De núcleos de criminalidade a escolas de capacitação: A reforma prisional no Ceará

Entrevista

Mauro Albuquerque

Secretário da Administração Penitenciária e Ressocialização, Estado do Ceará, Brasil

O Estado brasileiro do Ceará enfrenta um cenário preocupante, onde o crime e a violência organizada se manifestam de forma expressiva dentro e fora dos estabelecimentos prisionais. A origem e a coordenação das operações de facções organizadas estão frequentemente ligadas a elementos a cumprir pena dentro das próprias das prisões, onde uma grande percentagem dos detentos está filiada a estes grupos. Este cenário, para além de potenciar o crime, a violência, e as rebeliões dentro dos estabelecimentos prisionais, tem também influências diretas e significativas na segurança da sociedade civil Cearense.

A partir de Janeiro de 2019, o Secretário Mauro Albuquerque deixou o comando do sistema penitenciário do Rio Grande do Norte – onde tinha enfrentado com sucesso um cenário semelhante – para assumir o cargo de Secretário da Administração Penitenciária do Ceará.

Na nossa conversa com o Secretário, exploramos as estratégias e os resultados da sua abordagem da manutenção da ordem e segurança sobre o combate ao crime organizado e os progressos da Administração Penitenciária Estadual no campo da ressocialização através da educação e do trabalho.

Qual era o panorama no sistema penitenciário do Ceará quando assumiu a sua liderança?

MA: Quando assumi a liderança no sistema penitenciário do Ceará, encontrámos um cenário dominado por facções criminosas que exerciam um controle esmagador sobre as prisões. As facções estavam divididas por unidades prisionais específicas, e apenas com esta concessão o Estado conseguia oferecer alguma segurança para os presos.

Existia uma segmentação entre as fações existentes, nomeadamente o Comando Vermelho, o G.D.E (Guardiões do Estado), e o PCC (Primeiro Comando da Capital). Aqueles que não estavam envolvidos em nenhuma facção constituíam o quarto segmento do sistema prisional.

Esta divisão era favorável às facções que tinham liberdade para exercer o seu controlo, alegando que isso garantiria a segurança dos detentos. Mas a realidade era diferente. Entre os anos de 2013 e 2018, mais de 200 presos perderam a vida, uma média de 50 mortes por ano no sistema prisional.

Outro problema era a proliferação de unidades prisionais, muitas delas pequenas e desprovidas de estrutura adequada para saúde, segurança e assistência aos detentos. Na verdade, essas unidades funcionavam como verdadeiros escritórios do crime, pois não havia um controle eficaz. Um agente penitenciário era responsável por supervisionar centenas de presos, uma situação completamente insustentável.

É importante destacar que as facções se capitalizam dentro do sistema prisional, o que é extremamente grave. Tudo que era fornecido dentro das prisões era controlado pelo crime organizado. Os detentos tinham que pagar às facções por suas próprias acomodações e até pela comida fornecida pelo Estado. Havia um mercado negro de alimentos, e de bens como ventiladores trazidos pelas próprias famílias dos detentos. A dimensão do dinheiro envolvido era alarmante, sem contar o tráfico de drogas, que dentro do sistema prisional vale 15 a 20 vezes mais que na rua.

As facções também controlavam o crime no exterior, principalmente através do uso de telefones celulares, que considero uma das armas mais perigosas no sistema prisional. Isso permitia a realização de videochamadas e até mesmo execuções ordenadas por meio de dispositivos móveis. Em resumo, o sistema prisional estava completamente infiltrado pelas facções, a ponto de impedir que policiais entrassem em certas áreas e exigir que o Ministério Público entrasse com escolta armada da polícia de choque.

No campo da segurança dentro dos estabelecimentos prisionais, quais foram a suas prioridades face à situação anterior?

MA: A principal prioridade foi acabar com o controle absoluto que as facções criminosas exerciam dentro das unidades prisionais. Acabei com a situação de cada facção ter uma unidade prisional. Adotamos uma abordagem de separação por alas em vez de unidades exclusivas para cada facção. Essa medida mostrou que o Estado não estava mais sob o controle de nenhuma facção. Além disso, começamos a fechar unidades prisionais menores sem a segurança adequada.

As facções, conhecendo o meu trabalho no Rio Grande do Norte, perceberam que eu estava comprometido em eliminar as regalias que o crime organizado tinha como adquiridas dentro do sistema prisional. Em resposta a esta intensificação da nossa luta contra as facções, o Estado enfrentou uma onda de ataques logo após a minha tomada de posse.

