// Entrevista: Edgar Taborda Lopes
Juiz de Direito e Coordenador do Departamento de Formação do Centro de Estudos Judiciários, Portugal
Sobre o Centro de Estudos Judiciários (CEJ)
O Centro de Estudos Judiciários (CEJ) tem como principal objetivo a formação de magistrados. Assim, compete-lhe assegurar a formação inicial e contínua de magistrados e de funcionários do Ministério Público para os tribunais judiciais e para os tribunais administrativos e fiscais.
Em matéria de formação de magistrados ou de candidatos à magistratura de países estrangeiros, compete ao CEJ assegurar a execução de atividades formativas no âmbito de redes ou de outras organizações internacionais de formação de que faz parte, além de protocolos de cooperação estabelecidos com entidades congêneres estrangeiras, em especial, de países de língua portuguesa.
Compete, ainda ao CEJ, assegurar a execução de projetos internacionais de assistência e cooperação na formação de magistrados e acordos de cooperação técnica em matéria judiciária, celebrados pelo Estado Português.
A instituição desenvolve, igualmente, atividades de investigação e de estudo no âmbito judiciário e assegura ações de formação, jurídica e judiciária, dirigidas a advogados, solicitadores e agentes de outros setores profissionais da justiça.
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A atividade do CEJ no domínio da formação profissional de magistrados iniciou-se em 1980, após a entidade ter sido definida como estabelecimento dotado de personalidade jurídica, na dependência do Ministro da Justiça, destinado à formação profissional de magistrados judiciais e do Ministério Público e, complementarmente, a desenvolver ações formativas para advogados, candidatos à advocacia e a solicitadores, bem como a ministrar cursos de aperfeiçoamento para funcionários de justiça.
Em que consiste o papel do CEJ na formação de magistrados?
EL: O Centro de Estudos Judiciários (CEJ) é a instituição que, em Portugal, foi criada em 1979 para tratar da seleção e da formação inicial de juízes e magistrados o Ministério Público, e da formação contínua dos magistrados já em exercício de funções. Portanto, são dois parâmetros de atuação do CEJ.
JT: Desde a elaboração do curso de formação no CEJ, já se realizaram mais de 20 Cursos de Formação de Magistrados para os Tribunais Judiciais.
Como comenta a evolução que tem existido no modo de formação de magistrados e do próprio programa?
EL: A formação inicial é dividida em três anos – um ano no centro de formação, o próximo no tribunal, e outro ano ainda no mesmo tribunal, mas já em exercício de funções, em estágio. Partindo desta base comum, é evidente que a própria evolução dos meios disponíveis, da situação social e cultural do país vai obrigando uma atualização naquilo que se faz, mas a estrutura-base ao nível da formação inicial é idêntica.
Ao nível da formação contínua, a evolução foi muito maior, porque o início da utilização de meios informáticos, de meios à distância, de videotransmissões, levou a que a formação contínua dos magistrados fosse sofrendo mais adaptações, com mais proximidade e alcançando muito mais magistrados.
Na última década, conseguimos passar na casa de 3.000 formandos por ano, para 9.000 formandos por ano, muito por conta da utilização de videoconferências e de teleconferências, e depois tivemos a necessidade de moderarmos – para permitir mais eficácia – esta utilização, tornando-a mais ponderada e adequada a cada tipo de público a que nos dirigimos. Tentamos equilibrar estas transmissões à distância com as formações presenciais.
JT:É notório que os tribunais em Portugal carecem de quadros, por um lado, e que precisariam de uma gestão mais eficaz dos recursos humanos, por outro. Inclusive, para fazer face à escassez magistrados no sistema, o Ministério da Justiça está ponderando reduzir o tempo de formação dos magistrados (de 3 para 2 anos).
Como o Sr. vê uma eventual redução do tempo de formação? O CEJ conseguirá assegurar o padrão de exigência e de qualidade formativa caso tal alteração aconteça?
