Nivaldo Restivo

Desafios e oportunidades em um sistema penitenciário com mais de 200 mil presos

Entrevista

Nivaldo Restivo

Coronel, Secretário de Estado, Secretaria da Administração Penitenciária, Estado de São Paulo, Brasil

Qual é a dimensão do problema da superlotação no sistema penitenciário do Estado de São Paulo e que medidas estão sendo tomadas para lidar com esse problema?

NR: O Brasil é o terceiro país com a maior população carcerária mundial, a seguir aos Estados Unidos e à China. 

No Brasil temos aproximadamente 700 mil presos e cerca de um terço deles está no estado de São Paulo, onde temos, hoje, cerca de 213 mil pessoas encarceradas. Já as vagas são aproximadamente 150 mil. 

Assim, temos uma superlotação de cerca de 42%, apesar dos esforços na última década, em que a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) inaugurou e entregou 33 presídios, com mais de 30 mil vagas. Além disso, em dois anos, sob a minha administração, nós já entregamos sete presídios e temos outros seis em construção, que, no total, vão somar mais 10 mil vagas. 

Porém, aumentar a estrutura não é a única alternativa para resolver o problema da superpopulação carcerária. É preciso trabalhar políticas públicas que permitam que a pessoa não seja encarcerada e, se a pessoa for encarcerada, precisamos trabalhar para que não volte à prisão depois de ter saído. 

Conseguimos isso fazendo um trabalho de reintegração social. Nós temos, aqui em São Paulo, cerca de quarenta mil presos que trabalham e aproximadamente vinte e seis mil que estudam.

Até que ponto o sistema de penas e medidas alternativas alivia a pressão que está colocada sobre o sistema penitenciário? 

NR: Em São Paulo temos 86 Centrais de Penas e Medidas Alternativas, uma opção que o Poder Judiciário tem de sentenciar o infrator a prestar serviço à comunidade, entre outras penas e medidas, sem recorrer à privação de liberdade. Temos quase vinte mil pessoas nessa situação, pelo que, se não tivéssemos essas centrais, a nossa população carcerária seria muito maior.

Acima de tudo é importante que a pessoa não se torne uma frequentadora habitual do sistema penitenciário, por isso queremos oferecer dignidade e condições para trabalhar, estudar ou se aperfeiçoar profissionalmente. Desde o início do programa, contabilizam-se mais de 205 mil infratores que cumpriram pena comunitária. 

É a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) que, através da nossa Coordenadoria de Reintegração Social e Cidadania, fiscaliza o cumprimento da pena alternativa. Esta só pode ser aplicada a condenados até quatro anos de prisão e se o crime não tiver sido praticado com violência ou ameaça.

Esta Coordenadoria é também responsável por ressocializar e reintegrar o encarcerado, para que ele retorne à sociedade capaz de seguir a vida, sem reincidir. São Paulo é o único estado brasileiro que tem uma Coordenadoria inteira exclusivamente dedicada a esse fim.

Vamos exigir do privado uma prestação de serviço muito melhor do que o Estado consegue oferecer hoje, incluindo o atendimento médico, a alimentação, postos de trabalho e educação para os presos.”

Estado de São Paulo, Brasil: panorama do sistema penitenciário

 JT:  Temos conhecimento que São Paulo tem um plano para atribuir a concessão da administração de alguns presídios à iniciativa privada.

Qual o ponto de situação desse processo? E em que medida a operação compartilhada com a iniciativa privada pode ajudar a resolver o problema da superlotação? 

NR: Temos duas formas de estabelecer parceria com a iniciativa privada. Uma delas implica o Estado construir o presídio e cedê-lo para gestão privada – exceto algumas funções que são específicas do Estado, como a vigilância de muralha e o transporte dos presos. Neste momento temos dois presídios novos, terminados, e vamos lançar o edital de licitação para ver qual empresa vai fazer a gestão dessas unidades. 

