolvidos nas ações extremistas do ISIS. Essa realidade impacta negativamente as comunidades, as famílias e o sistema prisional.
Como instituição penitenciária, não temos experiência prévia em lidar com condenados por terrorismo, nem em sua classificação e tratamento. Nossas prioridades são avaliar seu nível de risco de extremismo, estabelecer um protocolo de segregação entre os detentos e fornecer um processo de ressocialização e reintegração.
Além disso, é fundamental identificar a formação adequada, que pode ser um fator influente na mudança de seu pensamento e comportamento. Em última análise, todos esses fatores afetarão a própria segurança dos apenados e a proteção dos presídios onde estão cumprindo suas sentenças.
O grande fluxo de condenados por atos relacionados ao terrorismo para o nosso sistema prisional contribuiu significativamente para a superlotação das prisões. Isso ocorre especialmente nos complexos prisionais para homens de Erbil, Sulaymaniyah e Duhok, onde a maioria dos terroristas condenados são colocados.
A capacidade máxima total desses estabelecimentos é de 900 presos. No entanto, eles agora abrigam entre 1300 e 2200, o que significa que, infelizmente, tivemos que alocar mais de vinte ou trinta indivíduos em celas destinadas a oito detentos.
Como instituição penitenciária, não temos experiência prévia em lidar com condenados por terrorismo, nem em sua classificação e tratamento. Nossas prioridades são avaliar seu nível de risco de extremismo, estabelecer um protocolo de segregação entre os detentos e fornecer um processo de ressocialização e reintegração.
Quais são as necessidades do sistema prisional para lidar melhor com o terrorismo e apoiar sua prevenção? E em que medida o apoio externo e a cooperação de organizações internacionais, como o Departamento de Estado dos EUA e o Gabinete das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (UNODC), são importantes para isso?
AA: O Governo Regional do Curdistão (KRG) está comprometido com a ressocialização e reforma dos infratores. No entanto, ao contrário dos países avançados, ainda não temos experiência de gestão adequada nesse processos.
A comunidade internacional está preocupada com a soberania dos direitos humanos e sua proteção. Nós também, queremos trabalhar de acordo com as Regras de Nelson Mandela.
Estamos cientes de que, se os processos de trabalho e gestão de nossas instituições não atenderem a esses padrões, teremos uma filosofia de ressocialização incompleta e humilhante. Além disso, a segurança da comunidade enfrentará ameaças.
O extremismo intensificou-se após a queda do antigo regime iraquiano. Mais tarde, tanto a Al-Qaeda quanto o ISIS tornaram-se ameaças a nível internacional. Isso levou a que um número crescente de terroristas tenha vindo parar às nossas prisões. .
Para lidar assertivamente com esses presos, precisamos avaliar seu nível de risco. A avaliação de risco é uma das deficiências que ameaçam nossos centros prisionais. Precisamos, portanto, de apoio internacional e cooperação, particularmente do Departamento de Estado dos EUA e do Gabinete das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (UNODC).
Devemos capacitar nossa equipe em questões jurídicas, segurança, administração, liderança, gestão de crises, planos de contingência, prevenção e redução de ameaças no contexto prisional.
Também é imperativo fornecer programas de formação e ressocialização aos detentos e lidar com eles de acordo com as leis internacionais contra o extremismo. Devido à turbulência geopolítica em nossa região e às influentes causas do extremismo e do terrorismo, é possível que esse tipo de ameaça continue.
É por isso que precisamos nos preparar constantemente diante de ameaças relacionadas ao terrorismo. Não podemos encarar isso sozinhos; se o fizermos os nossos resultados serão fracos e inadequados, pois não temos capacidade humana suficiente nem tecnologia avançada.
Portanto, a cooperação internacional nos apoia com as disposições necessárias para sermos mais confiantes e aumentarmos o nosso moral.
Ao longo do tempo, temos tido apoio externo. A partir de 2009, beneficiamos de atividades de capacitação através do EUJUST LEX-Iraque (Missão Integrada da União Europeia para o Estado de Direito no Iraque). Esta missão de gestão de crises melhorou nossas instituições penitenciária com base em práticas europeias. .
