// Entrevista: Alexandre Zouev
Secretário-Geral Adjunto de Estado de Direito e Instituições de Segurança, Nações Unidas (OROLSI)
Quais são os pontos-chave do trabalho das operações de paz da ONU no avanço da Justiça e do Sistema Penitenciários em ambientes afetados pela crise e a quais histórias de sucesso pode mencionar, mais especificamente?
AZ: A paz só pode ser construída sobre um fundamento de Justiça e respeito pelo Estado de Direito. O fortalecimento do Estado de Direito é essencial para construir e sustentar a paz em qualquer tipo de ambiente, mas especialmente em ambientes afetados por crises. A melhoria da segurança, a estabilização e o restabelecimento da autoridade do Estado exigem uma justiça e instituições penitenciárias eficazes e responsáveis.
As instituições de justiça criminal podem desempenhar um papel central na proteção de civis, ajudando a reduzir a ameaça de saqueadores de grupos armados e a evitar uma recaída em conflitos. Desde 2012, o grupo de trabalho sobre o Estado de Direito e as operações de paz da ONU se beneficiaram do envolvimento de vários parceiros, sob o acordo do Ponto Focal Global (GFP, de acordo com sua sigla em inglês) para polícia, justiça e sistemas penitenciários.
A GFP é uma plataforma das Nações Unidas, copresidida pelo meu Gabinete e pelo Programa das Nações Unidades para o Desenvolvimento (PNUD), destinado a reforçar a oferta de sistemas de Estado de Direito, abordar e prevenir conflitos violentos, proteger os direitos humanos e restaurar a justiça e a segurança das populações afetadas por conflitos. A plataforma permite que todas as entidades participantes das Nações Unidas – incluindo PNUD, ONU Mulheres, ACNUDH, ACNUR e UNODC – busquem objetivos compartilhados, respeitando e alavancando mandatos, capacidades e vantagens comparativas individuais.
Exemplos de sucesso abrangem várias áreas, inclusive na promoção da responsabilização por crimes graves e relacionados a conflitos: na República Centro-Africana (RCA), a polícia da MINUSCA, especialistas em justiça e sistema penitenciário – juntamente com outros parceiros da GFP – apoiam conjuntamente o restabelecimento da justiça criminal e das instituições de segurança, incluindo a operacionalização de um Tribunal Penal Especial (TPE).
O TPE é um tribunal nacional composto por magistrados nacionais e internacionais, com jurisdição para investigar e processar crimes de atrocidade. O CCS encontra-se numa fase crítica. Foram nomeados os primeiros investigadores, procuradores e juízes, foram adotadas as regras de procedimento e evidência; estão sendo desenvolvidas as estratégias em matéria de ação penal e de proteção de testemunhas e as investigações começaram. Estes esforços apoiam a extensão da autoridade do Estado, a luta contra a impunidade e a eficácia do sistema de justiça penal. O TPE está ajudando a solidificar o apoio regional aos mecanismos de responsabilização por crimes de atrocidade.
Na República Democrática do Congo, a assistência dos parceiros da GFP às Células de Apoio à acusação (PSCs, de acordo com sua sigla em inglês) acelerou os julgamentos no sistema de justiça militar. A assistência das PSCs resultou na condenação de 990 perpetradores; foram registrados um total de 1.726 casos de violência sexual e de gênero e 643 sentenças foram proferidas, resultando na condenação de membros do alto nível da milícia por estupro e escravidão sexual.
No Mali, os parceiros da GFP estão implementando conjuntamente programas de apoio à extensão da autoridade do Estado no Norte e estão abordando os fatores de conflito através do fortalecimento do Estado de Direito. Com o nosso apoio, o Ministério da Justiça adotou prioridades essenciais para as reformas da justiça delineadas nos acordos de paz, fundamentais para a capacidade do governo de coordenar o apoio bilateral e multilateral ao sector de justiça.
As novas áreas de envolvimento incluem: a operacionalização de uma unidade nacional especializada em terrorismo e crime organizado transnacional, a nomeação de procuradores e juízes de investigação, a nomeação de agentes especiais de investigação e formação especializada nestas áreas.
No que diz respeito ao apoio prisional na RCA, a MINUSCA está apoiando a desmilitarização das prisões e a criação de um serviço prisional civil como parte de uma estratégia global para melhorar a segurança pública e garantir a custódia segura e humana dos detidos, incluindo aqueles que cometeram crimes graves.
Atualmente, o governo designou sessenta e oito agentes penitenciários especializados para orientar e formar os funcionários penitenciários, ajudando a evitar a fuga de detentos de alto perfil que são potenciais ameaças para uma paz frágil. O número de fugitivos da prisão, incluindo detentos de alto perfil, diminuiu de 843 em 2015 para cerca de 132 desde o início de 2017 [Números de janeiro de 2018].