A outra forma é a parceria público privada (PPP). Neste formato, a iniciativa privada constrói o presídio e depois faz a gestão. Esta forma é mais favorável porque a construção tende a ser mais rápida do quando é feita pelo Estado; além disso o Estado não faz qualquer investimento na construção, e, depois de trinta anos – que é o que prevê a nossa legislação – esse presídio passa para o Estado. 

Em ambos os modelos vamos exigir do privado uma prestação de serviço muito melhor do que o Estado consegue oferecer hoje, incluindo o atendimento médico, a alimentação, postos de trabalho e educação para os presos. 

A iniciativa privada pode ser muito importante na gestão prisional porque tem um legado sólido para oferecer em termos de redução da reincidência. Nas unidades prisionais sob concessão da iniciativa privada iremos ter aqueles presos cujo perfil é mais favorável à reintegração social.”

Nós entendemos que satisfazer essas exigências vai aumentar a ressocialização e facilitar a reintegração social dos presos. 

A iniciativa privada pode ser muito importante na gestão prisional porque tem um legado sólido para oferecer em termos de redução da reincidência. Nas unidades prisionais sob concessão da iniciativa privada iremos ter aqueles presos cujo perfil é mais favorável à reintegração social. 

Em 2019 eu fui visitar o sistema penitenciário estadunidense duas vezes e também fui a Londres conhecer presídios privatizados. Considerando essa possibilidade, e antes de fazermos a nossa modelagem, nós procuramos ver o que se pratica de melhor no mundo afora. Concluimos que esse modelo funciona muito bem tanto nos Estados Unidos como na Inglaterra, portanto esperamos também ter sucesso.

Nós vamos avançar com os dois modelos de gestão privada dos presídios. O formato em que o presídio é construído pelo Estado já está mais adiantado; o edital foi lançado em março de 2021 e o plano é que em agosto de 2021 ele já esteja em funcionamento. Do outro formato, nós já temos a modelagem e a nossa expetativa é para o segundo semestre de 2022. 

 JT:  Pouco tempo depois de ter assumido funções de Secretário, o Sr. viabilizou a transferência de líderes do Primeiro Comando da Capital (PCC) para unidades penitenciárias federais. Entre essas transferências encontra-se o líder desse grupo criminoso. 

Qual é a dimensão do problema das facções criminosas no sistema penitenciário paulista? Como a sua administração tenta limitar o poder desses grupos criminosos e até que ponto é um trabalho concertado com a administração federal?  

NR: O sistema penitenciário é dividido por perfil, pelo que temos algumas unidades que albergam os presos ligados ao crime organizado. Não temos esse tipo de presos espalhados por todo o sistema para que não cooptem outros presos. 

Quem manda no sistema penitenciário paulista é o Governo do Estado de São Paulo. Qualquer preso no sistema penitenciário paulista tem de se sujeitar às normas e à administração do Estado. O preso pode ter ascendência sobre o outro preso, que está na cadeia com ele, mas jamais ele vai ter ascendência sobre o Estado e vai negociar conosco. 

Nós não negociamos com qualquer preso e a demonstração muito clara disso é que quem se declara liderança de organização criminosa é enviado para o sistema penitenciário federal, onde fica isolado. 

Além disso, nós temos um sistema de inteligência muito atuante que viabiliza ações antecipadas nas unidades que albergam presos das facções criminosas. 

A inteligência deteta uma intenção e, antes que ela se concretize, nós tomamos providências e transferimos os envolvidos de unidade. Mesmo quando não conseguimos nos antecipar ao acontecimento, pelo menos sabemos porque está acontecendo e temos a solução apropriada. 

Esse sistema de inteligência é, principalmente, baseado em fator humano, muito do que nos chega é trazido pelos próprios presos. E também usamos tecnologias, em parceria com a Secretaria da Segurança Pública e o Ministério Público do Estado de São Paulo.

Dispomos ainda de uma outra alternativa: um presídio de Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) onde são colocados os presos que cometem faltas graves, como ameaçar uma autoridade, evidenciar um plano de fuga ou atentar contra a segurança do sistema. A internação nesse regime pode durar até 360 dias e é feita mediante autorização do juiz. 

