Uso excessivo da prisão provisória: uma proposta de caminho da Europa

Painel de Especialistas: A prisão provisória

Raquel Venâncio, Pedro Liberado, Pedro das Neves y Joana Apóstolo

O uso da prisão provisória em todo o mundo

Na última década, cerca de três milhões de pessoas (até um terço de toda população de presos do mundo) foram presas em prisão provisória, em espera de julgamento ou uma sentença final.
Entre 2000 e 2016, esse número aumentou pelo menos 15%. Além da Europa, alguns continentes e países viram aumentos muito mais significativos do que isso em suas populações de presos provisórios. [1]
 
Nos Estados Unidos da América, um terço da população prisional do país (estimada em cerca de 1,9 milhão de presos) ainda não foi condenada – são 627.000 pessoas em prisão provisória. Além disso, os dados dizem que a maioria das pessoas encarceradas nas prisões (67%) ainda não foi julgada pela justiça. [2]
 
Em alguns países a porcentagem de detenção provisória é superior a 50%, contribuindo principalmente para a superpopulação e superlotação das prisões.
 

Na Europa mais ampla, que constitui o Conselho da Europa (47 países) [3], o último relatório SPACE I [4] sobre estatísticas penitenciárias indica que 21,7% da população prisional europeia corresponde a detentos que não cumprem uma sentença final, um número que tem visto um aumento considerável nos últimos anos. [5]

A prisão provisória é um tema sensível, “por um lado, vinculado à eficácia da ação penal e, assim, ao cumprimento da justiça e segurança para as pessoas. Por outro lado, essa medida está ligada aos direitos e garantias mais valiosos que são, sobretudo, destinados a proteger a liberdade e a integridade física e psicológica dos cidadãos”. [6]
 

Nos 27 Estados-membro da União Europeia [7], a prisão provisória parece ainda ser excessivamente utilizada, apesar dos esforços realizados nas últimas décadas e mesmo que tenha sido definida como uma medida de último recurso ou ultima ratio

Vários relatórios de pesquisa [8] mostram que as autoridades de vários países estão inclinadas a escolher a detenção em vez de alternativas ao encarceramento. [9]

Não obstante, “é […] seguro assumir que a superlotação ocorre muitas vezes em relação ao uso excessivo da prisão provisória”, violando princípios que devem orientar essa medida. [10]

Entre esses princípios estão a presunção de inocência, o direito a um julgamento justo, a legalidade, a proporcionalidade, a adequação e o princípio ultima ratio. [11]

As consequências do  uso excessivo da prisão provisória

A aplicação excessiva da prisão provisória degrada ainda mais as condições de detenção material, alimentando a superlotação das prisões e trabalhando como catalisador que agrava muitos outros problemas.
 

O uso desproporcional dessa medida causa consequências agravadas para os suspeitos e para o Estado. Os suspeitos – em comparação com os presos condenados – tendem a viver em prisões superlotadas, mal equipadas com serviços de saúde, falta de pessoal, facilitando a violência entre companheiros (pré-julgamento) detentos [12] e sofrendo pressões adicionais à medida que enfrentam as incertezas e ansiedades “regularmente ligadas ao processo penal”. [13]

Os presos provisórios correm o risco de perder sua casa, renda e emprego atual, além de estarem longe de suas famílias. Além disso, geralmente não têm acesso a programas de trabalho, educação ou ressocialização durante a detenção. Quando liberados, continuam suscetíveis à exclusão econômica, uma vez que o estigma social ainda está presente na sociedade, impedindo-os, na maioria das vezes, de serem empregados novamente. [14]

Do ponto de vista custo-eficiência, é mais caro para o Estado (contribuintes) prender um suspeito do que aplicar alternativas, sempre que uma alternativa for aplicável. [15]
 

Os presos provisórios correm maior risco de exclusão econômica devido à falta de renda e perda de empregos em função de terem sido presos. Além disso, podem ser afetados pelo desemprego ou subemprego de longo prazo após serem postos em liberdade devido ao “estigma da detenção, combinado com a perda das atividades de educação e formação”. [16]

Avanços europeus em relação à prisão provisória

Na Europa, as recentes decisões do Tribunal Europeu de Direitos Humanos [17] denotam três dificuldades abrangentes relativas a aplicação de prisão provisória[18]: i) recurso injustificado à prisão preventiva, ii) duração excessiva da prisão preventiva e iii) condições de detenção precárias. 

