Ressocialização de infratores extremistas: abordagens inovadoras, múltiplas e sobrepostas como o caminho para o sucesso

Artigo

Pedro Liberado & Vânia Sampaio

De acordo com a EUROPOL (2021), em 2020 foram relatados 119 ataques terroristas concluídos, fracassados e frustrados na União Europeia (UE) e no Reino Unido, o que resultou na morte de 25 pessoas.    

Além disso, 634 pessoas foram presas sob suspeita de crimes relacionados ao terrorismo (EUROPOL, 2021), terminando o ano com um total de 507 condenações e absolvições por crimes terroristas (EUROPOL, 2021; Home Office, 2021).   

Como alguns desses infratores já haviam sido previamente condenados por terrorismo ou outros crimes (EUROPOL, 2021), destaca-se a necessidade de esforços abrangentes de desengajamento e reintegração, após um processo minucioso de avaliação de riscos. Essa preocupação já foi enfatizada em um relatório anterior; A EUROPOL (2020, p. 13) alertou sobre a grave ameaça à segurança representada por “indivíduos propensos a atividades criminosas, incluindo aqueles atualmente presos, que se radicalizam pela violência e se envolvem em terrorismo”.  

Figura | Imagem 1. Número de ataques terroristas (preto) e prisões (azul) na União Europeia em 2020 | EUROPOL, 2021)

Somando-se a este desafio crescente está a preocupação de que vários criminosos extremistas violentos e terroristas (VETOs – pela sigla em inglês Violent Extremist and Terrorist Offenders) estão saindo da prisão ou serão libertados em breve (EUROPOL, 2020). Esse fato ganha especial atenção considerando que, somente em 2020, a Europa sofreu vários ataques 1 realizados por indivíduos recém libertos (EUROPOL, 2021).

Utilização de instrumentos de avaliação de risco específicos  

Sem surpresa, a avaliação de risco dos VETOs dentro das configurações penitenciárias emergiu como uma questão particularmente crítica dentro da luta antiterrorismo (Silke, 2014), especialmente na UE (Fernandez & Lasala, 2021).   

Embora vários instrumentos de avaliação de risco tenham sido desenvolvidos nos últimos anos (Rede de Conscientização da Radicalização [RAN], 2019), há uma clara tendência de abordar alguns conceitos em seu sentido mais amplo, incluindo ‘ideologia’, ‘radicalização’, ‘extremismo’ e ‘terrorismo’. Na maioria dos instrumentos, a discussão de processos e caminhos para a radicalização se concentra na mesma dinâmica e fatores de risco, independentemente da ideologia (Khalil, Horgan, & Zeuthen, 2019; McCauley & Moskalenko, 2017).    

No entanto, a RAN (Ranstorp, 2019;  Sterkenberg, 2019) mostra que o extremismo islâmico e de extrema-direita são marcados por diferentes narrativas, ideologias, símbolos, vocabulário e lugares de recrutamento. 

Portanto, embora vários fatores de impulso/atração (incluindo elementos protetores) sejam, em um quadro mais amplo, transversalmente concomitantes a várias ideologias radicais/extremistas, estes devem ser explorados (e adaptados) com maior detalhe. Isso significaria uma crescente conformidade com características inerentes a cada tipo de extremismo (por exemplo, Hardy, 2018;  Klausen et al. 2020;  Skleparis & Knudsen, 2020) e tendo em conta variações de risco devido à dimensão de gênero (por exemplo, Brown, 2019; Jacobsen, 2017; Pearson & Winterbotham, 2018). 

Em particular, os três instrumentos de avaliação de risco (ou seja, VERA 2R, ERG 22+, RRAP Toolset) analisados em profundidade pela RAN (Cornwall & Molenkamp, 2018) careciam de dimensões/indicadores únicos relacionados à ideologia e gênero.  

Além disso, os instrumentos de avaliação de risco de radicalização tendem a focar-se apenas na avaliação dos VETOs, negligenciando, portanto, os infratores que podem estar vulneráveis ou em risco de um incremento cognitivo de um ponto de vista radical. 

Assim, para ampliar o escopo de avaliação na esfera de prevenção, os procedimentos também devem abranger a identificação  de fatores de risco de radicalização (a e vulnerabilidade a eles) dentro da população geral de infratores (como o Exame de Radicalização Individual da Receita Federal, que faz parte do já mencionado Conjunto de Ferramentas RRAP). 