A MINUSMA (a nossa Missão no Mali) tem ajudado as autoridades nacionais a prevenir a propagação do extremismo violento nas prisões, proporcionando um pacote de medidas para a ressocialização em duas alas de alta segurança na prisão principal, em Bamako (onde os suspeitos de cometer terrorismo ou crimes relacionados são mantidos). A MINUSMA também ofereceu aos funcionários do Mali formação especializada em segurança prisional e na identificação da radicalização e na gestão de presos extremistas violentos.
"A paz só pode ser construída sobre um fundamento de Justiça e respeito pelo Estado de Direito."
Falando de radicalização e extremismo violento, como essa questão está sendo abordada no âmbito das operações de paz da ONU?
AZ: O extremismo violento e a radicalização que conduzem à violência são uma preocupação especial e muito séria para as Nações Unidas. Temos de reconhecer que os sistemas prisionais com poucos recursos, as elevadas taxas de detenção prolongada e, por vezes, arbitrária, bem como as condições prisionais precárias e muitas vezes abusivas, podem atuar como um catalisador para a radicalização, ao mesmo tempo em que apresentam obstáculos significativos às intervenções que visam combater estes problemas.
Posso mencionar estudos de pesquisa, no Oriente Médio e Norte da África, que entrevistaram estrangeiros combatentes terroristas e membros de grupos extremistas violentos. Evidências anedóticas apontaram que uma grande parcela de jovens se radicalizou em prisões, centros de detenção, campos e até mesmo em algumas instituições educacionais e não necessariamente em áreas rurais, remotas e pobres. Há um estereótipo público errado de que a maioria dos jovens estão se radicalizando por causa da pobreza, nas mesquitas e por imãs que têm opiniões muito radicais.
Durante o meu tempo na Ásia Central, por exemplo, aprendi que a gestão adequada dos presos extremistas violentos e a proteção dos detentos jovens é uma questão importante. Muitas vezes testemunhamos que, quando presos adultos doutrinados religiosamente eram alojados com detentos jovens, infratores de primeira viagem e tipicamente soldados de infantaria de alguns grupos terroristas, a influência dos adultos foi contraproducente para os nossos esforços de desradicalização.
Mas, ao mesmo tempo, as prisões apresentam um ambiente único e uma oportunidade para mudanças positivas; mensagens extremistas violentas podem ser combatidas em um ambiente controlado. A coleta de inteligência dentro da prisão pode ser uma grande fonte de informatização crítica. As prisões podem também oferecer catalisadores para a reintegração, através da educação e da formação profissional. Salvaguardas precisam ser postas em prática para evitar a disseminação de ideologias extremistas violentas para outros presos, mantendo as proteções concedidas ao abrigo do direito internacional às pessoas privadas de liberdade (por exemplo, no que se refere aos programas de identificação e separação, ressocialização e reintegração, se for caso disso).
Nossos componentes no campo normalmente exploram estratégias com contrapartes nacionais para lidar com o extremismo violento em três categorias abrangentes: 1) desengajamento (por exemplo, mudança comportamental, como renunciar o uso da violência como ferramenta para atingir objetivos); 2) reintegração através da libertação prévia e após a prisão (por exemplo, programas de envolvimento da comunidade para apoiar na libertação de detentos); e 3) a redução do risco de radicalização de outros reclusos (por exemplo, medidas de proteção, como a avaliação dos riscos e as medidas de separação). Observamos, no entanto, que qualquer atividade relacionada com as prisões será influenciada pela missão, pelas prioridades nacionais e pela capacidade dos serviços prisionais nacionais para sustentar tais atividades.
Estamos colaborando muito estreitamente com os nossos países contribuintes, doadores, Estados-Membros, apoiantes políticos do Estado de Direito e outros. Um exemplo fundamental: com o apoio do Serviço Prisional e de Liberdade Condicional sueco e com o envolvimento significativo e estratégico de uma ONG altamente respeitada em Baidoa, Somália, nossa Missão, UNSOM, desenvolveu um programa inovador para apoiar o desengajamento e a reintegração dos presos do Al-Shabaab de volta às suas respectivas comunidades.
O projeto explorou questões de classificação dos presos, planejamento do cumprimento da pena e apoio comunitário prévio e posterior à libertação. O “Programa de Ressocialização de Presos de Alto Risco” foi o primeiro de seu tipo em uma operação de paz das Nações Unidas e tem sido usado por especialistas acadêmicos e substantivos para avaliar esse apoio à reintegração de presos extremistas violentos. Atualmente, o programa está em sua terceira fase, com foco no apoio e supervisão da comunidade para aqueles que foram libertados. As lições aprendidas formarão um elemento de nossa orientação para outras operações de paz que estão lidando com um perfil semelhante de detentos de alto risco.
