Nicole Belloubet Minister France

A ambiciosa reforma da justiça na França

// Entrevista: Nicole Belloubet 

Ministra da Justiça, França

 

JA Lei de Programação e Reforma da Justiça de 2018-2022 consiste em um volumoso documento de 109 artigos que abrangem muitos aspectos, mas seria possível indicar os pontos  mais fundamentais que marcam um ponto de virada decisivo para a justiça francesa com esta mudança legislativa? 

NB: Esta lei aborda todos os desafios da justiça de uma forma pragmática e assegura os meios à disposição da justiça para aproximá-la do litigante. É, portanto, difícil identificar uma medida emblemática que incorpore a própria essência da reforma empreendida.

Ainda assim,  gostaria de citar algumas dessas medidas. Em assuntos civis, simplificaremos o procedimento para divórcios conflitantes e facilitaremos as restrições às pessoas sob tutela.

Em matéria criminal, simplificações também serão feitas em benefício dos serviços de investigação. Vamos criar um procedimento fixo para combater de forma mais eficaz o uso de drogas. Também vamos realizar experiências com tribunais criminais para acelerar o julgamento de certos crimes, como estupro.

A política de sentenças foi profundamente renovada para torná-la mais legível e mais eficaz na luta contra a reincidência. Vamos suprimir sentenças de menos de um mês e promover sanções mais adequadas do que a prisão, como monitoramento eletrônico, para penas curtas. Ao mesmo tempo, permitiremos que as detenções sejam executadas de forma eficaz, quando for o caso, em estabelecimentos especificamente adaptados.

A lei também prevê uma transformação digital da justiça. Até 2022, todos os processos civis e criminais estarão totalmente informatizados. No entanto, quero garantir que todos os litigantes tenham acesso à justiça. Nossos concidadãos que não estão acostumados a usar meios digitais ainda poderão continuar a fazer encaminhamentos por “meios de papel”. Eles também poderão ir aos serviços exclusivos de acolhimento para litigantes (SAUJ, de acordo com sua sigla francesa) dentro do tribunal judicial de sua jurisdição ou em qualquer lugar do território, para que possam ser acompanhados durante todo o processo. Quando se trata de preservar o bom funcionamento de todos os estabelecimentos do sistema de justiça , escolhi aproximar a justiça daqueles que entram em contato com o sistema.

 

 

E mais especificamente no campo da justiça criminal, incluindo contextos de prisão e reintegração social, bem como medidas e sanções comunitárias, que mudanças a reforma trará? Essa reforma planeja eliminar o problema da superlotação das prisões?

NB: Como todos os nossos concidadãos, notei a tripla falha do atual sistema de sanções criminais. É difícil mensurar, devido à frequente discrepância entre a sentença imposta e que foi realmente cumprida. Como resultado, não é compreendido pelo agressor, pelas vítimas e pela sociedade como um todo. Essa perda de credibilidade prejudica muito sua eficácia. Esse sistema também dá muita importância ao encarceramento para sentenças curtas, o que simplesmente não é eficaz. O resultado é uma superlotação prisional “endêmica” que nos levou ao aumento de 48.000 pessoas detidas no início dos anos 2000 para mais de 70.000 atualmente.

Por fim , nosso sistema não é eficaz contra a reincidência, que afeta 41% dos autores tanto de crimes como de delitos e até 63%  dos detidos que saem da prisão sem um ajuste da pena. Esta observação, portanto, me levou a propor uma revisão global da política de sentença.

Pretendo afastar-me do encarceramento sistêmico, pois, em muitos casos, a prisão não é a sentença mais adequada para a natureza e gravidade dos fatos, para os autores do delito e para a situação em que se encontram. Penas de prisão muito curtas, de menos de um mês, são proibidas e estamos desenvolvendo sentenças autônomas, como prisão domiciliar sob monitoramento eletrônico, serviço comunitário ou liberdade condicional, que leva em conta as consequências da falha da coerção criminal e facilita o uso de uma sentença de liberdade condicional.

Esta poderosa reforma, que entra em vigor gradualmente até março de 2020, inclui um programa de infraestrutura que nos permitirá construir 15.000 espaços (vagas) adicionais, dos quais 7.000 serão entregues até 2022.

Além do aumento do número de espaços, que contribuirão, com a reforma da sentença, para combater a superlotação prisional, estamos implementando uma diversificação do estoque habitacional, criando estabelecimentos como o SAS (acrônimo francês para estrutura de apoio à libertação) a fim de incentivar a individualização no cumprimento da pena e o cuidado adaptado, levando em conta a periculosidade dos detentos e sua evolução.

Essas profundas mudanças no sistema de sanções e nas ferramentas para sua implementação são essenciais para combater melhor a reincidência.

