Atingir a maturidade digital nas prisões: um estudo sobre a preparação digital   

Artigo

Steven Van De Steene, Bianca C. Reisdorf e Victoria Knight

As organizações governamentais são continuamente desafiadas a aumentar o ritmo, o volume e a variedade de novas tecnologias para melhorar seu funcionamento e visar uma melhor prestação de serviços.

Nossas prisões estão envolvidas nesta jornada transformadora com algumas delas mais ‘avançadas’ em termos digitais do que outras. De maneira geral, a literatura reconhece que o sucesso desta jornada depende de uma variedade de fatores dos quais a maioria não é propriamente digital.  

A maturidade digital tem origem na premissa de que as organizações precisam ser capazes de responder e se adaptar ao seu ambiente. Como as prisões são tradicionalmente ambientes pouco comunicativos, esta maturidade digital não é evidente por si mesma (Knight, Reisdorf & Van De Steene, 2023).   

Transformação digital   

Onde a ambição de mudar é rotineiramente enquadrada em torno de agendas de reforma prisional em muitas jurisdições, a jornada para adotar e integrar a tecnologia ou antecipar a mudança digital nem sempre está embutida nessas estratégias. 

Este processo de adoção e integração da tecnologia em diferentes aspectos de uma organização é chamado de transformação digital, o que, por sua vez, envolve uma mudança fundamental na maneira como uma organização opera e interage com seus beneficiários, o que pode ser um grande desafio. Trata-se de uma tarefa ambiciosa, uma vez que as prisões são organizações complexas.    

Uma concepção enganosa comum é que a transformação digital trata basicamente da implementação e do uso de tecnologias de ponta (Kane, 2017). Não é difícil encontrar exemplos onde novos sistemas ou ferramentas não alcançaram o impacto transformador pretendido ou permanecem inutilizados pelos funcionários ou outros beneficiários. O uso ou não de tecnologias modernas não dá a um serviço prisional nenhuma garantia de realizar a transformação a que eles aspiravam.

A transformação digital é um processo desafiador que não só inclui a adoção e integração da tecnologia em diferentes aspectos da organização, mas também reflete e avalia até que ponto ela pode ser usada para aumentar a segurança, a eficiência e atender aos objetivos de ressocialização e desistência [do crime]. Envolve um processo de pensamento relacionado à questão de como antecipar a mudança digital na sociedade e inclui mudanças fundamentais na forma como uma prisão funciona e interage, tanto com as pessoas dentro dela, quanto com seus interlocutores externos.  

Maturidade digital 

Enquanto a transformação digital é a própria jornada, a maturidade digital é uma medida de onde uma organização está em sua jornada e como está preparada para embarcar neste processo com sucesso. 

Em um estudo recente, analisamos a maturidade digital no contexto das prisões. Nosso projeto destacou a necessidade de adotar uma abordagem holística para compreender a maturidade digital. Muitos modelos de maturidade digital existentes são muito genéricos e não compreendem a cultura, a organização e a população penitenciária. O panorama penitenciário apresenta desafios distintos para transformação e está repleto de dilemas morais e éticos.    

DigiMacTM é um modelo de maturidade digital que desenvolvemos para entender o projeto, o processo, o fornecimento e o uso dos serviços digitais, ao mesmo tempo em que entendemos a natureza e a complexidade do cenário penitenciário e de sua população. O objetivo é ser um modelo prático para as prisões e permitir que as organizações construam suas próprias estratégias digitais e ferramentas de autoavaliação.

Devemos salientar que o projeto da ferramenta de maturidade digital surgiu como resultado de uma cuidadosa consideração das necessidades humanas e da redução de danos. A maturidade digital abrange o processo de pensamento em torno da exploração e adoção de tecnologias digitais quando apropriado, bem como a tomada de decisões em torno da definição da demarcação de seu uso e quando não é apropriado transformar processos analógicos, humanos, em digitais.    

Ou seja, não definimos maturidade digital como estando prontos para entrar na era digital a qualquer custo. Trata-se mais de prontidão e preparação para mudar e responder. Isto inclui a necessidade de uma organização ter a cultura, liderança, processos e capacidades adequadas. 

Dimensões da Maturidade Digital   

Os modelos de maturidade digital estão estruturando diferentes perspectivas e questões ou capacidades subjacentes relevantes para a compreensão da maturidade digital em categorias abrangentes, que chamamos de dimensões. Com base na literatura existente, construímos e estruturamos no modelo DigiMacTM as 5 dimensões a seguir:   

  • Foco no cliente   
  • Organização   
  • Cultura digital   
  • Capacidades tecnológicas   
  • Métricas e avaliação   
Foco no cliente

Já argumentamos antes que a inovação tecnológica e a verdadeira mudança transformadora nas prisões deveriam ocorrer dentro de um amplo ecossistema, no qual as pessoas encarceradas e o pessoal prisional desempenham um papel significativo (Knight & Van De Steene, 2017). Colocar os desejos e as necessidades dos clientes ou usuários, dependendo do contexto, no centro de uma estratégia e desenvolvimento digital é amplamente aceito como uma chave para o sucesso.  