A questão está na agenda da Comissão Europeia há algum tempo, sendo referida no Livro Verde sobre “Fortalecimento da confiança mútua na área judicial europeia – um documento sobre a aplicação da legislação de justiça criminal da União Europeia no campo da detenção” [19] como parte do Roteiro de Estocolmo, e mais recentemente através da intenção da Comissão de emitir a “Prisão provisória – recomendação da UE sobre direitos e condições” [20] em 2022.

Considerando a falta de normas da UE sobre a prisão provisória e as condições de confinamento, parece haver necessidade de uma nova legislação que possa apoiar a prevenção do uso excessivo da prisão provisória. Tal progresso contribuiria para garantir a prisão provisória como medida de último recurso.

No entanto, como mostram as entrevistas [21] do projeto PRE-TRIAD [22], os tomadores de decisão continuam relutantes quanto à perspectiva de maior uso de alternativas disponíveis (esse cenário é ainda mais agravado no caso de pessoas vivendo em condições precárias, por exemplo, estrangeiros, pobres e pessoas em situação de rua, como observado por uma variedade de estudos)”. [23]

Estrangeiros em prisão provisória e uso da Ordem de Supervisão Europeia

Os estrangeiros representam uma proporção substancial da população em prisão provisória em muitos Estados-Membro da União Europeia, incluindo Áustria, Alemanha, Itália e Portugal. [24]
 
Os impactos nocivos do uso generalizado da prisão provisória não diminuirão a menos que o número de estrangeiros colocados sob prisão provisória seja considerado. Como os estrangeiros muitas vezes não têm residência regular no país anfitrião e demonstram laços sociais fracos ou nulos, podem facilmente se encontrar em prisão provisória.
 
Para facilitar a aplicação de medidas alternativas aos cidadãos da União Europeia que enfrentam julgamento em outro Estado-Membro da UE, a Comissão Europeia (CE) criou um instrumento comum específico nos termos da Decisão-Quadro 2009/829 – a Ordem Europeia de Supervisão (ESO, segundo sua sigla em inglês).
 
A CE reconhece que “há risco de tratamento diferenciado entre aqueles residentes no estado de prova e aqueles que não são: riscos de não residentes serem mantidos sob custódia até mesmo onde, em circunstâncias semelhantes, um residente não estaria”. Assim, inscrito no texto da Decisão-Quadro o objetivo principal do instrumento é de “aumentar a proteção do público em geral através da habilitação de uma pessoa residente em um Estado-membro da UE, mas sujeita a processos criminais em um segundo Estado-membro, a ser supervisionada pelas autoridades do Estado em que ele ou ela está residente enquanto aguarda julgamento”. [25]
 
Não obstante a existência do instrumento há mais de uma década, os dados denotam o quão pouco ele tem sido usado.
 
Ao contrário de outros instrumentos, como o Mandado de Prisão Europeu, a Ordem europeia de Supervisão “tem sido sistematicamente ignorada e subutilizada pelas autoridades competentes dos Estados-membros” [26]. Por exemplo, entre 2015 e 2020, apenas sete Ordens de Supervisão Europeias foram emitidas na Espanha. Este cenário reflete a experiência de outros Estados-Membros da UE com essa decisão. Apesar disso, juízes e promotores dizem que estão em grande parte satisfeitos com a forma e a frequência com que as alternativas são usadas em seus países. [27]
 

