Emiliano Blanco Argentina prisons

Argentina: Melhorando o sistema prisional através de formação dos funcionários da linha de frente

// Entrevista: Emiliano Blanco

Diretor Nacional do Serviço Penitenciário Federal da Argentina

JT: Quando assumiu o cargo sua principal preocupação/objetivo era a segurança pública, a qual queria alcançar através da redução da reincidência.

Qual é o a situação do sistema penitenciário argentino?

EB: Na América Latina, trabalhamos mais com uma lógica de reintegração social, o que significa que isto se estabelece a partir de uma visão normativa: todos, sob um determinado tratamento, alcançam uma melhor readaptação, pesando, sobretudo, variáveis que priorizam o trabalho e a educação.

Instalamos o trabalho com evidências empíricas, e o que temos feito é desenvolver e aplicar um esquema de risco em termos de redução da reincidência. Trabalhamos as diretrizes do ponto de vista criminológico, com dois objetivos claros de gestão: sendo um deles a segurança pública e outro a redução da reincidência.

O primeiro passo que demos foi o desenvolvimento do nosso próprio sistema inicial de classificação de riscos. Ou seja, trabalhamos com nossa equipe para definir as variáveis estáticas (histórico criminal, motivos criminais, gravidade desses crimes etc.) e dinâmicas de todos os presos, em um contexto em que este tipo de informação sobre as variáveis estáticas dos detentos não existia, muito menos as dinâmicas.

Foi realizada uma pesquisa criminológica na qual todos os presos alojados no sistema foram entrevistados para definir sua classificação por risco. Isso nos levou a aumentar a necessidade de recategorizar os estabelecimentos penitenciários com uma perspectiva de proteção e segurança, ou seja: prevenção de fugas, de suicídios e com foco no potencial dos conflitos.

Também enfrentamos paralelamente um levantamento de todas as questões de segurança processual, dinâmica e física, e reavaliamos os conceitos de categorização. Agora, estamos na fase de redesignação de cada estabelecimento de acordo com essa classificação, o que implica no realojamento e desenvolvimento de programas de tratamento específicos – como por exemplo: programas para agressores sexuais ou assassinos.

Da mesma forma, estão sendo desenvolvidos diversos programas de abordagem para grupos com necessidades especiais, (como mães com filhos,  LGBTQIA+, idosos, jovens adultos, entre outros.), de acordo com suas necessidades e riscos.

Quais são os principais desafios enfrentados pelo sistema prisional argentino no momento?

EB: Como qualquer sistema prisional da América Latina – e eu diria em todo o mundo, mas sobretudo na América Latina – não estamos alheios a fatores endógenos e exógenos, como eu sempre digo, que são os que definem a agenda. Gerenciar 60% dos réus é um desafio porque leva à predominância de uma lógica de mera custódia. Na perspectiva do preso, é muito difícil trabalhar no sentido da integração em busca da redução da reincidência, quando a sua expectativa é ter sucesso em seu julgamento e o tempo médio do processo é de dois anos.

Obviamente, a superlotação é algo que estabelece a rotina do dia a dia. Hoje temos uma taxa de ocupação de 99%, o que implica trabalhar sem um coeficiente funcional ideal para reduzir a violência e os conflitos. Infelizmente essas questões não dependem estritamente das administrações prisionais, acredito que nosso papel, neste momento, se esgota propondo e acompanhando reformas dos sistemas de justiça criminal, seja em termos de medidas alternativas ou trabalhando integralmente com o judiciário através da implementação de medidas que não são de custódia.

Tais medidas são sentenças que se baseiam na comunidade, as quais, mesmo em termos acadêmicos, são mais eficazes na redução da reincidência. Elas existem ainda em um estado inicial, mas estamos dando os primeiros passos.

A taxa de encarceramento está crescendo e isso é um problema para todas as administrações. Mais uma vez, isto sempre envolve as administrações prisionais, define sua agenda, mas, em última análise, não são os desafios concretos ou pontuais que o sistema prisional tem em si.

Temos que começar a trabalhar com resultados, no que diz respeito a medir a eficiência de nossos programas a partir dos pontos criminogênicos que identificamos, sejam riscos ou necessidades. Também devemos começar a trabalhar articuladamente para reduzir a reincidência real.