Esse regime prevê o isolamento relativamente ao restante da população carcerária e concede apenas duas horas de banho de sol por dia, sem contato com nenhum outro preso. Se ainda assim a liderança for muito forte, nós pedimos vaga no Sistema Penitenciário Federal, onde atualmente temos sessenta presos de São Paulo.

A lei brasileira permite a renovação da colocação em prisão Federal até três anos, para segregar aqueles presos que são altamente nocivos ao sistema penitenciário de origem. 

Temos um sistema de inteligência muito atuante que viabiliza ações antecipadas nas unidades que albergam presos das facções criminosas. A inteligência deteta uma intenção e, antes que ela se concretize, nós tomamos providências e transferimos os envolvidos de unidade.”

Inmate having a teleconference call, Brazil
O programa "Conexão Familiar" permitiu que os detentos tivessem visitas virtuais nos finais de semana utilizando dispositivos de teleconferência, São Paulo, Brasil

A sua gestão da SAP tem estado empenhada em aumentar a utilização de tecnologias de comunicação virtual, nomeadamente a videoconferência. Em que consiste esse investimento em tecnologias de comunicação e quais os objetivos? Quais foram os resultados alcançados até o momento? 

NR: Quer os presos provisórios, quer os condenados que estão respondendo por outros crimes precisam apresentar-se perante o juiz para acompanhar os seus processos. Geralmente, essas apresentações presenciais em tribunal eram realizadas com escolta policial. Mas podemos fazer isso por vídeoconferência: o juiz de um lado, o preso do outro e o advogado acompanhando. 

Quando eu e a minha equipe chegamos à SAP, existiam trinta e nove equipamentos de teleaudiência instalados no sistema penitenciário. A pandemia favoreceu essa expansão porque não queríamos que o sistema judiciário parasse e para isso era preciso expandir a capacidade. 

De poucos equipamentos e um contrato antigo e caro (cada equipamento custava R$ 11.300 por mês) passamos, em abril de 2020, para uma outra ferramenta, muito mais barata, e hoje todos os presídios dispõem de teleaudiência. Temos 582 equipamentos e cada equipamento custa R$566,00 por mês. Só de contrato já economizámos 3,5 milhões de reais. 

Em 2019, a despesa para escoltar os presos para o Fórum tinha rondado os 16 milhões de reais, enquanto que, com a teleaudiência, em 2020 gastamos R$ 4,3 milhões, ou seja, economizamos quase 12 milhões de reais. E, não são só os custos que diminuem, diminui também o risco, porque o preso circulando na rua oferece risco de um resgate, de um acidente automobilístico, entre outros. 

O nosso contrato de teleaudiência prevê 685 equipamentos, todos instalados até ao final do primeiro trimestre de 2021. Esta tecnologia também resultou numa significativa diminuição da quantidade de pessoas circulando dentro do presídio. Aliás, agora também muitos advogados e oficiais de justiça utilizam a videoconferência com os presos. São muitas as vantagens. Essa tecnologia é algo irreversível, veio para ficar e nós vamos expandi-la cada vez mais. 

Agora muitos advogados e oficiais de justiça utilizam a videoconferência com os presos. Essa tecnologia é algo irreversível, veio para ficar (…)

Quais foram os principais desafios que a pandemia da COVID-19 trouxe à SAP? E, em meio às restrições resultantes da crise pandêmica, até que ponto foram implementadas medidas alternativas ao encarceramento? 

NR: No Brasil, ficamos muito preocupados, porque, no início da epidemia, tínhamos notícias do Oriente, e depois da Europa, de que seria algo devastador. Tivemos conhecimento de que no Irão soltaram presos, na Itália houve rebeliões e tumultos entre os presos… Mas nós tivemos um pouco mais de tempo para nos preparar para esse enfrentamento.

