Entrevista
Victor Dickson
Presidente e Diretor Executivo da Fundação Safer, EUA
Quem são exatamente os clientes da Fundação Safer e como o Sr. os apoia para se tornarem cidadãos cumpridores da lei?
VD: Por quase 50 anos, a Fundação Safer forneceu serviços de desenvolvimento de força de trabalho para indivíduos com registros de prisão e condenação em Illinois e Iowa.
Nossos clientes estão atualmente presos em presídios estaduais ou do condado, aguardando julgamento, em liberdade condicional, em liberdade vigiada ou na comunidade e não mais sob supervisão.
A Fundação Safer apoia os indivíduos, independentemente da natureza de sua condenação criminal ou do período em que ela ocorreu. Nossos clientes podem ter antecedentes criminais de um evento que aconteceu décadas atrás, mas precisam de ajuda hoje.
Além disso, servimos homens, mulheres e jovens envolvidos no sistema de justiça. Somos uma organização não-governamental (ONG) financiada por governos federais/ estaduais/locais, filantropia e doadores privados.
A Fundação Safer também opera inúmeras empresas sociais projetadas para oferecer treinamento e oportunidades de emprego para nossos clientes e gerar receita operacional para a organização.
Esses empreendimentos incluem uma construtora, uma agência de recrutamento alternativa e um call center. Acreditamos que a chave para nossos clientes se tornarem cidadãos cumpridores da lei é que eles se tornem cidadãos plenamente funcionais e capazes de sustentar a si mesmos e suas famílias economicamente.
Para isso, é preciso assisti-los com uma ampla variedade de programas e serviços. Nosso propósito é ajudá-los a conseguir emprego no setor privado, com salários dignos, ou a se tornarem empreendedores.
Para alcançar esse objetivo, precisamos ajudá-los com uma ampla variedade de necessidades, incluindo moradia, tratamento de drogas, serviços de saúde mental e cura de traumas, vínculos com serviços de saúde física, estabelecimento de uma ponte para formação acadêmica, profissional e obtenção de certificações, serviços de preparação e colocação no mercado de trabalho e de permanência no emprego.
Quais são as conquistas mais significativas da Fundação Safer até agora?
VD: As principais conquistas incluem o modelo de desenvolvimento da força de trabalho – o modelo que designamos ASCEND. Este modelo utiliza intervenções baseadas em evidências que comprovaram ser eficazes para uma reintegração bem-sucedida na sociedade.
Além disso, nossas conquistas incluem a obtenção de licença para prestar serviços de tratamento de abuso de substâncias; a operação de centros de liberdade condicional financiados pelo Estado, onde os presos trabalham fora das prisões. Também cabe assinalar conquistas políticas e de defesa de direitos, e até a nível legislativo, que contribuem para eliminar barreiras ao emprego e servir como um intermediário fiscal e de programas, a nível federal e estadual.
Indivíduos com antecedentes criminais enfrentam mais de 40.000 consequências colaterais que os trancam em uma cidadania de segunda classe.
JT: A Fundação Safer é a única organização sem fins lucrativos a operar dois Centros de Transição para Adultos (ATCs, segundo sua sigla em inglês) em nome do Departamento Penitenciário de Illinois.
Em que consistem esses centros e como é a relação de parceria entre a Safer e o Departamento Penitenciário estadual?
VD: Os Centros de Transição para Adultos (ATCs) são instalações residenciais de trabalho em liberdade condicional , que abrigam 650 detentos do sistema prisional estadual que estão completando os dois últimos anos de sua sentença.
Estes centros fornecem uma ampla variedade de serviços com intuito de preparar os detentos para o emprego no setor privado e para a reinserção social na comunidade e em suas famílias.
Os serviços dos ATC incluem formação acadêmica, preparação de testes e provas de equivalência do ensino médio, terapia de abuso de substâncias individuais e em grupo, tratamento da dependência química através do uso de medicamentos, capacitação profissional e programas de certificação, programas de paternidade e reagrupamento familiar, serviços de colocação e permanência nos empregos.
Os detentos que se matriculam através de nossos Centros têm uma taxa de reincidência aproximadamente 50% menor do que a taxa de reincidência para detentos liberados diretamente da prisão estadual. A Fundação Safer opera estes Centros para o Departamento Penitenciário de Illinois há quase 40 anos.