Utilizamos um conceito puramente normativo na medição da reincidência, ou seja, a declaração judicial de reincidência, na qual a porcentagem tende a ser menor do que a realidade. É por isso que optamos por trabalhar com um conceito de repetição, considerando “reiterativo” quem for condenado e depois processado, ou duas vezes processado. Em suma, é a medida mais real que o sistema tem e o que nos permite ver os resultados que a sociedade também exige de nós. Além de, claro, evitar fugas e reduzir a violência.

JT: No contexto prisional sul-americano, o sistema argentino é talvez um dos que está menos superlotado, embora esteja funcionando no limite, com infraestruturas obsoletas, déficits em vários níveis e até mesmo, no qual foram encontrados casos de tortura (fonte: El País, “Prisões argentinas, no limite”, 5 de outubro de 2016).

Como comenta esta realidade?

EB: A superlotação ou trabalhar no limite, é um fator muito complicador. Dificulta a classificação dos presos, a boa alocação de programas de tratamento e também o controle de outras questões, tarefas que compõem uma boa gestão.

Na Argentina temos vários órgãos de controle sobre tortura ou condições de habitabilidade de nossos estabelecimentos: há a Procuradoria Penitenciária, o Ministério Público, a Defensoria Oficial, cada um dos juízes e muitas ONGs. Então, se há algo que temos é controle. Eu diria que temos pelo menos treze órgãos de controle e um órgão de gestão. Eles têm livre acesso às unidades, trabalham em coordenação em várias das recomendações que formulam e, claro, qualquer irregularidade detectada é investigada judicialmente.

No que diz respeito ao Serviço Penitenciário, trabalhamos com uma lógica de monitoramento interno e de prevenção. Existem duas áreas específicas para atender casos individuais, o Serviço de Monitoramento e a Divisão de Assuntos Internos, onde há investigações independentes e se houver alguma irregularidade, medidas administrativas correspondentes são tomadas em cada caso, inclusive separando os agentes envolvidos da instituição.

Por outro lado, temos uma área interna para a promoção dos direitos humanos, que não só capacita os funcionários nesse sentido, mas também responde às reclamações feitas através de uma linha direta gratuita para os detentos ou suas famílias.

Acreditamos que é importante trabalhar com os órgãos de controle a nível local, e mesmo com a comunidade internacional, na definição de quais são as deficiências do sistema, tanto na infraestrutura, na formação de agentes e em certas rotinas que, infelizmente, em diferentes presídios ou prisões, tendem a naturalizar-se. A solução está na formação, comunicação eficaz e aplicação de protocolos objetivos simples; e a partir daí, começa a mudar, me parece, a possibilidade de que surjam situações devido às deficiências do sistema.

O mesmo vale para a corrupção. Se alguém pensa em corrupção direta, é muito mais fácil identificar. Agora, nos sistemas de administração prisional, a figura omissa, muitas vezes, é a que leva à ocorrência dessas situações que podem configurar atos de corrupção. Temos trabalhado com mapas de risco de corrupção, tanto em unidades quanto com órgãos e institutos. Criamos um serviço específico anticorrupção que trabalha na prevenção transversal de situações que possam levar à promoção de atos de corrupção.

 

Quais ações concretas estão sendo tomadas e implementadas no sistema argentino sob sua liderança? E quais são os objetivos prioritários no momento?

EB: Estamos enfrentando uma forte política de bem-estar dos funcionários; pretendemos ter salas exclusivas para prestar assistência em cada um dos estabelecimentos prisionais. Detectamos muitos casos de estresse no trabalho, burnout e temos equipes específicas trabalhando neste assunto.

Outra questão são os salários. É frequente a comparação dos salários entre os agentes penitenciários e os policiais. Temos feito grandes progressos nesse sentido, dando valor e segurança jurídica à carreira penitenciária.

E então, há algo que tem dado muitos resultados, na minha opinião, que são os diferentes protocolos: de requisição, visitas e todos os protocolos que têm efeito direto no dia a dia da prisão. Trabalhamos na geração de documentos que são realmente úteis para a prática prisional. É muito comum em administrações ou mesmo em cargos gerenciais gerar instrumentos que podem ser muito bons no quadro teórico, mas que são muito difíceis de aplicar. Nosso objetivo tem sido reverter essa lógica, buscando gerar protocolos que sejam objetivos e simples.