"A maneira mais eficaz de promover a conformidade com as Regras de Mandela e Bangkok é garantir que elas estejam incorporadas em todos os aspectos do nosso trabalho."
Em que medida as operações de paz da ONU promovem o cumprimento das Regras de Mandela e de Bangkok?
AZ: Devemos garantir que todos os presos sejam protegidos da tortura e do tratamento cruel, desumano e degradante. Tanto as Regras de Mandela como as de Bangkok são muito interdependentes e tornaram-se as normas para todas as iniciativas em operações de paz da ONU no âmbito dos sistemas penitenciários.
Em nossa opinião, a maneira mais eficaz de promover a conformidade com essas Regras é garantir que elas estejam incorporadas em todos os aspectos do nosso trabalho. As políticas de apoio às prisões dão prioridade às áreas temáticas do envolvimento do sistema penitenciário na manutenção da paz, que se destinam a reforçar a capacidade nacional para garantir prisões seguras e humanas. A premissa de cada área temática é a implementação de padrões de direitos humanos em ambientes complexos e com poucos recursos.
Trabalhamos em colaboração com várias agências da ONU, definitivamente com o ACNUDH, mas também com o UNODC, o PNUD, bem como várias ONGs, para aumentar a conscientização sobre as Regras de Mandela e de Bangkok entre os nossos homólogos nacionais nos países de acolhimento e na sociedade civil. Também aproveitamos todas as oportunidades para defender a implementação desses padrões de direitos humanos em nossos círculos internacionais em conferências e workshops como parte de nossa abordagem à gestão prisional responsável.
Essas normas de direitos humanos também estabelecem a base da formação prévia à implantação, assim como na formação do marco de missão que os funcionários penitenciários das Nações Unidas (GPP) recebe dos governos. Esta formação destina-se a dotar o GPP dos conhecimentos e competências necessários para apoiar as autoridades prisionais nacionais na compreensão dos elementos estratégicos e operacionais das normas, aumentar a vontade política para a sua aplicação e para trabalhar, no âmbito da legislação nacional em vigor, a fim de aplicar os princípios dessas normas, a fim de proteger os direitos e a dignidade dos detidos, presos e pessoal prisional.
Os sistemas de justiça e penitenciários têm muito poucos recursos, e não apenas nos países em desenvolvimento e/ou regiões de conflito. A situação não tem a ver não só com as dotações orçamentárias – que, em muitos casos, são insuficientes – mas também com a falta de formação adequada e de seleção dos agentes penitenciários, assim como com a falta de cumprimento das normas internacionalmente reconhecidas em matéria de direitos humanos e humanitário. Nossa equipe dedicada ao sistema penitenciário trabalha com os serviços prisionais nacionais para encontrar abordagens criativas para trabalhar dentro desses parâmetros a fim de melhor alcançar o cumprimento dos padrões internacionais de direitos humanos nas prisões.
Os sistemas de justiça e penitenciário têm muito poucos recursos, e não apenas em países em desenvolvimento e/ou regiões de conflito.
Por favor, conte-nos mais sobre o pessoal disponibilizado pelo governo e como eles ajudaram nas operações de paz da ONU.
AZ: Os Estados-Membros prestam um apoio significativo através do destacamento de especialistas qualificados em justiça, polícia e sistema penitenciários (GPP) que atuem nas operações de paz das Nações Unidas.
Eles representam aproximadamente 80% dos funcionários do sistema penitenciários nas operações de paz da ONU e 15% dos funcionários da justiça. A disponibilidade de especialistas nacionais altamente qualificados para o serviço como GPP afeta fortemente a nossa capacidade de cumprir as tarefas obrigatórias.
Um exemplo de onde a modalidade GPP tem sido crítica é a República Democrática do Congo, onde a nossa missão – MONUSCO – criou Células de Apoio ao Ministério Público, compostas por especialistas em justiça e policiamento fornecidos pelos Estados-Membros.
Esses funcionários trazem ampla experiência nas áreas de investigação, acusação e julgamento de crimes de guerra, crimes contra a humanidade e outras violações graves, inclusive de natureza sexual. Através da prestação de aconselhamento e orientação, apoiam os especialistas nacionais em justiça no tratamento dos crimes mais graves com impacto direto na paz, na segurança e na estabilidade.
Gostaria de apelar aos leitores, especialmente aqueles que trabalham para a sua justiça nacional, polícia ou serviços prisionais, para que perguntem às suas instituições sobre as possibilidades de implantação como GPP para operações de paz da ONU.
Certamente, a missão do Escritório do Estado de Direito e das Instituições de Segurança não poderia ser bem sucedida sem a ajuda de parceiros. Quem são esses parceiros?