Para os serviços prisionais, entretanto, a aceitação e a capacidade de incorporar todas as partes interessadas, incluindo indivíduos encarcerados, em seus projetos digitais não é evidente por si só. Como o impacto da tecnologia digital tem permitido muitas oportunidades para melhorar a comunicação, a participação e a concepção e prestação de serviços centrados no consumidor ou no cidadão na sociedade, a capacidade e o engajamento para antecipar-se e, quando relevante, adotar isto no serviço penitenciário, é um indicador importante da maturidade digital.  

Organização 

A capacidade de moldar as tecnologias digitais tanto para servir as pessoas encarceradas diretamente (estender e melhorar a prestação de serviços a elas) ou indiretamente (usar a tecnologia para melhorar todo o ambiente onde vivem as pessoas encarceradas) depende de como a organização incorporou esta ambição em sua estratégia e a traduziu em sua estrutura e processos internos.   

DigiMacTM inclui não apenas como um serviço prisional é organizado internamente, mas também como ele é apoiado para impulsionar a mudança digital a partir do sistema judicial e governamental mais amplo e da sociedade.  

A transformação digital é uma combinação de processos relacionados à integração e adaptação, que acontece em um ecossistema social mais amplo: algumas organizações estão ativamente buscando soluções criativas para necessidades específicas e estão bem estruturadas para facilitar este processo de pesquisa e desenvolvimento. Entretanto, a disposição da organização para incorporar essas novas ideias e desenvolvimentos nas operações cotidianas é mais uma capacidade distinta que independe se as ideias são desenvolvidas internamente ou se são desenvolvidas por fora.    

Usando a dimensão organizacional, podemos compreender melhor os diferentes elementos que sustentam tanto a ambição de incorporar o digital na estratégia, quanto a capacidade organizacional para traduzir isto em prática operacional. A liderança também é fundamental para esta dimensão, pois nos diz algo sobre gestão de mudanças, reestruturação de processos, melhoria das habilidades de gestão e mudança da cultura organizacional (Aslanova & Kulichkina, 2020). 

Cultura Digital

Abertura e disposição para mudar não é apenas uma questão de organização, mas também de como as pessoas estão equipadas e apoiadas para conduzir essa mudança. Há uma importante dimensão cultural na preparação organizacional que se refere à abordagem de uma organização à mudança impulsionada digitalmente, à inovação e à forma como ela capacita os funcionários com tecnologia digital. Esta dimensão cultural está fortemente focada nas pessoas, e como elas estão equipadas, mas também em como esta cultura é ativamente apoiada e liderada.    

Um aspecto particularmente interessante da gestão desta cultura no contexto penitenciário é a atitude em relação aos riscos. Kane (2017) postula que superar a aversão ao risco é talvez a característica mais importante das culturas em maturação digital.  

As prisões são tradicionalmente conhecidas como lugares onde as mudanças, especialmente relacionadas à comunicação e às novas tecnologias, são vistas principalmente como um risco ou ameaça à ordem e à disciplina.

Este contexto cria um desafio particular relacionado à dimensão cultural, onde as motivações e os motores da mudança digital dependem de atitudes em relação à segurança e ao risco. Sua abertura às mudanças nestas áreas precisa de uma mudança cultural. Isto depende, naturalmente, da capacidade de compreender o impacto total da tecnologia sobre uma organização e nas pessoas que dela fazem parte. 

Capacidades tecnológicas 

A disposição das organizações para antecipar as mudanças tecnológicas depende da disponibilidade e acessibilidade dessas tecnologias. Esta dimensão inclui uma variedade de aspectos, tais como recursos materiais, acesso a fundos para adquirir e implementar tecnologias, o conhecimento e habilidades para compreendê-las, e criar e sustentar o desempenho tecnológico.

Os investimentos em tecnologia muitas vezes são difíceis de serem feitos em ambientes penitenciários. Entretanto, embora o investimento em habilidades e tecnologia seja importante, o efeito dele e seu impacto na preparação digital de uma organização depende de como esse investimento é usado: que tipo de habilidades e tecnologia são usadas e como isso se encaixa na estratégia da organização como um todo?

Isto está relacionado ao ponto de partida onde a transformação digital bem-sucedida precisa incluir uma cuidadosa consideração sobre que tipo de tecnologia é adequado para alcançar o resultado esperado sem efeitos colaterais negativos.

A tecnologia não é algo novo nas prisões e são gastos muitos recursos em todas as jurisdições para implementar e manter os serviços digitais. No entanto, isto não significa necessariamente que a tecnologia seja utilizada com sucesso para atingir a estratégia da organização.

No caso das prisões, isto poderia significar melhores programas de ressocialização e um melhor reassentamento e não apenas uma maior eficiência administrativa ou medidas de segurança melhores. Para se ter uma percepção real dos resultados e efeitos da jornada digital de uma organização, é necessário um acompanhamento e avaliação cuidadosos, o que nos leva à quinta dimensão de nosso modelo: métrica e avaliação.   

