JT9 Drug Treatment Ghent

Tribunal Especializado em Casos de Drogas de Gante inspira medidas alternativas na Bélgica 

Artigo

Jorn Dangreau & Annemie Serlippens

Países em todo o mundo estão enfrentando atos criminosos e transtornos causados por usuários de drogas problemáticos. Este não é um problema que afeta apenas a Bélgica ou qualquer outro país em particular. Todos os países e sociedades do mundo são afetados.  

É óbvio que estes usuários de drogas problemáticos têm um efeito negativo em todos os aspectos de uma comunidade, o que aumenta os custos sociais. Todo sistema judicial tenta lidar – de uma forma ou de outra – com efeitos negativos causados por essas pessoas.  

Ao longo dos anos, o Departamento de Justiça da Bélgica percebeu que uma reação da polícia, do Ministério Público e dos tribunais de justiça em relação aos usuários de drogas deve ser o ultimum remedium (último recurso). Afinal, eles não são os atores apropriados para formular uma resposta a um fenômeno social como o uso de drogas.  

Além disso, devido à crescente sobrecarga do sistema de justiça criminal em geral e das prisões em particular, estes atores já não conseguem responder adequadamente. Dessa forma, são necessárias medidas alternativas de modo a encaminhar o maior número possível de usuários de drogas problemáticos à reabilitação (especializada em drogas), abordando a raiz do problema.   

O uso e o abuso de drogas não é mais simplesmente uma questão de justiça, mas uma questão social e de saúde pública.  

Em relação à criminalidade relacionada com o uso de drogas, criou-se uma crença generalizada de que enfrentando o problema subjacente das drogas, se reduziria a reincidência. A questão era: como conseguir isso dentro do sistema judicial?  

O sistema judicial se beneficia ao transcender a abordagem clássica para infratores dependentes químicos 

Na Bélgica, ficou evidente o fracasso da abordagem jurídica clássica em encontrar uma boa maneira de lidar com os casos de criminalidade cometidos por dependentes químicos.  

O mero encarceramento é uma medida provisória e cara, que não se concentra no problema subjacente da pessoa dependente química. Emitir sentenças que proporcionam ao acusado uma estrutura que impõe condições em vez do encarceramento é muito rígido e não considera a complexidade do vício.  

Quando um promotor público processava um infrator dependente de drogas, a abordagem do juiz era a mesma de qualquer outro caso: realizava-se uma audiência e aplicava-se uma sentença no mesmo dia. Neste sistema, o caso judicial é baseado no arquivo escrito. 

Quando o infrator tinha um problema com as drogas, o mais provável seria a suspensão condicional da pena. Esta decisão significava que o infrator não teria de ir para a prisão se cumprisse as condições impostas judicialmente durante um determinado período. 

No entanto, o infrator saía do tribunal e tinha de esperar pelo menos de três a quatro meses antes de ser notificado a comparecer perante o Conselho de Liberdade Condicional para discutir as condições impostas pelo tribunal. E demorava ainda mais até que o condenado fosse enviado a um estabelecimento onde receberia tratamento.  

E se o condenado não cumprisse as condições da suspensão da pena? Nesse caso, o Conselho de Liberdade Condicional tinha que informar sobre o não cumprimento do infrator e o processo seria enviado novamente ao Ministério Público. O Ministério Público, então, poderia iniciar um processo por não cumprimento por parte do infrator e solicitar ao juiz a revogação da suspensão do encarceramento.  

Por experiência, a maioria dos juízes sabe que o sistema de suspensão condicional da pena não consegue reabilitar os infratores dependentes químicos. Com essa abordagem, o sistema judiciário não cumpre seus objetivos nem os dos legisladores.  

Todo o procedimento judicial se torna um investimento enorme (promotor – juiz – conselho de liberdade condicional – promotor – juiz) sem ganho real para a sociedade. No fim das contas, o condenado não abandona o vício, e sua dependência também é o que impulsiona seu comportamento criminoso. O fracasso da abordagem judicial resultava em altas taxas de reincidência.