Abordagem de treinamento imersivo de método misto e intersetorial  

O uso da tecnologia de realidade virtual (VR) no sistema de justiça criminal (CJS) vem reunindo apoio crescente, particularmente na avaliação de riscos. Cornet e Van Gelder (2020) afirmam que a VR pode ajudar a melhorar a validade preditiva dos instrumentos de avaliação de risco, oferecendo, em primeiro lugar, a possibilidade de observar o comportamento em ambientes simulados. Isso é crucial, como afirma de-Juan-Ripoll et al. (2018), porque a experiência em primeira pessoa leva a um comportamento mais realista.  

Em segundo lugar, pode expor os infratores a situações que provocam um comportamento sem arriscar a segurança dos outros (Cornet & Van Gelder, 2020). Essa tecnologia permite cenários da vida real, em que quem atua na linha de frente e a equipe técnica enfrentam diretamente situações que exigem a tomada de decisões. Os benefícios incluem melhores resultados de aprendizagem e melhor avaliação do comportamento dos envolvidos. . 

Dado que o processo de avaliação requer a coleta de dados, ou seja, é realizada por meio de entrevistas com detentos e profissionais, é essencial que os funcionários adquiram competências que promovam o uso de instrumentos desenvolvidos para que sejam eficazes. Assim, as técnicas de aprendizagem baseadas em VR, juntamente com o treinamento de e-Learning, seriam uma forma inovadora de formar diferentes profissionais na área de avaliação de riscos. Em última análise, essa abordagem de treinamento contribuirá para a ressocialização bem-sucedida dos VETOs. 

A importância crítica de avaliar e selecionar atores não institucionais  

É inimaginável promover com sucesso um programa de reintegração sem o apoio da sociedade civil, uma vez que seu papel crítico é amplamente reconhecido.    

Ao analisar o trabalho dos voluntários na prisão, a pesquisa (Matt, 2015) enfatiza a proximidade da relação voluntário-detento dentro do CJS (cujo objetivo final é promover a ressocialização bem-sucedida dos infratores). No entanto, a colaboração dos atores externos com o CJS deve ser cuidadosamente regulada, pois leva ao “voluntariado na justiça criminal ser cada vez mais construído como um perigo que precisa ser cuidadosamente gerenciado com regulações de avaliação de riscos e proteções”(Corcoran & Grotz 2015, p. 95). 

Embora tais atores não institucionais tenham recebido formação, não houve interesse particular em entender como eles são selecionados e avaliados, nem na definição de critérios para esse processo. Embora a “base da boa prática seja um processo de seleção multimétodo ” (Aproxima, 2016, p. 21), as organizações não prestam a devida atenção à seleção de voluntários, tendo um procedimento relativamente simples e insuficiente (Aproxima, 2016).  Considerando que o voluntariado se tornou um pilar do trabalho do CJS, o exercício de triagem é de extrema importância devido ao papel fundamental desses atores nos processos de desengajamento e desradicalização.  

Além disso, quanto ao processo de veto de voluntários em contato com o CJS (ilustrado na Figura 2)  mais particularmente infratores e ex-infratores, entende-se que: 38% dos entrevistados relataram verificar a familiaridade do voluntário com a área; 37% afirmaram realizar uma verificação formal de antecedentes criminais; 16% relataram verificar se a qualificação era adequada; 9% relataram verificar se os voluntários tinham alguma experiência profissional; e 5% relataram não ter um sistema de veto (Matt, 2015). . 

Assim, é necessário estabelecer um processo seletivo abrangente de atores não institucionais, envolvendo triagem minuciosa e critérios de veto na avaliação para recrutamento e seleção final (para trabalhar em estreita conexão com o CJS). Essa necessidade assume ainda mais importância ao lidar com detentos que são/foram radicalizados ou são vulneráveis/em risco de radicalização (por exemplo, funcionários de ONGs que trabalham em iniciativas e programas de desengajamento ou desradicalização). O critério deve ser homogêneo entre países e programas para estabelecer um quadro coerente e rigoroso.  

figura | imagem 2 - Comparação das práticas de vetação voluntária por setor e país (Matt, 2015)

A importância da colaboração entre as partes interessadas

Embora tenha sido reconhecida a relevância do trabalho de múltiplas organizações em iniciativas de prevenção e combate ao extremismo violento, também se admitiu que essa relevância é reconhecida como “menos estabelecida” quando se lida com outros crimes violentos (Sarma, 2019, p. 3).  