EL: A resposta está na própria pergunta, ou seja, se o próprio legislador entende que um juiz, ou um magistrado do Ministério Público só está bem formado ao fim dos tais três anos a que me referi há pouco, um ano no CEJ – relativamente mais teórico – um ano num tribunal, para adaptação à realidade do tribunal, e um ano no tribunal já a fazer despachos diretamente nos processos, em estágio, é evidente que uma redução – como aquela que vai acontecer com o curso que está agora pendente – não é positiva.
Ou seja, haverá necessariamente uma redução da qualidade, haverá alguma falha que, eventualmente, no futuro possa causar prejuízos. Poderá ser bem-sucedida, porque a formação é boa, será sempre boa, a questão é que haverá menos filtros para aquilo que pode acontecer de mal.
Sempre que há um problema com qualquer juiz ou com qualquer magistrado do Ministério Público, no futuro, já quando estiverem atuando, ao fim destes 3 anos [de formação], nos Conselhos Superiores, sempre que há uma falha de alguém que tem processo disciplinar, inadaptação, que dê no que quer que seja, houve uma falha na seleção ou porque não devia ter entrado, ou porque não devia ter saído daqui. Mas essa porcentagem de falhas é muito reduzida.
É evidente que quando reduzimos o período de formação – e este período de formação é um período de formação com avaliação, e como possibilidade de exclusão – há menos tempo para testar, quer as qualidades técnicas, quer as qualidades pessoais para enfrentar o stress do serviço e de lidar com as situações problemáticas a que vão, necessariamente, ser sujeitos os futuros magistrados.
Portanto, reduzir o período de formação é possível, mas há aqui uma ponderação que o legislador ou, neste caso, o poder Executivo, que tem o poder de o fazer, a pedido dos Conselhos. Há uma ponderação que é feita em termos de análise de risco: o que é que é melhor para o sistema globalmente, se é arriscar estas situações, sabendo que serão sempre situações relativamente pontuais, ou deixar que a formação chegue ao fim e no momento certo para receber os magistrados.
Aumenta o risco, mas é uma responsabilidade que não é da escola de formação, é uma responsabilidade do destinatário, destes magistrados que são, basicamente, os Conselhos Superiores. Nos dois casos que vão acontecer agora, a redução de período de formação foi um pedido expresso do Conselho Superior do Ministério Público, os juízes não estão abrangidos, mas os magistrados do Ministério Público terão uma redução de período de formação, porque as necessidades são muitas, efetivamente.
Nestes últimos 5 e 6 anos não houve cursos de acesso ao CEJ e as pessoas continuaram morrendo, aposentando, adoecendo e não entrou ninguém. As vagas continuam existindo e houve uma reforma judiciária que, nomeadamente, no Ministério Público obrigou a que houvesse mais necessidade de magistrados. Por mais que haja organização, por melhor que seja a gestão de recursos humanos, o fato é que não conseguem dar resposta a tudo aquilo que se lhes exige. Portanto, era preciso mais magistrados, e aqui a solução foi reduzir o período de formação, que é o mais fácil.
Este panorama obriga-nos a ter mais responsabilidade ao nível da formação contínua, mas também ao nível da inicial, porque obriga a fazer seleção das questões, das matérias que têm que ser abordadas e mais concentradas para que se consiga dar aos formandos àqueles que vão ser os futuros magistrados – as ferramentas necessárias para poderem enfrentar o que vão enfrentar.
Não se pode dar tudo e há coisas tem que se dar sem redução de tempo porque são as básicas. Já não falo das questões de ética e deontológicas, mas em termos técnicos saber exatamente o que é que eles vão fazer mais para estarem preparados, e terem os instrumentos necessários e adequados para, quando não forem aquelas coisas que aprenderam diretamente, saberem onde é que vão e como é que enfrentam isso.
O início da utilização de meios informáticos, de meios à distância, de videotransmissões, levou a que a formação contínua dos magistrados fosse sofrendo mais adaptações, com mais proximidade e alcançando muito mais magistrados.
JT: Os magistrados (juízes e procuradores) tradicionalmente são vistos como duas classes conservadoras, pouco adeptas da utilização dos novos meios tecnológicos. O CEJ tem apostado em novas tecnologias de suporte à aprendizagem e formação à distância.
Como tem sido a adesão dos magistrados à utilização destas novas tecnologias?