Os protocolos são elaborados por aqueles que trabalham na ponta todos os dias com base nas diretrizes gerais dadas pela Direção Nacional. Me parece que esta é uma boa prática por duas razões: primeiro porque gera a escuta ativa e real de quem está na linha de frente do sistema, e segundo para que as mensagens ou as diretrizes cheguem muito mais rápido.

O Serviço é uma grande estrutura verticalmente organizada e isso significa que, muitas vezes, a comunicação não tem a eficácia desejada, da Direção Nacional aos agentes e vice-versa. Melhorar a comunicação interna nos permite ter um contato mais real com o que está acontecendo, além de possibilitar que as questões definitivas tomem forma, que boas práticas e ideias para melhorar o sistema surjam da própria equipe e possam ser implementadas.

Temos uma taxa de ocupação de 99%, trabalhamos sem um coeficiente funcional ideal para reduzir a violência e os conflitos.

Quais são os principais sucessos que gostaria de destacar?

EB: No nível subjetivo, me parece que o mais notável é que eu vejo um impulso próprio, na equipe, de trabalhar com um determinado esquema: há um verdadeiro empoderamento da equipe. Receber constantemente propostas da equipe na mesma linha de pensamento, de trabalhar com programas criminológicos, evidências empíricas e assim por diante, realmente me parece que é uma conquista muito importante. As administrações prisionais tendem a trabalhar de forma setorizada, em grupos, e agora há muita comunicação entre as diferentes áreas e isso gera um resultado melhor.

Em termos de resultados objetivos, as fugas diminuíram, não tivemos nenhuma fuga no sistema federal nos últimos anos. Apesar de ter a maior taxa de encarceramento da história do Serviço Penitenciário Federal, tivemos a menor taxa de mortalidade. Estes, na minha opinião, são dois indicadores fundamentais.

Por fim, também temos avanços significativos na geração de bases empíricas e estatísticas: anteriormente, critérios subjetivos eram frequentemente utilizados para a formulação de políticas, mas ter bases estatísticas e de informação é fundamental.

JT: Na Argentina, mais de 50% das pessoas privadas de liberdade estão em prisão provisória. Sabemos que a questão das alternativas penais não está sob a direção do sistema prisional, mas:

Há algum tipo de influência? Estão realizando algum trabalho conjunto fazer visando avançar no sistema de medidas baseadas na comunidade ou é algo a que o sistema penitenciário está alheio?

EB: Organicamente, o Serviço Penitenciário Federal depende da Subsecretaria de Assuntos Penitenciários, que, por sua vez, depende do Diretório Nacional de Readaptação Social. No ano passado, o Ministro da Justiça emitiu uma resolução específica para o trabalho que propôs com tornozeleiras eletrônicas (monitoramento eletrônico), e que é um trabalho feito de forma articulada, visando trabalhar com grupos de vulnerabilidade, ou seja: mulheres com filhos, pessoas acima de 70 anos, do grupo LGBTQIA+, etc.

Então, com certos grupos que obviamente têm necessidades especiais e que a prisão pode tornar ainda mais vulnerável, geralmente há esse tipo de prioridades. Essa é a oferta que o Poder Executivo tem. O Serviço tem trabalhado de forma estruturada e trabalha constantemente com a Subsecretaria e a Diretoria de Readaptação Social.

Ainda são os juízes, evidentemente, que decidem em um caso específico se aplicam ou não a prisão domiciliar com monitoramento eletrônico, inclusive como alternativa à prisão provisória. Cada vez mais são as jurisdições – sendo um sistema federal e provincial – que consultam sobre o funcionamento da tornozeleira eletrônica, a qual é uma ferramenta interessante que o Judiciário está começando a ver com bons olhos.

Cada vez mais são as jurisdições que consultam sobre o funcionamento da tornozeleira eletrônica... Na Argentina é uma ferramenta interessante que o Judiciário está começando a ver com bons olhos.

JT: O sistema prisional da Inglaterra e do País de Gales é uma referência para a Argentina. Sabemos que muitas das ideias que foram estabelecidas em seu país, e que são paradigmas do penitencialismo , foram inspiradas e adaptadas do sistema inglês.

O Sr. poderia nos dizer, por favor, e um pouco mais detalhadamente, quem são, o que fazem e que papel vêm desempenhando as entidades e especialistas estrangeiros que ajudam e assessoram o Serviço Penitenciário Federal da Argentina?