A política de sentença foi profundamente renovada para torná-la mais legível e mais eficaz na luta contra a reincidência.

JT: Algumas das medidas deste projeto de lei foram parcialmente censuradas pelo Conselho Constitucional, principalmente aquelas que dizem respeito a dispositivos do Código de Processo Penal que fortalecem os poderes do Ministério Público. Assim, foram censuradas as disposições que possibilitaram a extensão das técnicas especiais (sistema de som de um local, registro de dados de imagem ou computador) a todos os crimes, no âmbito de uma investigação em “flagrante delito” ou de uma investigação preliminar. Além disso, também foi rejeitado o uso de videoconferência em audiências para prorrogação da prisão preventiva (Fonte: Le Monde, “La réforme de la justice partiellement censurée par le Conseil constitutionnel” (A Reforma da Justiça Parcialmente Censurada pelo Conselho Constitucional), Jean-Baptiste Jacquin, 21 de março de 2019). 

Na sua opinião, o que essas censuras significam e até que ponto elas dificultam os objetivos do seu Ministério para a reforma da justiça?

NB: O Conselho Constitucional aprovou a maioria dos dispositivos que melhorarão o trabalho de investigadores e magistrados no Ministério Público. Assim, validou a extensão de investigações  sob pseudônimos (sigilosas) para combater o crime cibernético e a extensão da multa fixa ao uso de drogas. Também validou a criação de um ministério público antiterrorista nacional e a experimentação com novos tribunais criminais.

 

 

Inauguração da prisão de Paris la Santé, após quatro anos de obras de reforma (abril de 2019) © Ministério da Justiça francês

 

Tomei conhecimento da decisão do Conselho Constitucional de manter um regime mais controlado e, portanto, mais complexo para escutas telefônicas nas investigações. Notei também que o Conselho decidiu não permitir o uso de videoconferência para audiências para prorrogar a prisão preventiva, procedimento que havia validado para audiências de apelação de estrangeiros detidos em centros de detenção administrativa apenas alguns meses atrás.

Eu era membra do Conselho Constitucional. Sei da dificuldade do trabalho ali realizado, da ferocidade em busca por um equilíbrio constante entre a garantia de liberdades fundamentais e a possibilidade de ação pública em benefício da comunidade. Tenho o maior respeito por essa instituição única, que garante nosso Estado de Direito.

A lei também prevê uma transformação digital da justiça. Até 2022, todos os processos civis e criminais estarão totalmente informatizados.

JT: O Decreto 2019-98 de 13 de fevereiro de 2019, que altera as disposições do Código de Processo Penal relativo ao regime disciplinar para os detentos, introduz novas sanções disciplinares, incluindo a extensão das possibilidades de recorrer à segregação disciplinar. (Fonte https://www.legifrance.gouv.fr)

Qual é a razão dessa mudança e até que ponto ela não será contraproducente?

NB: O decreto de fevereiro de 2019 foi emitido de acordo com o plano de combate à violência na detenção, tanto contra os agentes penitenciários quanto entre os detentos.

O sistema de sanções disciplinares para atos cometidos na detenção não foi mais adaptado à evolução dos delitos praticados atualmente e exigiu esclarecimentos.

Aumentamos a gravidade de certos delitos, como insultos ou ameaças contra agentes penitenciários.

Também criamos novas medidas disciplinares para lidar com infrações graves, como a recusa violenta em obedecer ou a incitação a cometer atos de terrorismo. Também proporcionamos aos comitês disciplinares os meios para se adaptar, criando, por exemplo, o serviço comunitário.

O objetivo não é estender a uso de unidades disciplinares, mas garantir uma resposta adequada a má conduta, dependendo de sua natureza e seriedade, a fim de proteger melhor os agentes penitenciários e detentos.

 

 

Apresentação da programação imobiliária judicial, e a primeira tradução da Lei de Programação e Reforma da Justiça 2018-2022 (fevereiro de 2019) © Ministério da Justiça francês

Qual é o papel da implementação de novas tecnologias e da modernização digital nesta reforma do sistema de justiça?  

NB: Assim que os projetos de justiça foram implementados, em outubro de 2017, queria que fosse realizada uma discussão sobre digitalização e o impacto das novas tecnologias. A justiça não pode permanecer fora do mundo e sua evolução. A tecnologia digital está ganhando cada vez mais importância em todos os lugares. Vejo isso como uma tremenda oportunidade, reduzindo as distâncias, e às vezes o tempo, a fim de aproximar a justiça do litigante desde que essa evolução seja bem pensada e sua implementação organizada. Por isso, desenvolvi um plano de transformação digital baseado em três eixos.

