Christine Montross
© Photo by Elena Seibert

Quais as soluções para doentes mentais presos em um sistema de justiça criminal esgotado?

Entrevista

Christine Montross

Médica psiquiatra, autora de “Waiting for an Echo – The Madness of American Incarceration”, EUA

O que a fez enveredar para os estudos sobre o encarceramento e sobre como o sistema legal estadunidense gerencia a saúde mental? 

CM: Eu sou uma psiquiatra de tratamento hospitalar.  Trabalho em um hospital psiquiátrico nas unidades de tratamento intensivo – o equivalente, para a saúde mental, das unidades de terapia intensiva (UTIs) médica. Os pacientes que estão internados lá são os que possuem quadro médico mais graves. Estão ativamente ouvindo vozes ou tendo visões, estão profundamente deprimidos, tentando machucar a si mesmos ou outras pessoas, com episódios maníacos, grandioso ou delirante.

Meus pacientes estão realmente sofrendo de suas graves doenças mentais. O que eu descobri desempenhando este papel, foi que, mais de um vez, meus pacientes diziam que estavam em contato com a polícia.

Às vezes, o encontro com a polícia os levou ao hospital. Mas, muitas vezes, o encontro policial terminava com eles indo para a cadeia. E eu pensei em como era difícil para eles cumprir as instruções, mesmo dentro de um ambiente terapêutico, como o de um hospital. Então comecei a me perguntar como deve ser para eles estar em um ambiente punitivo que exigia conformidade, como um cárcere ou uma prisão.

Para entender isso melhor, comecei a realizar testes de capacidades para as avaliações em julgamento. Nos EUA, se um advogado de defesa ou um juiz tem a preocupação com a capacidade de um réu de entender suas acusações ou de como o tribunal funciona, ou se têm a capacidade de lidar com advogados, o juiz pode ordenar uma avaliação de competências para que um provedor de saúde mental avalie se essa pessoa é ou não competente para ser julgada.

Através deste trabalho, comecei a ver em primeira mão que as pessoas que eu estava avaliando nas prisões do nosso país muitas vezes não eram diferentes das pessoas que eu estava atendendo no hospital. E, muitas vezes, os homens e mulheres que eu avaliei na prisão foram encarcerados por razões que tinham muito pouco a ver com intenção criminosa, mas sim com sua sintomatologia psiquiátrica.

Por exemplo, eles poderiam ter gritado com suas alucinações em uma cafeteria ou ter sido acusados pelos seguranças de um aeroporto porque estavam delirando sobre a necessidade de entrar em um determinado voo. Nesses momentos a polícia é chamada e o sistema de justiça assume.

Eu era escritora antes de ser médica, antes de ir para a faculdade de medicina eu era poeta. Comecei a escrever quando criança como uma forma de dar sentido ao mundo.

Quando comecei minha carreira na medicina, realmente me apoiei na escrita para dar sentido às coisas que estava enfrentando: quando estava no primeiro ano da graduação  escrevi um livro sobre a experiência de dissecar um cadáver, também escrevi um livro sobre os casos mais difíceis e envolventes que tive como psiquiatra recém graduada.

E então essa se tornou uma daquelas perguntas que realmente martelavam em minha cabeça : “O que acontecia com meus pacientes quando eles estavam nesses ambientes punitivos?”

Comecei a falar com meus pacientes sobre como eram suas experiências com a polícia e em cárcere. Eu estava realizando avaliações de competência em instalações prisionais, e também comecei a visitar várias prisões pelo país. Fui para a prisão de Cook County em Chicago, que é onde fica a maior instalação psiquiátrica do nosso país. Mesmo que não seja um hospital psiquiátrico, o presídio do condado de Cook tem mais pacientes psiquiátricos do que qualquer outra instalação nos EUA.

Passei muito tempo na Instituição Penitenciária do Norte (uma prisão estadual de segurança máxima em Connecticut) onde os homens são mantidos em confinamento solitário 23 horas por dia, com apenas uma hora por dia de recreação isolada. Visitei centros de detenção juvenil. 