Isso nos permitiu aprofundar nosso conhecimento sobre a proteção dos direitos humanos no contexto prisional, técnicas para lidar com os presos e outros temas críticos. Essa cooperação foi muito elucidativa e apoiou substancialmente o nosso avanço. Além disso, participei de muitas conferências e dezenas de cursos de capacitação e workshops, tanto a nível regional quanto internacional.
A União Europeia, o Serviço Sueco de Prisões e Reinserção Social, a UNICEF e a UNFPA desempenharam um papel essencial em nosso favor ao longo dos anos.
Recentemente, os workshops que o UNODC realizou em Erbil, entre novembro e dezembro de 2021, alimentaram nossa esperança e aumentaram nossas aspirações. E essas oficinas certamente melhoraram as competências da nossa equipe. Essa iniciativa foi um importante para nos lançar no caminho.
À medida que avançamos, faremos o possível com o UNODC para trazer continuamente mudanças positivas no âmbito do Direito Internacional e das Regras Mínimas Padrão das Nações Unidas para o Tratamento dos Prisioneiros.
A avaliação de risco é uma das deficiências que ameaçam nossos centros prisionais. Precisamos, portanto, de apoio internacional e cooperação.
Que outros desafios o sistema prisional enfrenta? E que progresso sua Direção-Geral foi capaz de alcançar em meio às particulares fragilidades geopolíticas e de segurança da região?
AA: Os infratores condenados por terrorismo, por serem perigosos, exigem segurança rigorosa e programas específicos. As medidas de segurança são especialmente críticas durante as atividades dos presos, devido ao perigo de fuga.
Estamos falando de grupos organizados que tentam se aproveitar dos momentos em que proporcionamos atendimentos médico, prática de esportes, formação profissional e até mesmo quando distribuímos refeições para gerar o caos.
Por exemplo, quando (as cidades) Mossul e Makhmur foram capturadas, prisioneiros terroristas foram capazes de ameaçar o diretor e os funcionários da prisão. Os prisioneiros terroristas geralmente são psicologicamente instáveis. Suas famílias não podem visitá-los, e alguns não têm número de telefone nem endereço. .
Os prisioneiros terroristas geralmente são psicologicamente instáveis. Suas famílias não podem visitá-los, e alguns não têm número de telefone nem endereço. A maioria precisa de dinheiro para despesas diárias, mas não têm ninguém para atender a essas necessidades. E o Governo Regional já está sobrecarregado, assegurando alojamento e serviços relacionados. .
No entanto, apesar das tensões e contingências, posso mencionar, brevemente, algumas das conquistas do nosso sistema penitenciário. Em primeiro lugar, a educação é uma das conquistas mais significativas de nossas prisões. Temos cerca de 400 presos continuando seus estudos: 29 na faculdade, 100 no ensino médio e 265 no ensino fundamental. No total, cem professores lecionam no sistema prisional. .
Proteger, cuidar e tratar nossos detentos quanto à sua saúde física e mental é outra conquista da qual nos orgulhamos. Todas as seis prisões da região do Curdistão têm um centro clínico, onde fornecemos cuidados de saúde abrangentes e temos médicos diariamente.
Nossas clínicas médicas incluem laboratórios, equipamentos de raio-x, farmácias e enfermarias de internação. E se um preso precisar de cuidados adicionais, o encaminhamos ao hospital da cidade, para receber o tratamento necessário.
Além disso, temos uma unidade de apoio social e psicológico que é gerenciada por assistentes sociais. Uma das conquistas mais significativas dessa unidade tem sido a realização de seminários, formações e séries culturais para muitos jovens presos afiliados ao ISIS, os chamados Ashbal al-Khalifa (os filhotes do califado).
As atividades consistem em dissecar e extrair ideias de extremismo religioso e violência. Com essa iniciativa, conseguimos que muitos jovens abandonassem suas visões extremistas.
