A Segurança Pública Baseada em Evidências pode ajudar a América Latina a vencer o Crime Organizado

Artigo

Alberto Kopittke

 A América Latina vive hoje o seu mais longo período em que a grande maioria dos seus países vive sob regimes democráticos, onde grande parte dos conflitos políticos armados se encerraram e, apesar da forte cultura militarista e do populismo autoritário, as forças armadas dão suporte a transições pacífico de governo entre diferentes grupos ideológicos. Embora a pobreza tenha crescido durante a pandemia e a miséria, o desemprego e o racismo sejam problemas estruturais de grande escala, grande parte dos países viveu duas décadas de crescimento econômico e ampliação dos direitos sociais.
 
No entanto, um grande problema assola praticamente toda a região, há mais de 50 anos: uma terrível epidemia de violência que já consumiu a vida de milhões de latino americanos, em especial jovens pobres e negros. Apesar de relevantes diferenças locais, o motor dessa violência são grupos organizados em torno da venda de drogas e de muitos outros mercados ilegais.
 
De pequenos grupos que dominavam bairros pobres, esses grupos foram se transformando em mega corporações criminais, com centenas ou milhares de membros afilhados e que no seu processo de expansão espalham sangue, cada vez mais bem armados e estruturados.
 
Os Estados nacionais por outro lado em geral aplicaram receitas semelhantes, fortes em sua força operacional e pontual, mas fracas em termos de fortalecimento de suas capacidades estratégicas para enfrentar esse tipo de criminalidade.
 
Tanto governos de direita quanto de esquerda, por caminhos diferentes geralmente vem chegando ao mesmo lugar: a utilização cada vez maior de uma doutrina militarista de combate, seja por polícias civis ou militares ou diretamente pelas próprias forças armadas, resultando em abusos de uso da força e alta letalidade policial contra grupos socialmente vulneráveis. Ao mesmo tempo tais soluções vão se tornando uma doutrina ideológica, que apresenta os direitos humanos como barreiras protetoras de criminosos e constrói uma grande base de apoio para ações cada vez maior extremas (mesmo que elas já passem décadas sem apresentar resultados positivos).
 

Em outra dimensão, o Sistema Prisional de grande parte do continente, com sua estrutura muito aquém das necessidades básicas de dignidade e completamente superlotado, tornou-se, em muitos países da região, o próprio Quartel General das organizações criminais. A falta de separação adequada entre indivíduos de baixo e alto risco e de qualquer tipo de tratamento penal faz com que jovens que entraram nas prisões em razão de pequenos crimes, saiam com um perfil criminal mais agravado e com grandes “dívidas” a serem pagas nas ruas.

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A falta de controle sobre o crime organizado dentro do sistema prisional faz com que as prisões se tornem “escritórios” de trabalho, onde os grupos formam alianças, planejem ataques e realizem crimes digitais massivos contra a população, passando a comandar as ruas de dentro dos muros, sob a proteção do Estado.

Infelizmente nenhuma avaliação séria é capaz de vislumbrar no horizonte sinais de que seja possível reduzir a demanda por drogas ou então que alguma política global seja capaz de produzir um impacto substantivo na dinâmica econômica dessas organizações.
 
No entanto, apesar de uma situação extremamente difícil, algumas iniciativas muito relevantes no continente, vêm mostrando que é possível reduzir um dos efeitos colaterais mais graves e imediatos do fortalecimento desses grupos: a violência letal urbana.
 

A modernização das instituições policiais já demonstrou resultados positivos concretos no continente. Essa modernização não se confunde necessariamente com maior aparato tecnológico (que pode ser necessário, mas nunca um fim em si mesmo), mas maior capacidade institucional em áreas como: análise criminal e gestão integrada interinstitucional1, controle interno, inteligência, combate a lavagem de dinheiro, investigação de homicídios, perícia e controle de armas. 

Além disso, a implementação de estratégias baseadas em evidências, com maior foco, proatividade e integração, como o policiamento orientado para a solução de problemas2, o policiamento em pontos quentes acompanhados de micro intervenções urbanas3,4,5 e a dissuasão focada6 já se demonstraram efetivas para reduzir a letalidade violenta.

Intervenções urbanas de grande escala em comunidades de periferia também tem se mostrado de grande importância para dar seguimento e sustentabilidade a ações de segurança7. Da mesma forma que programas de prevenção bem estruturados e igualmente baseados nas melhores evidências têm mostrado capacidade de proteger jovens8 e reverter trajetórias de risco9, mesmo em contextos negativos.