EB: Na América Latina e na Argentina, a corrente da Criminologia Crítica está bastante enraizada, baseada na velha ideia de Martinson de que “nada funciona” (nothing works), o que levou a uma discussão muito normativa de todo o trabalho criminológico e do que acontece na prisão.

O uso de evidências empíricas na formulação de políticas mostrou que funciona melhor do que qualquer outra lógica. Tomamos como modelo teórico, a corrente conhecida como “O que funciona” (“What Works”), cujo foco em resultados empíricos nos permite adaptá-lo à nossa realidade, em muitos casos a partir de nossa própria pesquisa.

Em seguida, outra referência importante é o modelo “Risco – Necessidade – Responsividade”, de Andrews e Bonta, do Canadá. Talvez o sistema de classificação inicial, nos Estados Unidos, Inglaterra e Canadá, ou nos países nórdicos da Europa, esteja em vigor há 30 ou 40 anos, e estamos apenas dando nossos primeiros passos.

E, sobretudo, trabalhar, com evidências empíricas em pesquisas criminológicas, estudar o próprio sistema e que as decisões tomadas pela administração penitenciária – ou no meu caso como tomador de decisões – reduzem o risco de arbitrariedade e se baseiam em pontos de vista criminológicos.

Sabemos que nas administrações prisionais ao redor do mundo os recursos são escassos, os fundos são insuficientes, as necessidades são muitas e a responsabilidade que temos por cada um dos detentos é muito alta. Bem, então temos que tomar as decisões mais eficientes e eficazes. Parece-me que não se pode trabalhar de outra forma. Ou seja, do ponto de vista global, como adotamos um quadro de criminologia aplicada.

Pontualmente, temos trabalhado com diferentes sistemas, como o Canadá e especialmente com a Inglaterra. Do modelo inglês, o que sempre gerou maior interesse foram os sistemas de classificação e gestão; agora na Inglaterra eles estão fazendo progressos em certas reformas. Especificamente, também estamos trabalhando com a Inglaterra em diretrizes anticorrupção.

Também estamos trocando experiências sobre pesquisa de desempenho moral e recebendo colaboração para medir o verdadeiro desempenho moral e, a partir disso, gerar políticas eficazes de redução da violência e melhorar o trabalho diário dos funcionários.

O fundamental é pegar as melhores práticas desses sistemas com um histórico bem-sucedido e evidências empíricas que os apoiem e as aplicar em nosso sistema, considerando as características locais. Ou seja, aplicar as soluções para as administrações prisionais, mas adaptá-las à cultura local, que é alcançada por meio de pesquisa.

Isso também se aplica ao projeto dos próprios estabelecimentos prisionais. Um dos problemas aqui na Argentina é que os dois últimos grandes complexos prisionais construídos foram baseados nos modelos norte-americanos e espanhóis.

No entanto, a gestão deve levar em conta as características do sistema local, e a infraestrutura que temos gera algumas dificuldades para realizar isso. Nós, por exemplo, temos muitas visitas e contatos. Todos os presos têm amigos, familiares e são visitantes de contato, o que, em comparação com outros sistemas, é totalmente diferente.  O ponto de vista cultural tem que predominar no projeto de uma prisão.

Trabalhamos em nosso humilde projeto de nossa própria prisão, que esperamos que seja considerado nos próximos empreendimentos. Como resultado de ter aprofundado nossa relação com o mundo exterior, obtivemos ajuda de diferentes sistemas prisionais ao redor do mundo; ter a ajuda constante de especialistas, bem como o apoio da academia, é obviamente um prazer, mas também implica a responsabilidade de levá-la adiante com os melhores padrões possíveis.

Felizmente, geramos relações muito boas e temos apoio de diferentes sistemas: Alemanha, Noruega, Canadá. Eles até nos deram, por exemplo, outra visão sobre a abordagem psicológica no tratamento prisional. Na Argentina, a prevalece a abordagem com a psicanálise prevalece muito, enquanto os sistemas anglo-saxões trabalham mais com a cognitivo comportamental, o que me parece ser ferramentas mais específicas para o dia a dia da prisão, com resultados mensuráveis e mais rápidos.

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Emiliano Blanco é advogado, especialista em Direito Penal, diretor nacional do Serviço Penitenciário Federal da Argentina desde 2014 e também está à frente do Instituto de Criminologia.

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