A nossa relação é contratual, o que significa que o Departamento Penitenciário é nosso cliente e que devemos garantir continuamente que ele esteja satisfeito com o nível de serviço que prestamos.
Além disso, nossos ATCs são certificados pela Associação Americana dos Sistemas Penitenciários (ACA – American Correctional Association), certificados para cumprir a Lei de Eliminação de Estupro na Prisão, e ainda certificados pelo Departamento Penitenciário de Illinois anualmente.
Qual é a sua visão sobre a evolução dos principais desafios que impedem melhores resultados para pessoas com antecedentes criminais? O que precisa mudar?
VD: Os principais desafios que impedem melhores resultados para pessoas com antecedentes criminais começam com a falta de compreensão, na sociedade em geral, das consequências colaterais de ter antecedentes criminais e de como isso cria uma inabilidade social ao longo da vida.
Keesha Middlemass, da Universidade de Howard, de Washington, D.C, escreveu um livro intitulado “Convicted and Condemned” (Culpado e Condenado, em livre tradução), no qual ela descreve a condenação criminal como uma “deficiência social”. Uma deficiência que inibe o pleno funcionamento do indivíduo e a participação em nossa sociedade, em muitos aspectos, da mesma forma que as pessoas com deficiência física.
Ela argumenta que, sem intervenção social e legal para eliminar a deficiência, indivíduos com antecedentes criminais nunca se tornariam membros plenos e produtivos de nossa sociedade.
Indivíduos com antecedentes criminais enfrentam mais de 40.000 consequências colaterais, barreiras que os colocam à margem da sociedade. Essas barreiras representam políticas e leis promulgadas localmente em todos os cinquenta estados dos EUA.
Portanto, eliminar essas consequências colaterais torna-se uma tarefa enorme, porque cada Estado requer uma ação individual. Um dos fatores mais importantes é o desconhecimento da população em geral em relação a essas barreiras e o grande número de pessoas com antecedentes criminais. Nos Estados Unidos da América, mais de 70 milhões de pessoas – cerca de 25% da população – têm um registro de prisão ou condenação que os torna suscetíveis a essas consequências colaterais.
Outro ponto de desconhecimento é a relação entre antecedentes criminais e outros problemas socioeconômicos que as pessoas enfrentam. A relação causa e efeito não é clara, mas o que está claro é que as pessoas com antecedentes estão desproporcionalmente representadas em quase todas as áreas do problema socioeconômico.
Normalmente essa população está entre os pobres, desabrigados, desempregados, viciados, analfabetos, sofrendo de problemas de saúde mental e, claro, presos no ciclo de envolvimento em nosso sistema de justiça criminal. As coisas que precisam mudar incluem nossas leis, políticas e práticas no governo e no setor privado.
Devemos continuar a eliminar as barreiras trabalhistas, como leis de licenciamento ocupacional que impedem as pessoas com antecedentes de ingressar em uma ampla variedade de ocupações.
Além disso, precisamos de reformas no sistema penal para abordar a duração desnecessária e a abordagem punitiva das penas. Ademais, a fiança em dinheiro deve ser eliminada, uma vez que resulta na detenção de modo desproporcional de pessoas pobres e das minorias representativas. Além disso, gostaríamos de assistir à expansão de leis que permitissem eliminar a ficha de antecedentes criminais de egressos do sistema de justiça.
E, claro, as reformas policiais são cruciais para trazer equidade racial na aplicação da lei. Portanto, há uma ampla variedade de mudanças necessárias para reduzir o número de pessoas que estão entrando em nosso sistema de justiça criminal, diminuindo nossa população prisional. Devemos garantir que as pessoas que não são uma ameaça à segurança pública não sejam desnecessariamente encarceradas e que as pessoas que estão na prisão realmente passem por um processo de ressocialização e recebam os serviços abrangentes que precisam quando forem libertadas da prisão, para que o ciclo de reincidência seja quebrado.
Os principais desafios que impedem melhores resultados para pessoas com antecedentes criminais começam com a falta de compreensão das consequências colaterais de ter antecedentes criminais e de como isso cria uma inabilidade social ao longo da vida.
Em sua opinião, até que ponto a pandemia da Covid-19 e suas consequências agravaram os desafios de reintegração de quem está em conflito com a lei penal?
VD: A COVID-19 permitiu que todos vissem os problemas que já existiam em nossa sociedade o tempo todo.