Elevamos o nível da segurança e inteligência prisional. Introduzimos a vigilância aproximada, onde os policiais conseguem manter um contacto constante com os internos, mantendo a sua segurança através de medidas de separação. Isto está em oposição completa à situação anterior que erroneamente colocava os presos com domínio completo do interior das instalações e os policiais fora. 

Esta proximidade nos permite prevenir agressões e intervir imediatamente em situações de risco, assim como fazer outras atividades de segurança como revistas às celas e aos detentos. Assim conseguimos aumentar o controlo em questões como o contrabando, ou detetar túneis escavados nas celas para facilitar fugas, um grande problema no passado.

Esta transformação na segurança é fundamental para diminuir a influência das facções e evitar o recrutamento. Quando o Estado oferece a segurança devida para aqueles que estão sob a tutela do Estado, eles começam a perceber que há outra opção além de se submeterem às facções criminosas.

Além disso, fortalecemos nosso efetivo, aumentando o número de policiais penais em unidades prisionais. Antes, tínhamos uma unidade com apenas nove policiais de plantão para lidar com 1500 presos. Atualmente, a mesma unidade tem 35 policiais de plantão, somando até 16 extras durante o dia, o que nos permite ter uma presença mais robusta e eficaz.

Outra das áreas críticas que enfrentamos foi a corrupção dentro do sistema prisional. Não é possível retomar um sistema sem combater a corrupção, pois agentes facilitavam as atividades ilegais das facções. Portanto, concentramos esforços em combater a corrupção, o que também envolveu melhorar a formação dos agentes e promover uma cultura de responsabilidade.

Um passo fundamental que tomamos foi trazer as delegacias para dentro das prisões, o que nos permitiu responsabilizar e individualizar cada detento ao lidar com ocorrências. Eu digo que a nossa melhor arma foi começar usando a caneta. Esse foi um passo essencial e pedagógico, no qual os presos passaram a entender que a liberdade estava em jogo se continuassem envolvidos em atividades criminosas ou pertencendo a facções dentro das unidades.

Segurança é um dos pilares que nos permite desempenhar um papel crucial na gestão prisional e na ressocialização dos detentos. Apenas onde a segurança está garantida é possível realizar trabalhos e iniciativas de ressocialização.

Que resultados têm obtido destas e outras medidas de controle e inteligência prisional nestes anos?

MA: Nos últimos anos, as medidas de controle e inteligência prisional que implementamos tiveram resultados significativos e mensuráveis. Um exemplo marcante é a redução drástica nas fugas. Antes, tínhamos quase 1000 fugas por ano, mas ao longo desses cinco anos, conseguimos reduzir esse número para apenas 113. A maioria dessas fugas ocorreu durante atividades laborais ou de estudo. Dentre os 113 fugitivos, conseguimos recuperar 88 graças ao trabalho de inteligência.

Outro aspeto crucial foi o combate ao problema dos celulares dentro das prisões. Em 2018, foram apreendidos cerca de 5400 celulares. No entanto, em 2019, apenas no primeiro trimestre, já havíamos retirado 4700 celulares. No segundo trimestre, esse número caiu para 900, e no terceiro, para cerca de 300. Em 2020, praticamente impedimos a entrada de celulares nas prisões, uma conquista crítica no sistema prisional brasileiro.

Além disso, adotamos tecnologias como raio-x e bodyscan para reforçar a segurança e evitar a entrada de objetos ilícitos nas celas. Medidas simples, como a retirada dos barbeadores das celas, contribuíram para evitar o uso desses objetos como armas e instrumentos de fuga.

O resultado mais significativo dessas ações foi a eliminação das mortes violentas dentro do sistema prisional. Após dois incidentes no ano de 2019, conseguimos manter um período de três anos sem nenhuma morte dentro das prisões. Isso é um feito inédito e demonstra o sucesso das estratégias adotadas cumprindo a regra número um de Mandela que é a proteção de todos no sistema prisional.

Quando o Estado oferece a segurança devida para aqueles que estão sob a tutela do Estado, eles começam a perceber que há outra opção além de se submeterem às facções criminosas.

 JT: A sobrelotação dos estabelecimentos é um problema que o Estado enfrenta, à semelhança da situação geral do país. No entanto, segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPEN), o Ceará diminuiu significativamente o défice de vagas, tendo evoluído de quase 20 mil vagas em falta, em 2019, para cerca de 5 mil vagas, em 2022.