Li muito apenas para tentar entender como chegamos a este lugar de encarcerar tantas pessoas com doença mental, e quais eram os efeitos, psicologicamente, para pessoas mentalmente doentes e mentalmente bem, uma vez que são colocadas neste tipo de ambientes.

Woman crying
Christine Montross verificou que muitas vezes os homens e mulheres que ela avaliava na prisão eram encarcerados por razões que tinham mais a ver com sua sintomatologia psiquiátrica do que com intenção criminosa.

Até que ponto o cárcere e a prisão podem iniciar ou intensificar doenças mentais? 

CM: A doença mental muitas vezes piora, e mesmo pessoas mentalmente sãs podem se desestabilizar ou desenvolver distúrbios mentais na prisão. E eu acho que a razão para isso é que nos EUA, nós realmente projetamos os cárceres e prisões como lugares de sofrimento. O sofrimento e a punição são realmente as prioridades em nosso sistema prisional.

Acabamos com muitos dos programas que fomentavam a ressocialização e as correções e agora a prisão se trata apenas de punição.

Quando as pessoas doentes mentais são colocadas nesses ambientes, elas realmente lutam para cumprir as exigências do sistema e acumulam infrações.Quando se pensa em encontros com a polícia ou em cárceres e prisões, há regras muito claras. O agente penitenciário diz algo, espera-se que o preso cumpra e se não cumprir, há consequências. E essas consequências são punições ainda maiores.

Quando alguém está ouvindo vozes ou vendo visões – ou se está extremamente paranoico ou tão profundamente deprimido que não pode se mover – é provável que não cumpra as exigências que os agentes penitenciários ou policiais fazem.

Então, há um desalinhamento fundamental entre nosso sistema de justiça e as doenças mentais, de forma que pessoas mentalmente doentes podem receber castigos cada vez mais severos simplesmente porque são incapazes de cumprir as exigências muito rigorosas destes ambientes.

Assim, quando essas pessoas recebem punições cada vez mais severas, muitas vezes isto leva à segregação administrativa, que é outro termo utilizado para confinamento solitário. E sabemos que o confinamento solitário é prejudicial e que desestabiliza até mesmo as pessoas mentalmente bem. É particularmente prejudicial para pessoas que são mentalmente doentes.

É essencial ter uma resposta médica em vez de uma policial quando uma emergência psiquiátrica acontece.

 JT:  Há passagens em seu livro que mencionam mulheres e detentos juvenis que a Sra. conheceu durante sua pesquisa.

Em que medida esses grupos específicos de presos são particularmente vulneráveis em termos de saúde mental? 

CM:  Eu não sei se as mulheres são mais vulneráveis do que os homens quando são encarceradas. 

O que eu sei é que os efeitos do encarceramento de mulheres são bastante profundos. A maioria substancial das mulheres encarceradas são mães de crianças menores, e muitas delas são mães solo.  Encarcerar uma mãe solo desencadeia uma série de consequências muito profundas, incluindo para a saúde mental e o desenvolvimento de seus filhos.

Quando encarceramos jovens e menores de idade, isso afeta seu desenvolvimento de forma clara. Uma das coisas que eu acho que tem sido interessante sobre este momento da pandemia  é que, coincidentemente, as pessoas ao redor do mundo estão falando sobre como estão preocupadas com a privação social que as crianças estão passando.

Entre essas preocupações estão o fato de não frequentarem a a escola todos os dias, não encontrarem seus grupos de amigos, não realizarem mais atividades extracurriculares, não terem interações sociais naturais… Reconhecemos isso como uma perda, como algo que é prejudicial para as crianças. 

No entanto, quando encarceramos crianças, essa privação é algo que fazemos intencionalmente.

"Waiting for an Echo" book
A imagem é de Lou Oates, cortesia da Getty Images, e a capa foi projetada por Stephanie Ross.