Reconhecer o fracasso do sistema judiciário e buscar uma estratégia melhor 

Após constatar o fracasso da abordagem judicial tradicional para lidar com criminosos dependentes químicos, os juízes autores deste artigo começaram a procurar uma estratégia melhor.  

Neste esforço, eles tomaram conhecimento dos Tribunais Especializados em Casos de Drogas (DTC, por sua sigla em inglês, Drug Treatment Courts) nos Estados Unidos e no Canadá.  

No entanto, a diferença entre a cultura jurídica europeia e a dos Estados Unidos e do Canadá tornou impossível a simples importação do sistema destes tribunais para a Bélgica.  

A visita a quatro DTCs diferentes nos Estados Unidos e no Canadá em 2007 e as experiências adquirida no local foram verdadeiramente inspiradoras para os autores. Eles descobriram que implementar um tribunal assim consistia principalmente em uma mudança de perspectiva do sistema judiciário.  

Sendo assim, aprenderam a se concentrar em “julgamentos focados em soluções” e a utilizar o sistema de justiça criminal de uma forma totalmente diferente. Como alternativa ao alto custo do encarceramento, eles perceberam que o sistema de justiça criminal poderia ser o motor para mudar o comportamento individual.  

Neste caso, é fundamental que haja supervisão judicial constante e que exista estreita cooperação entre advogados de defesa, a promotoria e os encarregados pelo tratamento. Eles entenderam que o sistema DTC obtém melhores resultados no enfrentamento da toxicodependência subjacente, o que diminui a reincidência. 

A singularidade dos DTCs reside em combinar o processo tradicional dentro do sistema de justiça criminal com a abordagem do tratamento de drogas. Os DTCs baseiam-se no princípio de desenvolver uma parceria entre o sistema de justiça criminal, os sistemas de saúde e bem-estar e seus serviços relacionados.  

Estes tribunais se apoiam no sistema de justiça criminal para introduzir infratores toxicodependentes no tratamento, em vez de depender de uma abordagem tradicional de justiça criminal. 5 O resultado foi uma combinação de tratamento e supervisão judicial. Este modelo combinado é a essência do conceito de DTC. 

Como mencionado, um simples ”copia e cola” da abordagem estadunidense ao sistema judiciário belga não era viável nem recomendável. Assim, ao transferir o modelo, os autores dessa contribuição tentaram implementar os princípios fundamentais6 dos tribunais internacionais de tratamento de drogas, respeitando o sistema jurídico e a cultura da Bélgica (e da Europa).  

Os juízes trabalharam por nove meses para chegar a um texto de consenso que abrisse caminho para um novo Tribunal Especializado em Casos de Drogas na Bélgica. Este projeto buscou cumprir a maioria dos princípios essenciais dos DTCs, desenvolvidos nos Estados Unidos e no Canadá, e também os preceitos da cultura jurídica belga.  

O processo foi realizado em conjunto com a Ordem dos Advogados, o Ministério Público, juízes e encarregados pelo tratamento de drogas, com foco em uma abordagem ascendente.  

Os desenvolvedores apresentaram o projeto do DTC ao Ministro da Justiça, que reconheceu o valor agregado do sistema e aprovou um projeto piloto no tribunal de Gante, com início em maio de 2008. 

O Tribunal Especializado em Casos de Drogas consiste em uma câmara especializada no Tribunal de Primeira Instância, que oferece ao acusado a possibilidade de corrigir seus problemas (de drogas) sob a supervisão daquele grupo.  

Nesse tribunal, o promotor público e o juiz são especializados em questões relacionadas com as drogas e cada audiência conta com a participação de um intermediário, que geralmente é um assistente social responsável por estabelecer um vínculo entre o departamento de justiça e os serviços de reabilitação (de drogas). Essa pessoa auxilia o acusado a encontrar o tipo mais adequado de reabilitação e o apoia com o encaminhamento ao ambiente de tratamento.  