EL: Isso é mais um mito urbano do que outra coisa, porque, a esse nível, Portugal, nomeadamente, está há muitos anos à frente da maior parte dos países próximos em termos civilizacionais.
Os tribunais, neste momento, funcionam na base de um programa que não é o mais desenvolvido, em termos técnicos, mas que foi construído por portugueses, por funcionários judiciais – Citius – e na base do qual está assente todo o sistema, ou seja, tudo está digitalizado. O processo é, basicamente, digital – os advogados só podem fazer entrar petições iniciais, contestações e outros procedimentos por via digital.
Portanto, tudo isto está já implementado e funcionando – com os seus defeitos, com os seus problemas – mas funciona. Não está ainda implementado na área criminal por questões de segurança. Dessa forma, os tribunais usam as novas tecnologias. Não só usam, como têm de usar. E, mesmo ao nível da inquirição de testemunhas por videoconferência, Portugal foi também um dos países que mais cedo implementou essa faculdade e pôs em prática esse instrumento e, portanto, não estamos mal nesse âmbito.
Portanto, desde o início da formação, os futuros juízes – auditores de Justiça – aqui no CEJ são habituados a trabalhar com o Citius e recebem o computador com o programa, para poderem ir se adaptando. Embora com poucos meios, isso é o suficiente para estarmos à frente dos países mais desenvolvidos ao nível da Europa.
Ao nível da formação inicial, utilizamos a plataforma Moodle, que permite disponibilizar praticamente todos os materiais aos auditores de Justiça com enorme facilidade de interação. Ao nível da formação contínua, utilizamos o Moodle, transmissões por videoconferência ou através de streaming, juntando os juízes e magistrados do Ministério Público ao longo do país, nos tribunais, ao mesmo tempo. Tudo isso permite uma grande interação com os formandos.
Chegamos à conclusão de que o fato de haver muita transmissão por videoconferência através de streaming para os tribunais, alcançando assim mais pessoas, não é tão eficaz se isso não for “temperado” com algumas ações de formação presenciais, com a realização de workshops ou com a presença esporádica de formadores nossos nos locais, que permitam maior interação entre as pessoas.
Realizar apenas transmissões distancia os destinatários e a percepção que depois se têm do que se passou – e em termos de aprendizagem – não é a que deveria ser, ao passo que, quando temos algum formador local presencialmente, que também lá está para interagir com eles, ou quando fazemos os workshops mesmo que transmitindo para outros locais – a situação é muito melhor. Os destinatários se sentem envolvidos, porque a questão é não apenas transmitir, mas fazer com que os destinatários se envolvam na formação.
Tem havido uma desmaterialização deste conhecimento também através de e-books como forma poder reutilizá-lo para além das ações de formação, vídeos, e outros materiais. Isto é, talvez, digamos, uma das medalhas de que o CEJ, neste momento, pode orgulhar-se de ter – até porque tem sido tido como uma entidade de referência nesta área dentro da própria EGDN como uma maneira de oferecer um bom serviço público, ou seja, a ideia é de conseguir que as ações de formação não se fiquem apenas pelo momento em que se realizam, nem se esgotem naquilo que foi dito àqueles a quem foi dito.
Isto no sentido em que a ação de formação, tal como é pensada, só se completa quando se faz o e-book dessa ação de formação. E o que é esse e-book? No momento em que a ação é concebida e que são convidados os intervenientes, os oradores, a participar e interagir com os formandos, que se lhes diz a ideia de realizar um e-book sobre essa formação e disponibilizá-lo à comunidade jurídica.
Depois da ação de formação, são recolhidos os textos que serviram de base às intervenções e as comunicações, juntando aos vídeos – porque todas as formações são gravadas e disponibilizadas. Assim se constrói um e-book que, depois, é disponibilizado à comunidade jurídica.
Ou seja, conseguimos com isto que os materiais que são disponibilizados para a formação contínua dos juízes e magistrados sejam disponibilizados não só aos juízes e magistrados que não estiveram lá, mas a toda a comunidade jurídica: aos advogados, aos solicitadores, aos notários, aos assessores dos serviços sociais, a todas as profissões que possam ter interesse naquelas matérias, e possam dali tirar também proveito, com a vantagem de ser gratuito – daí a vertente do serviço público – e de ser de fácil acesso, bastando ter acesso à internet.