Que medidas contribuíram para esta evolução, tanto relativamente ao aumento de vagas disponíveis, quanto à redução do número de pessoas encarceradas?

MA: Em relação à população carcerária em si, que antes totalizava cerca de 30.000 presos, empreendemos um esforço considerável na revisão dos processos penais. Muitos presos estavam retidos por questões processuais, e sem apoio jurídico do Estado estavam dependentes de advogados a serviço das facções, mantendo os detentos sob seu controle.

Como trouxemos os presos do interior para capital, montamos um corpo jurídico dentro das unidades prisionais, realizando revisões processuais e encaminhando os casos para a Defensoria Pública. Além disso, ampliamos a utilização de videoconferências para agilizar o processo de apresentação dos presos à Justiça. Desde 2019 ultrapassamos as 125.000 revisões processuais realizadas.

Como resultado, antes da pandemia, conseguimos reduzir a população carcerária de 30.000 para 22.000 presos, o que representou uma diminuição significativa de mais de um terço.

Quando eu cheguei aqui tínhamos 16.000 presos provisórios, ou seja, mais de 50% da população carcerária. Existiam pessoas há mais de cinco anos sem seguimento na sua vida processual. Uma parte considerável dessas reduções foi alcançada graças ao trabalho conjunto com o Judiciário, que realizou mutirões carcerários para definir o status dos presos provisórios, permitindo que muitos deles fossem liberados ou encaminhados para o regime semiaberto quando condenados.

Além disso, nós ampliamos o sistema em mais ou menos 6000 vagas. Fizemos isso aproveitando ao máximo o espaço disponível nas celas, atendendo a todo o regramento da construção penitenciária, em vez de aumentar a estrutura.
Aumentamos o número de policiais para melhorar o atendimento aos detentos e proporcionar melhores condições de trabalho e segurança para os profissionais. Dessa forma, conseguimos criar uma dinâmica mais eficiente, reduzindo custos e proporcionando uma melhor qualidade de vida aos presos.

Atualmente, aguardamos a realização de concursos para aumentar nosso efetivo e continuar aperfeiçoando nosso sistema.

A administração penitenciária investiu fortemente na multiplicação das salas de videoconferência utilizadas para facilitar os processos judiciais.

Outro foco da sua liderança tem sido a aposta nas áreas de educação, capacitação e trabalho dos indivíduos privados de liberdade. Poderia falar sobre alguns desses avanços?

MA: Desde o início, nos empenhamos em aprimorar o acesso à educação dentro das unidades prisionais. Aumentamos substancialmente o número de presos matriculados em salas de aula, passando de 1000 para 6000. Além disso, muitos dos presos não possuíam qualquer capacitação profissional, o que os deixava em desvantagem quando retornavam à sociedade. Optamos por capacitar os detentos em áreas como construção civil, serralharia, e mecânica, entre outras, seguindo o padrão de qualidade do SENAI, uma instituição de ensino respeitada no Brasil.

Então demos o passo seguinte. Se já estamos investindo nos recursos necessários, vamos construir alguma coisa com essa pessoa. E o dinheiro que eu ia gastar só para qualificação do preso, investimos em construção e reforma de infraestrutura prisional, que vai ser usado pelo próprio interno. Para contextualizar, quando assumimos o cargo, encontramos unidades em estado precário, algumas sem estrutura adequada para educação ou capacitação profissional. 

Em algumas instalações, não havia sequer salas de aula. Lidamos com a necessidade de criar novos espaços para promover educação e formação profissional. Até o momento, certificamos mais de 23.000 presos em diversas habilidades, incluindo serralheria, pintura, encanamento, gesseiro, e muito mais.

Entendemos que não se trata apenas de reduzir penas, mas de transformar vidas. O Brasil enfrenta um desafio crítico em relação à educação, e estamos atacando essa questão diretamente, eliminando o analfabetismo dentro do sistema prisional. Por meio do programa ENCCEJA, um programa federal de ensino para jovens e adultos, estamos oferecendo a oportunidade de obter certificados educacionais a milhares de presos. Além disso, temos programas como o “Livro Aberto”, que incentivam a leitura. Temos  atualmente mais de 15.000 internos lendo no projecto, um passo importante na educação e ressocialização dos detentos.

Eu não acredito em ações micro. Quando eu cheguei aqui existiam muitos projetos com poucas pessoas beneficiando deles. Eu decidi fazer poucos projetos, mas incluir todos nesse projeto, com foco na educação, capacitação e trabalho.