De fato, a RAN (2019) identificou barreiras ao compartilhamento de informações entre agências, ou seja, questões de confidencialidade e culturas de sigilo. Tais obstáculos representam desafios significativos para o trabalho entre múltiplas organizações no campo do trabalho de saída (ou seja, do trabalho focado na desradicalização ou desengajamento). No entanto, essa colaboração é crucial e deve incluir várias organizações, como agências de aplicação da lei, serviços prisionais e de liberdade condicional, serviços sociais e de saúde, jovens trabalhadores e outros grupos da sociedade civil.    

Parceiros não institucionais, como agências não governamentais, são fundamentais para garantir o constante fluxo de saída da prisão como profissionais chave do trabalho de saída. Seus papéis podem passar da avaliação das necessidades dos infratores radicalizados e daqueles vulneráveis à radicalização, para apoiar sua reintegração à sociedade (Walkenshorst et al., 2019). 

MIRAD: Uma nova (e inovadora) iniciativa europeia baseada em melhores práticas 

Nesse contexto, a Comissão Europeia, por meio de seu diretor geral para Migração e Assuntos Internos (Fundo de Segurança Interna – Polícia), financiou o projeto MIRAD.  

A MIRAD, cuja sigla corresponde a “Multi-Ideological Radicalisation Assessment towards Disengagement” (Avaliação de Radicalização Multi-ideológica para o Desengajamento), visa alcançar amplaimplementação de ferramentas de avaliação de riscos, baseando-se na ferramenta IRS – Individual Radicalisation Screening (Triagem de Radicalização Individual)  

Consequentemente, a MIRAD pretende aumentar a proficiência na aplicação e gestão de ferramentas específicas e sob medida de avaliação de risco de radicalização, de acordo com a ideologia em questão, entre agentes penitenciários, de liberdade condicional e ONGs que trabalham em estreita colaboração com os serviços prisionais e de liberdade condicional.  

Levando em consideração as preocupações com a confiabilidade e credibilidade das ONGs (trabalhando em estreita colaboração com o CJS), a MIRAD também se esforça para ampliar a colaboração no campo do desengajamento entre órgãos governamentais e organizações não institucionais por meio de avaliações de capacidade e adequação deste último.   

A MIRAD promoverá, portanto, a implementação da Diretiva 2016/680 da UE (e além), recebendo, assim, maior atenção dos principais tomadores de decisão setoriais sobre as relações de cooperação entre as administrações prisionais e de liberdade condicional, os profissionais judiciais e as ONGs.  

Em suma, a MIRAD pretende influenciar de forma sustentável não apenas o debate intelectual e político, mas também a aplicação prática de ferramentas de avaliação de risco de radicalização nos ambientes prisionais e de liberdade condicional, com o apoio de ONGs envolvidas no âmbito do CJS.  

A parceria do projeto MIRAD une organizações públicas e privadas que foram selecionadas por causa de sua expertise nas áreas de Justiça, pesquisa criminológica e contra-terrorismo, educação e formação. Compreende instituições de pesquisa, ONGs, empresas privadas e associações setoriais. Há sete Estados-Membros da UE no consórcio de projetos MIRAD que representam geograficamente a Europa: no ocidente (França2Bélgica3), na área central ((Polônia4), ao sul  (Portugal5, Espanha6, Grécia7), Oriental  (Bulgária8) Europe.

 

1Dresden, Germany; Reading, UK; London, UK; Liège, Belgium; Vienna, Austria.

Conservatoire National des Arts et Métiers

3 Les Militants des Savoirs

4 Associação Internacional de Psicologia Correcional e Forense – IACFP Europa

5 Plataforma Polonesa para Segurança Interna

6 IPS_Innovative Prison Systems

7 Fundação Fundea Euro-Árabe para Estudos Superiores

8 KMOP Social Ação e Inovação Centro

9 Centre for the Study of Democracy

Referências

Aproximar. (2016). Good Practice Guide: Recruitment, training and support of volunteers working in the Criminal Justice Systems. JIVE Project.  

Brown, K. (2019). Gender, governance, and countering violent extremism (CVE) in the UK. International Journal of Law, Crime and Justice

Corcoran, M., & Grotz, J. (2015). Deconstructing the panacea of volunteering in criminal justice. In A. Hucklesby & M. Corcoran (Eds.), Voluntary sector and criminal justice (pp. 93-116). Basingstoke: Palgrave Macmillan. 