Mas realizar reformas estruturantes do sistema prisional também deve ser uma tarefa prioritária para aqueles governos que queiram efetivamente enfrentar a epidemia de violência. É urgente estruturar sistemas em que lideranças violentas efetivamente sejam isoldadas de seus grupos, assim como jovens possam receber um trato penal digno e um tratamento para reduzir a reincidência criminal baseado no melhor conhecimento científico.

A América Latina possui dois grandes caminhos possíveis para enfrentar o crime organizado: o caminho populista, de viés autoritário, militarista e antidireitos fundamentais, muito utilizado ao longo de todo o Século XX, o qual pode trazer resultados pontuais, mas que não se sustentam a largo prazo. Ou o caminho de um modelo de segurança pública baseado em evidências10 e protetor dos princípios fundamentais, mesmo nos momentos mais duros e difíceis.

Felizmente hoje o mundo já acumulou um vasto conhecimento sobre o que funciona e o que não funciona para reduzir a violência. Mesmo que o crime organizado traga novos desafios, introduzir essa concepção ainda precisa ser a tarefa principal daqueles que acreditam que o fortalecimento do Estado de Direito Democrático é o melhor fim e o melhor caminho para se construir sociedades com menos violência.

Referências

1 Kopittke, A. L. W., & Ramos, M. P. (2021). O que funciona e o que não funciona para reduzir homicídios no Brasil: uma revisão sistemática. Revista De Administração Pública, 55(2), 414–437. https://doi.org/10.1590/0034-761220190168

2 CHAINEY, Spencer P.; SERRANO-BERTHET, Rodrigo; VENERI, Federico. The impact of a hot spot policing programme in Montevideo, Uruguay: an evaluation using a quasi-experimental difference-in-difference negative binomial approach. Police Practice and Research, v. 22, n. 5, p. 1541-1556, 2021

3 COLLAZOS, David et al. Hot spots policing in a high-crime environment: An experimental evaluation in Medellin. Journal of Experimental Criminology, v. 17, n. 3, p. 473-506, 2021.

4 BLATTMAN, Christopher et al. Place-Based Interventions at Scale: The Direct and Spillover Effects of Policing and City Services on Crime. Journal of the European Economic Association, v. 19, n. 4, p. 2022-2051, 2021

5 Chainey, Spencer & Estévez-Soto, Patricio & Pezzuchi, Gastón & Serrano Berthet, Rodrigo (2022). An evaluation of a hot spot policing programme in four Argentinian cities. The Police Journal: Theory, Practice and Principles. 96. 0032258X2210790. 10.1177/0032258X221079019.

6 Michelle Degli Esposti; Carolina V.N. Coll; Eduardo Viegas da Silva; Doriam Borges; Emiliano Rojido; Alisson Gomes dos Santos et AL. Effects of the Pelotas (Brazil) Peace Pact on violence and crime: a synthetic control analysis. The Lancet Regional Health Americas.  VOLUME 19, 100447, MARCH 2023.

7 CERDA, M. et al. Reducing Violence by Transforming Neighborhoods: A Natural Experiment in Medellin, Colombia. American Journal of Epidemiology, v. 175, n. 10, p. 1045-1053, 2012. DOI: 10.1093/aje/kwr428.

8 RAMOS, C.; NIETO, A.M.; CHAUX, E. Aulas en Paz: Resultados preliminares de un programa multi-componente. Revista Interamericana de Educación para la Democracia, v. 1, p. 36-56, 2007.

9 FUNDACIÓN PAZ CIUDADANA. Impact and cost-benefit evaluation of drug treatment courts in Chile. Presentation of results May 2018.

10 Kopittke, Alberto. Manual de Segurança Pública Baseada em Evidências: o que funciona e o que não funciona para prevenir a violência. Conhecer, 2023.

Alberto Kopittke, PhD, é Diretor Executivo do Instituto Cidade Segura e consultor externo em Segurança Cidadã do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). É doutor em Políticas Públicas, mestre em Ciências Criminais, graduado em Direito e em Policiamento Baseado em Evidências. Possui experiência em cargos de assessoria governamental e coordenação de iniciativas em nível nacional no Brasil, inclusive como Secretário Municipal de Segurança Pública de Canoas/RS. Trabalhou como consultor em diversos projetos bem sucedidos de redução da violência, formulando Planos de Segurança Pública e Prevenção da Violência baseados em evidências.

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