Métricas e Avaliação   

O modelo DigiMacTM tenta entender como a tomada de decisões é orientada por dados e como a avaliação de projetos digitais pode impulsionar trajetórias de transformação digital. Os dados ajudam as organizações a avaliar tanto a capacidade estratégica quanto operacional da organização. É importante estabelecer a distinção entre o sucesso do processo (usando dados para avaliar os resultados diretos do uso da tecnologia e usando soluções impulsionadas por dados como motores para os processos operacionais) e ainda usar os dados gerados para a tomada de decisões e planejamento (gerando mais discernimento para apoiar o futuro estratégico da organização).    

Para ambos os objetivos, é importante não apenas compreender a disposição das organizações para usar efetivamente as capacidades de engenharia de dados – mas também a maturidade na governança de dados, o desenvolvimento de políticas e procedimentos para manter a segurança dos dados, a conformidade e também os aspectos de privacidade relacionados ao uso e propriedade dos dados.  

Graus de Maturidade Digital

Nosso estudo fornece uma supervisão útil sobre quais dimensões as jurisdições estão trabalhando e quais são as lacunas a fim de alcançar uma abordagem holística centrada no ser humano. Nossa pesquisa identificou três tipos de preparação digital.
Líderes em prontidão   

As jurisdições deste grupo tiveram notas altas em todas as cinco dimensões. Eles declararam que haviam implementado e executado estratégias intergovernamentais. Sua atividade se baseia em especialistas e usuários finais. Suas agendas têm um forte foco de ressocialização e há investimento significativo para amadurecer seu portfólio digital. Entretanto, sua atividade em torno da avaliação parece ser mais fraca em comparação com as outras dimensões. 

Progressistas em prontidão

As jurisdições deste grupo têm uma alta pontuação em duas dimensões. Elas descrevem agendas centradas no cidadão e são impulsionadas pela normalização. Há evidências de práticas de trabalho cruzado, mas elas encontram barreiras para trabalhar em colaboração ou em parceria. Há investimento, mas este é rotineiramente de pequena escala. Periodicamente, tentam reunir evidências e avaliar o progresso.

Preparadores em prontidão

As jurisdições deste grupo não pontuam alto em nenhuma das dimensões, mas pontuam médio em 3 ou 4 dimensões. Eles adotam uma abordagem estratégica, mas isto é feito de forma isolada e funciona localmente. Eles têm um forte desejo de assegurar parcerias e colaborar. Também operam em serviços prisionais que estão nervosos com a digitalização.   

 

Acreditamos que a preparação nessas diferentes dimensões descreve adequadamente o estado da maturidade digital durante as fases evolutivas da digitalização das prisões, refletindo a capacidade e a cultura deste esforço. Se os leitores quiserem saber mais sobre nossa ferramenta baseada em evidências, por favor, entre em contato conosco.    

Referências

Aslanova, I. V., & Kulichkina, A. I. (2020, May). Digital maturity: Definition and model. In 2nd International Scientific and Practical Conference “Modern Management Trends and the Digital Economy: from Regional Development to Global Economic Growth” (MTDE 2020), (pp. 443–449). Atlantis Press.

Kane, G. C. (2017). Digital maturity, not digital transformation. MIT Sloan Management Review, April 4, 2017

Knight, V., Reisdorf, B. and Van De Steene, S. (2023) Digital Maturity of Prisons: A Global Survey. DMU Library – Faculty of Health and Life Sciences – School of Applied Social Sciences

Knight, V., & Van De Steene, S. (2017). The capacity and capability of digital innovation in prisons: Towards smart prisons. Advancing Corrections, 4(8), 88–101.

Steven Van De Steene é um arquiteto empresarial e especialista em tecnologia para o sistema prisional. Trabalha como consultor na área de inovação e estratégia tecnológica para prisões e serviços de liberdade condicional. Steven não é apenas membro do Conselho Associação Internacional de Serviços Prisionais e de Correção (ICPA), mas é também o coordenador de sua Rede de Soluções Tecnológicas. Foi o Diretor de TI do Serviço Penitenciário da Bélgica até 2015

 Bianca C. Reisdorf, PhD, é professora associada no Departamento de Estudos de Comunicação da Universidade da Carolina do Norte – Charlotte, EUA. Seu trabalho concentra-se na intersecção das desigualdades, da mídia digital e da internet, com foco nas desigualdades digitais entre as populações marginalizadas. Em suas pesquisas recentes, a Dra. Reisdorf tem se concentrado no acesso à Internet em ambientes penitenciários e em como os cidadãos que retornam à sociedade, navegam por um mundo dependente da tecnologia após serem postos em liberdade.

Victoria Knight, PhD, MA, BA (Hons), é professora associada em Pesquisa para a Divisão de Justiça Comunitária e Criminal na Faculdade de Ciências da Saúde e da Vida, Universidade De Montfort. Tem expertise e experiência em pesquisa e publica trabalhos em duas áreas centrais: uso de tecnologias digitais nas prisões, e emoção e justiça criminal. Victoria é também Diretora do Centro de Pesquisa Prisional e de Liberdade Condicional e coordenadora do Grupo de Emoção e Justiça Criminal da Universidade De Montfort. 

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