AZ: Sim, de fato, o sucesso e a sustentabilidade dos esforços de manutenção da paz da ONU dependem de parcerias estratégicas. A nossa principal parceria é com as autoridades nacionais, que são os proprietários finais de quaisquer iniciativa destinada a apoiar as suas instituições policiais, judiciais e penitenciárias.
O nosso principal papel consiste em reforçar as capacidades dos parceiros nacionais, a fim de apoiar progressos significativos, legítimos e sustentáveis. No entanto, embora esta seja a mais crítica de nossas parcerias, também pode ser a mais delicada e desafiadora de estabelecer e manter.
A plataforma do Ponto Focal Global (GFP) aumentou a coerência da ONU no setor do Estado de Direito, alinhando estratégias/programas com os planos nacionais de desenvolvimento e servindo como um único ponto de entrada para os governos anfitriões. Por meio de avaliações, planejamento e programação conjuntos, o acordo GFP aumentou o impacto e os resultados, reduzindo a concorrência, alavancando a experiência e incentivando a inovação.
O Grupo Amigos dos Sistemas Penitenciários é uma iniciativa impulsionada pelos Estados-Membros que apoia o trabalho dos sistemas penitenciários nas operações de paz da ONU, tanto política quanto substantivamente. O Grupo educa, defende e apoia o papel dos sistemas prisionais na manutenção da paz e da segurança entre os Estados-Membros e no âmbito de várias discussões de comissões em NY. Esse engajamento impactou diretamente a linguagem obrigatória em várias resoluções do Conselho de Segurança e garantiu os recursos necessários e o financiamento programático para iniciativas penitenciárias.
Mais substancialmente, os serviços prisionais nacionais destes Estados-Membros apoiaram ativamente o nosso trabalho com iniciativas concretas, tais como missões de avaliação específicas dos sistema prisionais na RCA e o desenvolvimento e execução de iniciativas de formação específicas (tais como a liderança prisional e programas de gestão prisional com perspectiva de gênero programas).
As ONGs (internacionais e nacionais) são outro parceiro significativo no setor penitenciário. Exemplos disso são o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, os Médicos sem Fronteiras, a Organização Internacional de Direito para o Desenvolvimento e a Reforma Penal Internacional (PRI).
As ONGs nacionais são particularmente eficazes, dada a sua compreensão dos costumes, política, cultura e língua locais, enquanto a PRI é um defensor particularmente forte da implementação das Regras de Mandela e de Bangkok. A MINUSCA recentemente fez uma parceria com a PRI para elaborar uma estratégia de desmilitarização do serviço prisional.
O projeto foi concluído em setembro de 2018 e em breve será apresentado ao presidente da RCA para promulgação. Esta estratégia constitui o roteiro a curto e a longo prazo para o desenvolvimento do serviço prisional da RCA.
Existem projetos específicos relacionados à justiça ou ao sistema penitenciário para os quais a OROLSI requer apoio?
AZ: Nosso Serviço de Justiça e Sistema Penitenciário (JCS, segundo sua sigla em inglês) busca apoio de doadores para financiar várias iniciativas, incluindo projetos para: fortalecer a eficácia e o impacto dos esforços na justiça e nos sistemas prisionais por meio de um estudo de lições aprendidas (assunto a ser divulgado); fortalecer a qualidade da justiça e dos sistema penitenciários do Pessoal Fornecido pelo Governo; reforçar a capacidade das operações de paz de apoio à responsabilização penal por crimes graves(nomeadamente através de destacamentos mais rápidos de conhecimentos especializados para mecanismos de responsabilização nacional); e apoiar a elaboração de procedimentos operacionais normalizados em matéria de detenção e gestão de presos de alto risco, incluindo extremistas violentos e outras pessoas de alto perfil, para 1) reforçar a capacidade das operações de paz da ONU para gerir com segurança os indivíduos de alto risco no momento da sua apreensão pela polícia e pelos militares da ONU; e 2) apoiar as autoridades prisionais nacionais na gestão de pessoas de alto perfil.
//
Alexandre Zouev ingressou nas Nações Unidas em 1990 e atuou no Programa das Nações Unidas de Desenvolvimento (PNUD), Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e Escritório das Nações Unidas para Serviços de Projetos (UNOPS). De junho de 2016 até assumir seu cargo atual em abril de 2017, ele foi Gerente de Programa Global e Assessor Especial em Prevenção do Extremismo Violento do PNUD. Antes disso, foi Coordenador Residente das Nações Unidas e representante residente do PNUD no Tajiquistão entre 201 e 2016. Tem Ph.D. em Economia do Desenvolvimento do Instituto Estatal de Moscou e escreveu numerosos livros e artigos sobre os aspectos sociais e econômicos do desenvolvimento.