Em uma das instalações para detentos menores que visitei, um funcionário estava me levando para me mostrar as várias partes da prisão, e eu senti como se não estivéssemos realmente reconhecendo o propósito daquele centro, que era o da punição. 

Perguntei: “Qual é a pior punição que pode ser aplicada a um garoto daqui ?” Disseram que ele pode ser enviado para a solitária por até um ano. São garotos de 14 a 20 anos que podem ficar isolados na solitária por até um ano.

Qualquer pessoa que entende o neurodesenvolvimento crítico que acontece nos adolescentes – e, em seguida, a perda que ocorre quando as crianças são privadas das interações sociais normativas, de estímulos sensoriais, de aprendizagens, riscos e responsabilidades – sabe que se os adolescentes estão isolados por períodos prolongados, o cérebro pode deixar de se desenvolver de maneiras realmente importantes.

Quando eu estava visitando este centro de detenção juvenil, os meninos estavam em seus banheiros falando para o teto. Quando vi o primeiro, pensei que era um sinal de doença mental. Mas então, quando eu percorri aquela ala, notei mais de um garoto parado no banheiro falando para o teto. 

Perguntei ao agente penitenciário: “O que eles estão fazendo?” E ele disse: “É um problema real. Eles descobriram que podem conversar uns com os outros através das saídas de ar, e assim ficam em seus banheiros se chamando, tentando comunicar”.

Para mim, a ideia dessas são crianças tentando desesperadamente se conectar umas com as outras, foi o que inspirou o título do livro “Esperando um Eco” (traduzido livremente). 

Fiquei horrorizada com essa perspectiva de que, em nome da segurança e da justiça, o que estávamos realmente fazendo era decretar uma prática devastadora para essas crianças em termos de desenvolvimento.

 JT:  De acordo com a Crítica da Livraria Harvard, seu livro é “… um relato condenatório de políticas que criminalizaram a doença mental, deslocando um grande número de pessoas que pertencem a ambientes terapêuticos para os punitivos”. 

Que mudanças a Dra. acha que o sistema de justiça estadunidense – especialmente o sistema penitenciário – necessita para chegar a um ponto em que contribua para uma sociedade mentalmente mais saudável? 

CM:  Eu diria que várias coisas precisam mudar, mas algumas são centrais. Como o orçamento para saúde mental foi drasticamente reduzido nos EUA, o acesso das pessoas a um tratamento é realmente limitado. Isso significa que muitas vezes, quando os membros da família têm alguém que está em uma crise psicológica, não têm outra forma de conseguir-lhes tratamento além de chamar a polícia.

Quando pensamos na resposta a qualquer outra emergência de saúde em nosso país – se há acidente de carro, um ataque cardíaco ou um derrame, enviamos pessoas treinadas em emergências médicas para intervir, estabilizar a pessoa e depois levá-la a uma instalação médica para que receba o tratamento adequado.

No entanto, infelizmente, não é isso que acontece quando alguém está tendo uma emergência psiquiátrica. Nesses momentos a polícia é chamada e assim como os agentes penitenciários exigem obediência, a polícia também exige obediência. Quando as pessoas não cumprem ou não conseguem obedecer, esses encontros policiais podem escalar muito rapidamente e às vezes ao ponto de acontecer uma catástrofe.

Como vimos, tragicamente, em nosso país, pessoas com doenças mentais têm 16 vezes mais chances de serem mortas pela polícia do que pessoas sem doença mental. Portanto, é essencial ter uma resposta médica em vez de uma policial quando uma emergência psiquiátrica acontece.

Outra mudança necessária é o reconhecimento de que aqueles que nós elegemos como nossos legisladores estão direcionando escolhas políticas e, assim, uma das questões que pode ser central no meu livro é: “Quais são nossos objetivos quando encarceramos?”.