Temos a responsabilidade de trabalhar não apenas com os presos, mas também com suas famílias. Muitas vezes, porque perdem o seu único meio de sustento, um membro da família toma o lugar do detento no crime, especialmente no caso do tráfico de drogas.
Agora, a família pode trazer os materiais durante as visitas, e os detentos fabricam o artesanato, devolvendo-o à família na visita seguinte. Isso permite fortalecer os laços familiares ao mesmo tempo que obtêm uma fonte de renda para a família.
Estamos fornecendo capacitação para esses familiares, ajudando-os a adquirir novas habilidades e, assim, melhorar suas condições de vida. Essa abordagem tem um impacto positivo não apenas na vida dos detentos, mas também em suas famílias e comunidades.

A taxa de reincidência no Ceará caiu para 23%, o que demonstra o sucesso dessas iniciativas. No entanto, temos o desafio de combater a reincidência nos primeiros 90 dias após a libertação, quando muitos detentos recaem no crime em busca de recursos.

Em resumo, nosso plano de ação não se restringe à Lei de Execuções Penais; é um plano abrangente de segurança pública. Nosso objetivo é capacitar, educar e transformar, fornecendo oportunidades para que os detentos construam uma vida melhor e contribuam positivamente para a sociedade. É uma mudança de paradigma, passando de uma “escola do crime” para uma “escola do Estado”. Essa transformação não é apenas uma responsabilidade, mas também um compromisso fundamental do Estado. Buscamos não apenas cumprir a lei, mas também melhorar a vida das pessoas e a segurança pública em geral.

Embora tenhamos feito avanços significativos, reconhecemos que o sistema penitenciário do Ceará ainda tem um longo caminho a percorrer para alcançar o ideal. Nossa meta é que todos os presos tenham acesso à educação e estejam envolvidos em atividades produtivas.

Qual é na sua perspetiva o papel do agente penitenciário na reabilitação e ressocialização?

MA: Primeiramente, é fundamental desmistificar a ideia de que o agente penitenciário é apenas um carcereiro encarregado de abrir e fechar cadeados. Isso gera resistência e preconceito dentro da própria polícia penal, o que é prejudicial.

É essencial capacitar o policial penal, mas, mais importante ainda, é transformar a cultura em torno de sua função e mostrar sua relevância no processo de reabilitação. Isso inclui valorizá-los através de salários adequados e recursos de trabalho apropriados.

Para melhorar a segurança, investimos em tecnologia, como câmeras corporais (bodycams), para garantir a transparência de nossas ações. Isso ajuda a combater a corrupção, intimidação e descredibilização do trabalho dos agentes. As bodycams fornecem evidências claras das situações enfrentadas pelos agentes, incluindo a avaliação do risco e o uso proporcional da força. A transparência também se estende à fiscalização de todas as operações dentro das unidades prisionais, desde alimentação até segurança e rotinas.

Além disso, implementamos um sistema de apoio psicológico para os agentes, reconhecendo que a saúde mental é uma preocupação significativa. Isso envolveu a contratação de psicólogos e a disponibilização de atendimento psicológico frequente, inclusive com a possibilidade de consulta com psicólogos de outras unidades para garantir privacidade e acolhimento.

Também desenvolvemos programas de educação financeira e academias de ginástica nas unidades para melhorar a qualidade de vida dos agentes.

No entanto, sabemos que essas mudanças levam tempo e não podem ser realizadas da noite para o dia. Temos o compromisso de garantir a valorização dos agentes penitenciários, apesar dos desafios e ataques que enfrentamos. Nosso objetivo é manter uma credibilidade sólida e combater quaisquer desvios de conduta, sempre atuando dentro dos limites da lei.

Mauro Albuquerque

Secretário da Administração Penitenciária e Ressocialização, Estado do Ceará, Brasil

Mauro Albuquerque é especialista em segurança pública e gestão penitenciária. Ocupa o cargo de Secretário da Administração Penitenciária e Ressocialização do Estado do Ceará desde 2019. Tendo iniciado a sua carreira como Polícia Militar em 1987, ingressou na Polícia Civil do Distrito Federal (DF) alguns anos depois. Ele fundou a Diretoria Penitenciária de Operações Especiais do Distrito Federal, de que foi diretor entre 2000 e 2015. Também foi fundador e coordenador da Força de Intervenção Penitenciária Integrada que realizou intervenções em prisões do Ceará em 2016. Em 2017-2018 foi Secretário de Justiça e Cidadania do Estado do Rio Grande do Norte.

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