Quando o coronavírus chegou em nosso estado, o gabinete do governador e o Departamento Penitenciário pediram à Fundação Safer para ajudar os presos que foram liberados antecipadamente da prisão para reduzir a superlotação e evitar uma expansão catastrófica do vírus dentro dos presídios.
Em uma semana, reunimos uma equipe de organizações parceiras e começamos a apoiar esses egressos imediatamente após seu retorno à comunidade. Estabelecemos uma função de triagem para avaliar as necessidades e vinculamos as pessoas especialistas de reintegração social, que ajudam a conectá-las aos vários serviços e programas de que precisam.
Uma das consequências da COVID-19 foi que as famílias e amigos com quem os detentos normalmente buscavam moradia estavam sofrendo as consequências econômicas negativas da pandemia. Muitas famílias tinham membros que perderam seus empregos e agora enfrentavam a própria insegurança habitacional, e ainda estavam sendo solicitados a receber inesperadamente um membro da família que foi libertado da prisão.
A crise de saúde pública criou uma situação em que os detentos estavam voltando para as casas que já estavam passando por dificuldades econômicas e agora havia outra boca para alimentar sem uma fonte de renda. Além disso, algumas pessoas que foram liberadas tiveram cuidados de saúde precários, possuem doenças crônicas e são ainda mais suscetíveis ao vírus.
Egressos do sistema prisional sempre enfrentaram insegurança habitacional, falta de recursos básicos como alimentação e vestuário, necessidades de transporte, necessidades de saúde comportamental e necessidades de cuidados de saúde física. Agora eles voltaram para uma sociedade onde essas necessidades são ainda mais acentuadas para indivíduos sem antecedentes.
Com apoio filantrópico, pudemos proporcionar pacotes de cuidados para indivíduos que saíram da prisão devido a COVID-19, que incluía alimentos, roupas, produtos de higiene pessoal, acesso à tecnologia, auxílio-moradia e auxílio-emprego.
A desaceleração da economia tornou a busca de emprego ainda mais difícil para as pessoas com antecedentes criminais. Estudos mostram que, em tempos normais, egressos têm uma taxa de desemprego de 27% ao ano após serem postos em liberdade.
Esta taxa de desemprego é maior do que a taxa que os estadounidenses tiveram durante a Grande Depressão! Só se pode imaginar qual é esse nível de desemprego agora, quando a sociedade está experimentando o trauma econômico da COVID-19. Esta pandemia tornou a experiência e as necessidades das pessoas egressas mais visíveis.
A pandemia nos fez conscientes das disparidades em nossa sociedade, incluindo na saúde, no emprego e no acesso aos recursos. Também nos fez perceber que esses problemas são ampliados dez vezes para pessoas com antecedentes criminais, especialmente aquelas liberadas da prisão durante esse período.
Mas também vimos que podemos implementar uma abordagem holística para ajudar efetivamente na reinserção social dos egressos, a qual implementamos durante a pandemia.
Essa abordagem holística foi nomeada nosso Programa de Resposta de Liberação Antecipada de Emergência (PEERR™, por sua sigla em inglês) (os leitores podem revisar um relatório sobre o programa PEERR™).
Este programa representa o modelo de coordenação previa e posterior a liberação e os serviços abrangentes necessários para a reinserção dos egressos para além da pandemia.
Nosso sucesso na melhoria de vida de nossos clientes exige reformas do sistema de justiça nacional e estadual, mudanças políticas e legislativas, mudanças na política e práticas de emprego e ampliação de serviços de reinserção integrais/holísticos com coordenação previa e posterior a liberação.
Victor Dickson
Presidente e Diretor Executivo da Fundação Safer, EUA
Victor Dickson ingressou na Fundação Safer como presidente em 2013. Sua experiência inclui mais de 20 anos no setor corporativo, onde ocupou vários cargos de liderança, mas suas raízes estão no serviço social. Dickson atuou por seis anos como Diretor de Operações de uma grande igreja, dirigindo várias entidades que prestam serviços sociais, de educação e esforços emergenciais, em escala local e internacional. Fez parte de conselhos e comissões, incluindo a Comissão de Serviços Humanos de Illinois, a Comissão de Illinois para a Eliminação da Pobreza, o Conselho de Oportunidade de Inovação da Força de Trabalho de Illinois, entre outros. É graduado pela Universidade Roosevelt em Chicago.