Neste país, dizemos que nossos objetivos são segurança e justiça. Mas nossas taxas de reincidência são muito ruins e nossas práticas penitenciárias draconianas prejudicam as pessoas encarceradas, as quais 95% retornarão às nossas comunidades. Então, na verdade, não estamos tornando nossas comunidades mais seguras, e não estamos agindo com justiça.

Há países, muitos na UE, que estão fazendo um trabalho muito melhor no que diz respeito às taxas de reincidência, a reintegração nas comunidades,  a uma abordagem mais ressocializadora. Esses países realmente tentam olhar para o que são as forças motrizes que fazem com que as pessoas cometam crimes e buscam usar o período em cárcere para mitigar essas questões.

Se nossos objetivos são realmente segurança e justiça, então precisamos reconhecer que nossas práticas atuais são contrárias a esses objetivos. Precisamos mudar nossos caminhos.

Em um instituto socieducativo visitado pela Dr. Montross, meninos de 14 a 20 anos podem ficar isolados na solitária por até um ano. Esses períodos prolongados de isolamento podem ser críticos para o desenvolvimento cerebral desses adolescentes.

Ao escrever “Esperando um Eco”, visitei prisões na Suécia e na Noruega. Uma das principais diferenças que vi foi a ideia de uma avaliação de necessidades.

Quando alguém ingressa no sistema penitenciário, há realmente uma ênfase em procurar prestar os serviços necessários durante o período de encarceramento, incluindo tratamento de saúde mental, formação profissional, educação, educação financeira ou cuidados de saúde.

A necessidade dessas intervenções é avaliada e, em seguida, os serviços adequados são adaptados aos presos ao longo de suas sentenças de modo que, quando saírem da prisão, estejam em melhores condições de para contribuir como  membros da comunidade.

Para implementar esse tipo de abordagem, um diretor de uma unidade prisional da Noruega me disse que o país tinha que adotar uma abordagem mais flexível e compassiva. O que ele queria dizer com isso era, entre outras coisas, que o papel do agente penitenciário seria redefinido para ser menos contraditório e mais parecido com o de um assistente social: ter uma conexão humana com os detentos, falar com eles sobre as circunstâncias que levaram ao seu encarceramento e quais são seus planos daqui para frente e realmente ajudá-los enquanto estiverem presos.

Isso é totalmente o oposto da relação entre guardas e presos nos EUA. A abordagem norueguesa é um modelo muito mais colaborativo e produz resultados que podem ser mensurados de uma maneira muito melhor. Acho que é um modelo que deveria ser extremamente atrativo para nós.

Um ponto de esperança é que existem diferentes grupos de interesses que reconhecem que a doença mental nos cárceres e prisões é um problema. Além disso, os agentes penitenciários não são treinados para lidar com pessoas que têm sintomas psiquiátricos graves, então eles e os diretores realmente gostariam de ver uma mudança feita para que pessoas mentalmente doentes não terminem em nossas penitenciárias em um número tão substancial.

E mesmo nos Estados Unidos, em um momento em que há quase nenhum acordo bipartidário em nossa política, a reforma da justiça criminal é uma área com algum consenso entre os partidos. Tanto grupos ideológicos conservadores quanto liberais concordam que o modelo atual do sistema penitenciário já se esgotou e isso me dá muita esperança de que a mudança seja possível.

Christine Montross

Médica psiquiatra, Autora de “Waiting for an Echo – The Madness of American Incarceration”, EUA

Christine Montross é professora associada de psiquiatria e comportamento humano na Universidade Brown, psiquiatra de tratamento hospitalar e realiza exames psiquiátricos forenses. Concluiu o curso de medicina e realizou a residência na Universidade Brown. Além disso, completou uma graduação e um mestrado em Belas Artes em poesia pela Universidade de Michigan. “Waiting for an Echo – The Madness of American Incarceration” é seu terceiro livro, o qual foi nomeado finalista do Los Angeles Times Book Prize, Um Livro para Estar Atento (“New York Times”), Um Livro para Ler em Julho de 2020 (“Time Magazine”) e um dos Melhores Livros do Mês da Amazon.

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