Cornet, L., & Van Gelder, J. (2020). Virtual reality: a use case for criminal justice practice. Psychology, Crime & Law, 26(7), 631-647

Cornwall, S., & Molenkamp, M. (2018). Developing, implementing and using risk assessment for violent extremist and terrorist offenders (RAN EX POST PAPER).

de-Juan-Ripoll, C., Soler-Domínguez, J., Guixeres, J., Contero, M., Álvarez Gutiérrez, N., & Alcañiz, M. (2018). Virtual reality as a new approach for risk taking assessment. Frontiers in psychology, 9.

EUROPOL (2020). European Union Terrorism Situation and Trend report. Publications Office of the European Union, Luxembourg. 

EUROPOL (2021). European Union Terrorism Situation and Trend report. Publications Office of the European Union, Luxembourg. 

Fernandez, C, & de Lasala, F. (2021). Risk assessment in prison. Radicalisation Awareness Network (RAN).

Hardy, K. (2018). Comparing theories of radicalisation with countering violent extremism policy. Journal for Deradicalization, (15), 76-110. 

Home Office (2021, March). Operation of police powers under the Terrorism Act 2000 and subsequent legislation: Arrests, outcomes, and stop and search Great Britain, year ending December 2020. GOV.UK.

Jacobsen, A. (2017). Pushes and pulls of radicalisation into violent Islamist extremism and prevention measures targeting these: Comparing men and women. [Master’s thesis, University of Malmö]. 

Khalil, J., Horgan, J., & Zeuthen, M. (2019). The Attitudes-Behaviors Corrective (ABC) model of violent extremism. Terrorism and Political Violence.

Klausen, J., Libretti, R., Hung, B. W., & Jayasumana, A. P. (2020). Radicalization trajectories: An evidence-based computational approach to dynamic risk assessment of “homegrown” Jihadists. Studies in Conflict & Terrorism, 43(7), 588-615. 

Matt, E. (2015). The role and value of volunteers in the Criminal Justice System. A European study. JIVE Project.

McCauley, C., & Moskalenko, S. (2017). Understanding political radicalization: The two-pyramids model. American Psychologist, 72(3), 205–216.  

Pearson, E., & Winterbotham, E. (2017). Women, gender and daesh radicalisation: A milieu approach. The RUSI Journal, 162(3), 60-72. 

Radicalisation Awareness Network (2019). Preventing Radicalisation to Terrorism and Violent Extremism: Approaches and Practices (RAN Collection).

Ranstorp, M. (2019). Islamist extremism. A Practical Introduction (RAN FACTBOOK).  

Sarma, K. M. (2019). Multi-Agency Working and preventing violent extremism: Paper 2 (Position Paper from RAN H&SC). 

Silke, A. (2014). Risk assessment of terrorist and extremist prisoners. In A. Silke (Ed.), Prisons, Terrorism and Extremism: Critical Issues in Management, Radicalisation and Reform (pp. 108–121). Routledge. 

Skleparis, D., & Augestad Knudsen, R. (2020). Localising ‘radicalisation’: Risk assessment practices in Greece and the United Kingdom. The British Journal of Politics and International Relations, 22(2), 309-327. 

Sterkenburg, N. (2019). Far-right extremism. A Practical Introduction (RAN FACTBOOK).

Walkenhorst, D., Baaken, T., Ruf, M., Leaman, M., Handle, J., & Korn, J. (2019). Rehabilitation Manual. Rehabilitation of radicalised and terrorist offenders for first‑line practitioners (RAN MANUAL). 

Pedro Liberado

Pedro Liberado ingressou na IPS_Innovative Prison Systems em 2018. Nesse mesmo ano, passaria a coordenar a equipe de Radicalização, Extremismo Violento e Crime Organizado. Ele foi nomeado como Chief Research Officer dois anos depois. Para além dessas responsabilidades, é acionista e membro do Conselho de Administração desde 1 de janeiro de 2022. Pedro Liberado é licenciado em Sociologia pela Universidade de Coimbra e mestre em Criminologia pela Universidade do Porto. Atualmente é doutorando em Criminologia na Universidade de Granada. 

Vânia Sampaio

Vânia Sampaio é consultora e investigadora da IPS desde setembro de 2020. Tem trabalhado em vários projetos do portefólio de Radicalização, Extremismo Violento e Crime Organizado. É licenciada em Criminologia pela Universidade do Porto e mestre em Terrorismo, Crime Internacional e Segurança Global pela Coventry University, Reino Unido. É membro da Plataforma RAN YOUNG, formadora certificada, e concluiu o programa de formação Scholarship for Peace and Security (OSCE) 2021.

 

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