O primeiro eixo consiste na atualização das ferramentas disponibilizadas aos magistrados e agentes, tanto em termos de equipamentos de rede quanto de materiais. É uma condição para tornar a comunicação com os parceiros da justiça mais fluída, que são, em primeiro lugar, advogados, tabeliões e oficiais de justiça.

O segundo eixo é o desenvolvimento de novos aplicativos que facilitem o acesso à justiça e o trabalho de funcionários do departamento, como serviços investigativos. Esses aplicativos são agora projetados colocando o litigante no centro do sistema. Há alguns meses, os cidadãos puderam receber o extrato de seus antecedentes criminais em seu smartphone. Nas próximas semanas, o portal permitirá que nossos concidadãos acompanhem seus procedimentos on-line. Em 2020, serão possíveis encaminhamentos judiciais online. Em 2022, teremos processos civis e criminais totalmente digitalizados.

O terceiro eixo consiste em apoiar tanto profissionais da justiça quanto litigantes. Para este último, como mencionei anteriormente, os serviços de recepção os ajudarão em seus esforços e para aqueles que não estão confortáveis com a tecnologia digital, mas desejam usá-la, tais serviços os ajudarão nas várias etapas de seu caso.

Até o final do mandato, teremos dedicado mais de meio bilhão de euros ao sucesso desta transformação digital.

Pretendo me afastar do encarceramento sistêmico (...) Penas de prisão muito curtas de menos de um mês são proibidas e estamos desenvolvendo sentenças autônomas (...)

JT: O presidente E. Macron se comprometeu pessoalmente com o aspecto da reforma relativa ao significado das sentenças, buscando mudar a cultura que tornou a prisão a referência em termos de sanções penais.


Na prática, qual é a sua estratégia para implementar essa mudança, já que as mudanças nessa área são mais difíceis de acontecer, especialmente se não há o apoio de advogados e organizações de juízes?

 NB: Você está certo, implementar uma nova política de sentenças requer a mobilização de todos os atores-chave. Juízes e advogados ocupam um lugar de destaque nisso. Embora eles não sejam os únicos. Funcionários da secretaria, da administração penitenciária e todos os parceiros da justiça contribuem ativamente para isso.

A reforma das sentenças que realizei, a pedido do Presidente da República, é de fato ambiciosa. Pretende, mais uma vez, afastar-se do encarceramento sistêmico e combater melhor a reincidência. Seu sucesso requer um bom entendimento por parte de todos os principais atores mencionados anteriormente. Acompanharemos a lei com documentos práticos para permitir que os profissionais jurídicos a compreendam adequadamente.

Também mobilizaremos nossos serviços penitenciários, de reintegração e de liberdade condicional (SPIP em francês), que estão sendo reforçados. Eles devem, em conjunto com as associações que trabalham para os tribunais, garantir que os juízes tenham todas as informações necessárias para dar sentenças adequadas, como o monitoramento eletrônico. Até 2022, teremos recrutado mais 1.500 funcionários nos serviços de reintegração e liberdade condicional para atingir esse objetivo.

 

 

Ministra Nicole Belloubet visitando o Serviço de Liberdade Condicional e Reintegração de Villejuif. 
© Ministério  da Justiça francês

 

Quais são as medidas prioritárias para enfrentar o crescente problema da radicalização violenta, do extremismo e do crime organizado nas prisões? E quais medidas foram tomadas nas prisões francesas para implantar serviços de inteligência prisional?

NB: Para enfrentar a radicalização islâmica, desenvolvemos competências para avaliar presos em unidades especializadas. As pessoas suscetíveis à radicalização passam de 12 a 16 semanas lá. Como resultado, os detentos mais perigosos são colocados em confinamento solitário. Detentos adeptos do terrorismo são colocados em estruturas estanques. Estamos desenvolvendo programas para promover o desengajamento da radicalização violenta.

Também desenvolvemos a inteligência prisional, que foi reforçada pela Lei de Programação e Reforma da Justiça. Seu quadro de funcionários, que ultrapassa 300, será aumentado em cerca de 100 agentes até o final de 2020.

 

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Nicole Belloubet foi nomeada Ministra da Justiça da França em junho de 2017. Possui pós-graduação em Direito Público, Diploma de Estudos Avançados em História Jurídica e doutorado em Direito Público. Durante cinco anos, entre 2000 e 2005, foi Presidente do Comitê Interministerial de Promoção da Igualdade de Gênero na Educação. Foi Membro do Conselho Constitucional de 2013 a 2017. Em termos de mandatos eleitorais, foi vereadora de Saint-Rémy-lès-Chevreuse (1989-1996), primeira Vice-Prefeita de Toulouse (2008-2010), Conselheira Regional de Midi-Pyrènèes, e foi primeira Vice-Presidente responsável pela Educação, Ensino Superior e Pesquisa.

 

 


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