Por outro lado, as conquistas que fizemos na área jurídica incluem o fornecimento de advogados, liberações condicionais e também saídas temporárias, para que os presos possam visitar suas famílias em casa.
Gostaria também de destacar o tema da formação profissional. Em todas as nossas unidades reformatórias, os detentos podem aprender manutenção e reparo de ar-condicionado AC, ferraria, carpintaria, barbearia, decoração, pintura, artesanato feminino, reparo de equipamentos elétricos, agricultura e plantio, etc. Muitos presos trabalham e ganham a vida.
Além disso, fazemos monitoramento após a saída da prisão. Ajudamos os jovens egressos a encontrar um emprego e, em alguns casos, até fornecemos apoio financeiro para que iniciem um pequeno projeto.
Também me apraz dizer que temos conquistas marcantes no esporte e na educação física. Os presos participam de vários torneios, treinamentos e competições esportivas de futebol, vôlei, tênis de mesa, xadrez, entre outros.
Em relação à formação e desenvolvimento de pessoal, lançamos diversos cursos, seminários e oficinas de capacitação para os nossos colaboradores. Com essas iniciativas, conseguimos avanços significativos no seu trabalho.
Além disso, conseguimos um nível de segurança adequado nos nossos complexos prisionais, através da cooperação com o Ministério do Interior, que também está trabalhando duro para proteger os perímetros de nossas instalações.
Os programas especiais que estamos implementando em nossos centros servem às políticas governamentais para reduzir a criminalidade e o extremismo violento. Dessa forma, ao ajudar a reduzir a ameaça do terrorismo, estamos promovendo e garantindo a segurança pública em nosso país.
JT: De acordo com o site oficial do Governo Regional do Curdistão, o governo está comprometido com uma missão ambiciosa: boa governança, transformação digital, relações com o Governo Federal do Iraque, relações exteriores e o fortalecimento das forças de segurança.
Até que ponto e de que forma sua Direção-Geral contribui para cada uma das áreas da missão do governo?
AA: Como qualquer governo, o Governo Regional do Curdistão dispõe o orçamento para atender às necessidades do sistema penitenciário.
Os surtos de ocupação e ataques do ISIS em nossa região levaram à deterioração econômica e da segurança, impactando negativamente a administração do governo.
Houve atrasos no pagamento integral dos salários dos funcionários públicos, incluindo diretores de presídios e agentes penitenciários. No entanto, dadas as circunstâncias, todos continuaram a trabalhar incansavelmente, com um espírito de sacrifício e apoio ao governo.
A principal contribuição do sistema penitenciário é preparar os presos para retornarem à comunidade e suas famílias como cidadãos cumpridores da lei.
Trabalhamos para diminuir a mentalidade criminosa e ressocializar todos aqueles sob nossa custódia, especialmente os condenados por terrorismo e por trabalhar com a Al-Qaeda e o ISIS, que representam ameaças diretas ao governo e à sociedade. Os programas especiais que estamos implementando em nossos centros servem às políticas governamentais para reduzir a criminalidade e o extremismo violento.
Dessa forma, ao ajudar a reduzir a ameaça do terrorismo, estamos promovendo e garantindo a segurança pública em nosso país. Além disso, estamos tentando ressocializar e reintegrar todos os nossos presos de acordo com o direito internacional e as Regras Nelson Mandela, portanto apoiando a segurança da comunidade em geral.
Ahmed Najmaddin Ahmed
Jurista e Diretor-Geral dos Serviços Prisionais, Ministério do Trabalho e Assuntos Sociais, Região do Curdistão, Iraque
Ahmad Najmaddin Ahmed é natural do Curdistão iraquiano. Possui mestrado em Direito Público e tem uma carreira de várias décadas em diferentes áreas. Em 2009 iniciou suas funções como Diretor-Geral dos Serviços Prisionais, sob a tutela do Ministério do Trabalho e Assuntos Sociais do Governo Regional do Curdistão. Seu cargo anterior tinha sido como consultor de gestão no Ministério da Saúde.