Assim, se os tomadores de decisão judiciais estão relutantes em relação à perspectiva de uma aplicação mais elevada de alternativas em geral, o uso escasso da Ordem de Supervisão Europeia não é surpreendente.
O relatório das entrevistas do projeto PRE-TRIAD indica que o instrumento é pouco conhecido e ainda menos utilizado. Entre as razões para tal pouca ativação, os profissionais destacam os caminhos burocráticos da Ordem de Supervisão Europeia e sua falta de simplicidade, falta de informação e formação para o seu uso, juntamente com a pressão do tempo, e respostas lentas das autoridades competentes, bem como a falta de conhecimento sobre os sistemas judiciais e as dificuldades linguísticas de outros Estados-membro. [28]

Redução da prisão provisória: um caminho a seguir

O uso excessivo da prisão provisória impacta negativamente os detidos e seus direitos fundamentais, famílias, comunidades e até mesmo os recursos financeiros dos países. É impossível negligenciar o impacto organizacional nos sistemas prisionais. Assim, atuar imediatamente a nível da União Europeia e nacional, utilizando os instrumentos disponibilizados (como o ESO), tornou-se imperativo.
 

Em relação às ações em nível nacional, o consórcio de projetos PRE-TRIAD [30] faz várias recomendações.

A necessidade de atividades de formação e conscientização é apenas uma delas. Quando se trata de prisão provisória, a pesquisa do projeto também pede que os países considerem os princípios da presunção de inocência, da proporcionalidade e de ultima ratio. Na mesma linha, esta iniciativa financiada pela UE também sugere avaliar e considerar a introdução de sistemas de liberdade sob fiança, semelhantes ao Programa de Fiança de Toronto. [31]
 
As recomendações também incluem avaliar as estruturas organizacionais existentes para casos transfronteiriços e cooperação, ao mesmo tempo em que avaliam opções para apoiar melhor a cooperação transfronteiriça por meio de estruturas melhoradas e possivelmente centralizadas, além de continuar e melhorar com os esforços contínuos e crescentes para promover a cooperação judicial e a comunicação entre os Estados-membro. [32] Paralelamente, a iniciativa reforça a necessidade de elaborar uma estratégia abrangente para promover instrumentos de confiança mútua a nível da União Europeia. [33]
 

Se não fizemos isso, colocaremos em risco a oportunidade trazida por este instrumento crítico para pressionar por reformas essenciais relativas à redução da prisão provisória.

Leia o ponto de vista de especialistas e tomadores de decisões.

Referências

[1] Heard, C., Fair, H. (2019). Pretrial detention and its over-use. Evidence from ten countries. Institute for Crime & Justice Policy Research Birkbeck, University of London

[2] Sawyer, W.; Wagner, P. (2022). Mass Incarceration: The Whole Pie 2022. Prison Policy Initiative.

[3] Council of Europe Member States.

[4] Aebi, M., & Tiago, M. (2022). SPACE I – 2022 – Council of Europe Annual Penal Statistics: Prison populations. Strasbourg: Council of Europe.

[5] Fair Trials. (2021, April 1st). The EU’s under-reported pretrial detention problem.

[6] Hammerschick, W. (2021a). D2.1 – Literature review – Legislative analysis and pretrial detention impacts. PRE-TRIAD project.

[7] Estados-Membros da União Europeia.

[8] Hammerschick, W., Morgenstern, C., Bikelis, S., Boone, M., Durnescu, I., Jonckheere, A., Lindeman, J., Maes, E., Rogan, M. (December 2017). Towards Pretrial Detention as Ultima Ratio – Comparative Report, pp. 7-9.

[9] Por inúmeras instituições, organizações e organizações não governamentais, nomeadamente os: Relatórios anuais do Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura; o Comitê de Helsinque; o Relatórios dos Mecanismos Nacionais de Prevenção; Relatórios da Agência de Direitos Fundamentais; e as decisões do Tribunal Europeu de Direitos Humanos.

[10] Krešimir K. (n.d.). The overuse of pretrial detention as a public policy and human rights problem. Confederation of European Probation

[11] Hammerschick, W. (2021a)

[12] Tomsini-Joshi, D., Jürgens, R., & Csete, J. (2014). Health in pretrial detention. In S. Enggist, L. Møller, G. Gaudea, & C. Udesen (Eds.), Prisons and health (pp. 36-41). Copenhagen, DK: World Health Organization.