JT: A redução da população prisional (de presos provisórios e condenados) e da superlotação que habitualmente lhe está associada passa pela implementação de medidas alternativas à prisão (previstas no nosso código penal).
Que contributo pode o CEJ dar para a sensibilização e informação dos juízes relativamente à implementação de medidas e sanções alternativas ao encarceramento, nomeadamente as que recorrem à utilização de meios de monitoramento eletrônico?
EL: Há sempre um caminho a percorrer a esse nível. As ações de formação que o CEJ realiza, não são apenas por iniciativa própria, mas para dar resposta às solicitações que lhes são feitas pelas entidades que tutelam os juízes e os magistrados do Ministério Público.
É partir daí que as ações são elaboradas. Portanto, as matérias concretas a abordar são solicitadas por estas [entidades], sobrando depois uma pequena margem para outras coisas que não foram solicitadas e que consideramos relevantes. De qualquer modo, ao nível dessa questão das medidas alternativas, há uma enorme preocupação relativa a isso aqui, na formação inicial.
Os auditores de Justiça que saem daqui têm formação no âmbito da jurisdição penal precisamente sobre a necessidade de levarem sempre em consideração não só as medidas alternativas – e na fase em que o são – mas também em relação à utilização de medidas como as tornozeleiras eletrônicas e tudo isso.
Ainda há poucos dias foi feita uma formação, em colaboração com outras entidades, para os juízes e magistrados do Ministério Público relacionada à teleassistência, precisamente visando promover a utilização da teleassistência como forma de combater a violência doméstica, por exemplo. Explicamos tudo, como é que funciona, os meios disponíveis, onde, quando, como, para combater e tentar ajudar a combater esse cancro social que é a violência doméstica.
Como o Sr. vê a evolução dos estudos e da formação judiciária no futuro? Que desafios é que se colocam nesta área?
EL: O desafio, basicamente é o envolvimento dos destinatários, o de conseguirmos utilizar os meios disponíveis e os meios digitais e à distância da forma mais eficaz, no sentido de conseguir que as pessoas não só estejam presentes, como como adirão e lhes seja útil o que está a ser feito.
Isso tem a ver com a forma de abordagem das temáticas e com o fato de a formação não poder ser totalmente e exclusivamente jurídica, no sentido técnico, porque quando é excessivamente técnica – embora não possa deixar de sê-la – muitas vezes mais vale ler um livro, e não pode ser isso. A formação tem que abrir horizontes, tem que dar instrumentos que permitam a abertura para lidar com as situações que apareçam, que possam surgir nos tribunais e no mundo jurídico. Esse é o desafio: conseguir despertar o interesse nas pessoas por aquilo em que vão ser formadas.
Nós temos feito algumas experiências já, abordando a questão da liberdade de expressão, tivemos uma formação intitulada “Humor, Direito e Liberdade de Expressão”, tivemos outra sobre “Poesia e Direito”. Isto permite um maior número de abordagens possíveis com interesse.
Vamos fazer uma [ação de formação] sobre Pintura e Justiça, quer dizer, coisas que permitam que as pessoas ampliem seus horizontes, que lhes permitam depois, nas situações que têm à sua frente, encontrar formas de as resolver, adequadas não apenas aquilo que está na lei, mas também aquilo que é a própria percepção da comunidade em que se envolvem, porque os tribunais e os juízes, e os magistrados do Ministério Público estão ali para resolver problemas, não é só para acabar os processos. É importante que os acabem, mas a formação tem que ser feita a procurar que os problemas se resolvam.
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Judge Edgar Taborda Lopes, Juiz de Direito, desempenha funções de Coordenador do Departamento de Formação do Centro de Estudos Judiciários desde 2012. Tem uma extensa carreira, de mais de vinte anos, como Juiz de Direito em vários tribunais judiciais nacionais, tendo, inclusive, desempenhado um mandato no Conselho Superior da Magistratura, na qualidade de Vogal, entre 2007 e 2010, na categoria de Juiz Desembargador.