Cada caso é monitorado por meio de várias audiências: uma audiência preliminar, uma audiência de orientação, uma audiência de acompanhamento e uma audiência de encerramento. O acusado é convocado para uma audiência preliminar, onde o juiz analisa se o réu está disposto a assumir seu problema de dependência de drogas. Se o acusado se recusar a reconhecer seu problema com as drogas, o caso será julgado sob o regime tradicional. Se o acusado estiver disposto a tomar uma rota alternativa, é marcada de imediato uma consulta com o intermediário presente na audiência preliminar.  

O réu e o intermediário devem desenvolver um programa de tratamento com foco no problema com as drogas e em todas as circunstâncias relevantes da vida (como trabalho, moradia, dívidas, etc.). O intermediário oferece opções de tratamento (por exemplo, ambulatorial ou internação em um centro) e, juntos, elaboram um plano de tratamento ajustado às necessidades específicas do acusado. Esse plano de tratamento também pode contar com apoio adicional de um oficial de liberdade condicional. 

O acusado comparece a uma audiência de orientação duas semanas após a preliminar. Nessa sessão, eles apresentam e esclarecem o programa de tratamento. Todos os atores envolvidos debaterão e avaliarão o programa. Se o programa for aceito, o tribunal acompanhará sua execução juntamente com o apoio do intermediário ao acusado/cliente durante o curso do programa.  

Então, o acusado é obrigado comparecer no tribunal a cada 4 semanas, pelo menos, para audiências de acompanhamento. Essas sessões permitem que os atores do DTC (ou seja, o juiz, o Procurador-Geral de Justiça e o advogado) monitorem de perto o acusado durante um período de seis a dez meses.  

Há possibilidade de ajustes e adaptações ao programa de tratamento para atender às necessidades do infrator ou melhorar o processo e os resultados. A sentença, e quaisquer condições que eventualmente sejam impostas, são determinadas durante a audiência final. 

As vantagens dos procedimentos em DTC são várias, a saber:  

– Primeiro se aplica o tratamento depois a sentença, dando tempo para internalizar a motivação externa; 

– Desenvolve-se um plano de tratamento adequado; 

– É levado em consideração a realidade da dependência química (uma doença crônica, com recaídas); 

– Há incentivos em caso de cumprimento e punições em caso de descumprimento; 

– Cada participante do processo tem o mesmo objetivo, utilizando meios diferentes para motivar e estimular o acusado.

Redução da reincidência e outros resultados promissores 

Foram realizadas muitas pesquisas sobre a eficácia dos tribunais especializados em casos de drogas, principalmente nos EUA. A maioria desses estudos se concentra na melhoria das taxas de reincidência e outros resultados da justiça criminal, além das mudanças no uso de substâncias como indicadores de resultados mais comuns.  

As evidências das pesquisas mostraram que há uma redução significativa da reincidência nos primeiros dois ou três anos após um programa de DTC. O uso de substâncias também diminui durante e após o programa. Em geral, esses estudos mostram que estes tribunais têm resultados positivos. Além disso, o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT) classifica os tribunais de tratamentos de drogas como “suscetíveis de serem benéficos” e, portanto, os considera uma boa prática.7 

A Universidade de Gante realizou uma avaliação científica sobre a implementação do DTC em Gante. A avaliação do processo constatou que todas as partes interessadas do DTC, incluindo os acusados, tiveram uma experiência geral positiva com o tribunal.  

A avaliação de resultados (com base em casos de DTC durante 2008 e 2009) concluiu que houve resultados positivos em relação à reincidência, cumprimento do tratamento de substituição de opioides (manutenção), recebimento de tratamento de dependência de drogas e/ou aconselhamento financeiro e emprego.8  Desde essa primeira avaliação, não houve mais pesquisas científicas

Uma abordagem em evolução e expansão 

Desde a implantação do DTC em Gante, em 2008, vários Tribunais de Primeira Instância de Flandres vêm implementando iniciativas judiciais semelhantes de tratamento de drogas, como o caso de Bruges em 2014, Antuérpia em 2016, Mechelen em 2017 e Turnhout em 2021.  