[13] Hammerschick, W. (2021a). p. 11.

[14] Global Campaign for Pretrial Justice. (2013). How Pretrial Detention Stunts Socioeconomic Development.

[15] Baker, E., Harkin, T., Mitsilegas, V., Peršak, N. (2020, December 15). The Need for and Possible Content of EU Pre-trial Detention Rules. Eurocrim.

[16] Open Society Justice Institute. (2011). The Socioeconomic Impact of Pretrial Detention. New York: Open Society Foundations.

[17] European Court of Human Rights Case Law.

[18] Hammerschick, W. (2021a).

[19] European Commission. (2011). GREEN PAPER Strengthening mutual trust in the European judicial area – A Green Paper on the application of EU criminal justice legislation in the field of detention [Green Paper].

[20] Pretrial detention – EU recommendation on rights and conditions.

[21] O consórcio PRE-TRIAD é financiado pelo Programa de Justiça da Comissão Europeia. É liderado pelo Ministério da Justiça de Bremen (Alemanha), tendo como parceiros IPS Innovative Prison Systems (Portugal), Centro para o Estudo da Democracia (Bulgária), AGENFOR International (Itália), Universidade de Innsbruck/IRKS (Áustria) e Consultoria de Estratégias Europeias (Romênia). Para mais informações, visite www.pretrial-detention.org 

[22] Hammerschick, W., Apóstolo, J., Venâncio, R., Aschermann, J., Matt, E., Durnescu, I., Grigorieva, D., Markov, D. (2021). D2.4 – Interviews Report. PRE-TRIAD project.

[23] Hammerschick, W., Morgenstern, C., Bikelis, S., Boone, M., Dunescu, I., Jonckheere, A., Lindeman, J., Maes, E., Rogan, M. (2018). Towards Pretrial Detention as Ultima Ratio – Recommendations, p. 71; Open Society Foundations & United Nations Development Program. (2011). The socioeconomic impact of pretrial detention. Open Society Foundations, p. 22; Lappi-Seppala, T. (2009). What social, political, and cultural factors characterise countries with a lower use of imprisonment? Background draft 26.4.2009. Unpublished Manuscript, p.30

[24] De acordo com Hammerschick (2021a), na época do relatório (2019), três quartos de todos os presos provisórios eram estrangeiros na Áustria, contra 60% na Alemanha, um terço na Itália e um quarto em Portugal.

[25] Conselho da União Europeia. Decisão-Quadro do Conselho 2009/829/JHA de 23 de outubro 2009, sobre a aplicação, entre os Estados-Membros da União Europeia, do princípio do reconhecimento mútuo das decisões sobre medidas de supervisão como alternativa à prisão provisória.

[26] Mandado de prisão europeu

[27] Neira-Pena, A.M. (2020). The Reasons Behind the Failure of the European Supervision Order: The Defeat of Liberty Versus Security. European Papers, 5(3), 1493-1509.

[28] Conforme observado pelas entrevistas do projeto PRE-TRIAD (Hammerschick et al., 2021b p. 10).

[29] Hammerschick, W. (2021b).

[30] Durnescu, I. (2021). D3.2 – Recommendation paper on the application of the Council Framework Decision 2009/829/JHA at the EU level. PRE-TRIAD project.

[31] Para mais informações sobre a o Programa de Fiança de Toronto, veja a entrevista publicada pela Revista JUSTICE TRENDS “Uma alternativa construtiva ao encarceramento à disposição dos mais vulneráveis“. Na edição atual da revista, você também encontrará uma apresentação atualizada deste programa para 2022.

[32] Hammerschick, W., Apóstolo, J., Venâncio, R., Aschermann, J., Matt, E., Durnescu, I., Grigorieva, D., Markov, D. (2022). D3.1 Recommendation paper on Pretrial Detention national application.

[33] Durnescu, I. (2021)

Os autores de este artigo são da equipe de pesquisa e consultoria da IPS Innovative Prison Systems. Veja mais informação sobre cada um e explore o se trabalho em prisonsystems.eu/our-team

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