Quando a pandemia chegou ao Brasil, em 26 de fevereiro de 2020, nós já tínhamos um protocolo a ser aplicado no sistema penitenciário paulista. O nosso entendimento foi que precisávamos evitar o contato dos presos com quem estava do lado de fora, por isso, em primeiro lugar, suspendemos as visitas, a família não poderia mais entrar na prisão para visitar o preso. 

Tínhamos presos que saiam para trabalhar ou estudar que não saíram mais. Professores e assistentes religiosos deixaram também de poder entrar nos presídios. Houve um corte total para evitar contatos que pudessem espalhar o contágio e o resultado foi positivo. Ainda assim, foi e é difícil porque os funcionários entram e saem da prisão diariamente. 

Ao mesmo tempo, investimos bastante na higienização dos ambientes e também nos equipamentos de proteção individual. Nós já distribuímos mais de 3,7 milhões de máscaras dentro do sistema penitenciário. 

Essas medidas foram muito importantes. Apesar de lamentarmos cada morte, claro, o ano passado tínhamos 213 mil presos, e, entre 14.600 infectados com COVID-19, 37 faleceram, ou seja, uma taxa de letalidade inferior a 0,3%. É importante mencionar que a taxa de letalidade é de 2,9% no Estado de São Paulo e de 2,4% no Brasil inteiro.

Na verdade, morreram mais profissionais do que presos: dos nossos 35 mil funcionários penitenciários, 2.700 ficaram infetados com COVID, dos quais 42 perderam a vida, o que significa uma taxa de letalidade de 1,5%. 

Os presos estão bem protegidos e já testamos quase 70% da população prisional. Além disso, fazemos um monitoramento permanente, isolando os presos com sintomas que possam ser de COVID, fazemos o acompanhamento e, se for o caso, efetuamos o teste. Tudo isto vem sendo feito desde o início da pandemia.

Durante as limitações que instauramos por causa da pandemia, os presos puderam continuar se comunicando com os seus entes queridos por carta. Adicionalmente criamos o programa “Conexão Familiar”, porque compreendemos a importância de o preso ter contato com a família.

Na primeira fase desse programa, permitimos aos familiares comunicarem com os presos por email, os quais os funcionários penitenciários imprimiam, entregavam ao preso, que escrevia a resposta no verso. O funcionário depois scaneava a resposta e devolvia ao familiar. Foram mais de quatro milhões de mensagens trocadas. 

Depois, evoluímos para uma segunda fase desse programa dando a oportunidade aos presos de terem visitas virtuais ao fim de semana, através dos equipamentos que utilizamos para as teleaudiências.

E, em novembro de 2020, iniciamos a retomada gradual das visitas presenciais, embora limitadas a apenas duas horas por dia, com alternância de dias e de acordo com o número de matrícula do preso. Esta modalidade foi aprovada pelos Órgãos de Saúde. 

Atualmente mantemos este sistema, porém, a pandemia voltou a níveis preocupantes, por isso quando há unidades prisionais com casos de COVID as visitas presenciais são suspensas nessas unidades. Nessas situações, o restabelecimento das visitas depende da evolução durante um período de catorze dias. Logo que a pandemia esteja sob controle nessas unidades, voltam a poder receber visitas físicas.

No Brasil tivemos uma decisão do Supremo Tribunal para soltar presos do grupo de risco, e é por isso que a nossa população carcerária baixou. Só com essa medida judicial saíram mais de sete mil presos para prisão domiciliar sem monitoramento. 

Nivaldo Restivo

Coronel, Secretário de Estado, Secretaria da Administração Penitenciária, Estado de São Paulo, Brasil

Nivaldo Restivo tem o posto de Coronel, é formado pela Academia de Polícia Militar do Barro Branco e possui Mestrado e Doutorado em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da Polícia Militar. Foi chefe de gabinete do ex-Secretário de Segurança Pública. Além de ter sido Comandante-Geral da Polícia Militar (2017-2018), foi o Comandante do 1º Batalhão de Polícia de Choque (ROTA) e do Comando de Operações Especiais da Polícia Militar (COE). Ocupa o cargo de Secretário de Estado desde o início de 2019.

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