Em vez de trabalhar com intermediários, esses tribunais contam com a ajuda dos oficiais de liberdade condicional desde o início. Essa diferença deve-se à indisponibilidade de recursos para contratar profissionais de centros de tratamento de drogas para que atuem como intermediários.  

O DTC de Gante suspendeu o financiamento de intermediários desde outubro de 2021. Após essa decisão, também passou a cooperar com os oficiais de liberdade condicional das Casas de Justiça (a autoridade de liberdade condicional na comunidade flamenga). Em vez de intermediários contratados de centros de tratamento de drogas presentes em todas as audiências, agora há oficiais de liberdade condicional. Eles marcam a primeira consulta com o acusado/cliente na audiência preliminar e estabelecem um plano de tratamento com eles antes da audiência de orientação. Eles acompanham os diferentes réus do DTC durante todo o processo.  

Recentemente, o Ministro da Justiça federal anunciou a implantação de tribunais especializados em casos de drogas dentro de cada Tribunal de Primeira Instância na Bélgica (totalizando 13). Assim, o marco jurídico para o Tribunal Especializado em Casos de Drogas da Bélgica está em construção – incluindo a missão específica das Casas de Justiça em relação aos tribunais de drogas. 

O DTC de Gante elaborou um manual para ajudar outros DTCs. Esse recurso está sendo adaptado a fim de que diferentes tribunais possam usá-lo. Também será essencial oferecer formação para os profissionais que atuam nos DTCs para garantir uma filosofia subjacente orientada a soluções e cooperação multidisciplinar. É um trabalho que ainda está sendo desenvolvido. 

Vale ressaltar que durante a fase piloto do projeto, muitos juízes e promotores interessados de outros países europeus (incluindo Holanda, França e Alemanha) vieram visitar o DTC de Gante e estão atualmente tentando implementar o sistema em suas jurisdições.

Referências:

(1) C. COLMAN et al., De drugbehandelingskamer: Een andere manier van afhandelen: het proefproject geëvalueerd, Antwerpen, Maklu, 2011, p. 21-23; W. HUDDLESTON and D. B. MARLOWE, Painting the current picture: A national report on drug courts and other problem-solving court programs in the United States, Washington, DC, National Drug Court Institute, 2011, p. 7.
 

(2) National Association of Drug Court Professionals, Defining drug courts: the key components, Washington, D.C., Office of Justice Programs, Drug Courts program Office, 1997.

(3) European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction, «Best practice portal, drug court programmes to reduce recidivism – evidence summary».

(4) C. COLMAN et al., De drugbehandelingskamer: Een andere manier van afhandelen: het proefproject geëvalueerd, Antwerpen, Maklu, 2011, p. 21-23

Jorn Dangreau

Jorn Dangreau foi nomeado pelo Ministro da Justiça como juiz do tribunal de primeira instância de Gante em 2002. Juntamente com Annemieke Serlippens, implementou um tribunal especializado em casos de drogas no tribunal de Gante em 2008. O projeto será continuará e será implementado em todos os tribunais belgas. Desde 2017, Dangreau é Chefe de Justiça do tribunal local de Turnhout, com jurisdição em casos civis.

Annemie Serlippens

Annemie Serlippens foi nomeada pelo Ministro da Justiça como procuradora do Ministério Público de Gante em abril de 1999. Juntamente com o juiz Jorn Dangreau, ela estava no centro do desenvolvimento do Tribunal de especializado em casos de drogas de Gante. Desde janeiro de 2016, o Serlippens é juiza no tribunal de Flanders Oriental – divisão de Gante. É juíza de investigação e presidente do Tribunal de Tratamento de Drogas de Gante.  
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