Celso Manata DGRSP prisons Portugal

Desafios e conquistas do Sistema Penitenciário Português

// Entrevista: Celso Manata

Diretor da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), Portugal

JT: O Sr. desempenhou funções de Diretor-Geral dos Serviços Prisionais entre 1994 e 2001.

Que principais diferenças existem entre o sistema prisional português de 20 anos atrás e o atual? E o que registou maior evolução – tanto positiva como negativa?

CM: Quando estive na gestão entre 1994 e 2001, não liderei a área da reinserção social nem a área da justiça juvenil e agora, tendo que gerir essas duas áreas, tenho que buscar um equilíbrio. Eu creio que – falando sobretudo na área prisional – de fato, estes últimos 20 anos foram muito marcantes: noto diferenças “do dia para noite”, e a maior parte delas no sentido positivo.

Quando cheguei na organização, em 1994, tínhamos algumas instalações que eram medievais. Eu lembro-me que o estabelecimento prisional regional de Coimbra era numas antigas cavalariças, uma rua com os buracos de um lado e do outro, com uma grade, se chovesse havia infiltrações. Isto não existe mais, essa realidade foi completamente superada.

Fizemos um percurso grande em termos do parque penitenciário, embora também seja verdade que nos últimos anos houve alguma quebra desse investimento. Estamos lidando com um conjunto de situações muito difíceis de se resolver em termos de obras, porque a demanda é muito alta.

Portanto, a primeira nota é esta, há 20 anos houve uma evolução, sem dúvida positiva, embora os últimos anos tenham sido difíceis e isso tem muito a ver com a crise, como é óbvio, e tem muito a ver com o desinvestimento que nos últimos anos se fez nesta área, em Portugal.

Mas, da mesma forma que falo de instalações, também podia falar da forma como as pessoas que trabalham no sistema encaram a população prisional: mudou radicalmente para melhor. Obviamente que continuamos a ter situações censuráveis – tanto é que temos um setor disciplinar que tem tido atitudes muito assertivas, inclusive de situações de demissão. Mas essas são exceção, ou seja, aquela ideia que havia nos anos 90 sobre o tratamento nas prisões já está ultrapassada.

As pessoas já dizem que o preso é sujeito do tratamento prisional, e isto é pacífico, mesmo para quem não gosta que seja assim. Há uma alteração no discurso e nós percebemos isso, mas também percebemos que há diferenças entre o “A” e o “B”, o “B” porventura está a dizer uma coisa que sente, o “A” nem tanto, mas de qualquer forma só a circunstância de as pessoas aderirem a um discurso diferente, é um passo positivo . A forma como o preso é visto e tido em consideração, obviamente é central.

Por outro lado, também evoluímos em relação à população prisional. Há 20 anos tínhamos mais de 30% de [presos] provisórios, agora temos entre 15 e 16%. Este fato é um salto civilizacional importante que tem a ver não apenas conosco, mas, sobretudo, com os tribunais.

É importante destacar isso, porque, obviamente, um sistema com uma grande sobrecarga de presos provisórios tem mais dificuldades do que um sistema em que a maior parte da população prisional seja de presos já condenados. Estes são pessoas mais estáveis e com quem se consegue trabalhar com mais facilidade. Já os presos provisórios são uma população mais complexa e com grande rotação e nem sempre compreendemos qual é o investimento que podemos fazer.

Naturalmente que nem tudo é positivo e, particularmente em Portugal, temos hoje dificuldades que não tínhamos no passado, como as orçamentárias – que é muito significativa e condiciona o nosso trabalho – não apenas relacionadas à falta de dinheiro, mas também daquilo que não se pode comprar.

Só para dar um exemplo: em 2000 e 2001, o conjunto de viaturas estava completamente de acordo com as nossas necessidades, fez-se um investimento nessa fase – que foi uma “fase de ouro” da organização – de várias dezenas de viaturas que foram espalhadas pelo território nacional e, agora, decorridos estes 16 anos estamos outra vez numa situação miserável: temos um parque que está deteriorado, desajustado e desadequado; o esforço que vamos ter que fazer é novamente um investimento desmesurado.

Infelizmente isto é muito típico do nosso país e dos países do Sul: em determinada altura consegue-se adjudicar um determinado objetivo e, depois, em vez de manterem a situação, por exemplo, comprando dois ou três viaturas por ano, e terem o problema resolvido, não fazem nada. Daí a dez anos vão descobrir que, afinal têm outra vez o mesmo problema que já tinham tido no passado. Isto é uma coisa que a mim me desagrada – não tem nada a ver com minha forma de ver as coisas – eu sempre lutei contra esta realidade.  

A questão do orçamento e dos meios materiais é uma questão central e neste ponto tivemos uma evolução muito negativa que nos obriga aqui, a “fazer a quadratura do círculo” . As pessoas, muitas vezes, não compreendem que nesta área de atividade nem tudo é comprimível, ou, melhor dizendo, nem tudo é mais comprimível – já se comprimiu o que era possível: em termos de alimentação, de saúde, em uma série de áreas. E nós não conseguimos fazer mais contenção de despesa. Quem gere os destinos do país obviamente tenta apertar cada vez mais. Se isso é possível em algumas áreas, neste caso não é possível.

Penitenciária da Carregueira, Portugal

Também no que diz respeito aos regimes tivemos grandes alterações. O código de execução de penas trouxe novidades muito marcantes – nós sempre tivemos boas leis nesta área, na verdade, tanto a reforma feita pelo Professor Eduardo Correia nos anos 30, quanto o Decreto-lei 275/79 eram boas leis e sempre fomos reconhecidos a nível internacional, mas eram leis “muito elásticas”, que dependiam muito da interpretação.

 Hoje temos uma realidade diferente, que tem coisas boas e coisas más, que é uma regulamentação muito rigorosa, um código de execução de penas muito regulamentado e um regulamento geral que é muito focado nos detalhes. O que, por um lado, é positivo porque, obviamente, nesta área, tudo o que seja estabelecido no código, na lei, no regulamento, aquilo que se deve fazer, acautela mais os direitos humanos, os direitos dos cidadãos, permite mais a impugnação dos atos.

Neste domínio, houve uma jurisdicionalização muito grande da execução das penas – eu diria mesmo uma evolução que não foi acompanhada, em termos de reforço de meios, ao nível dos tribunais, o que cria por vezes algum ruído e alguma distorção.

O regime aberto, por exemplo, é um aspecto em que evoluímos negativamente: nós temos o regime aberto interno e o externo, a jurisdicionalização conduziu a uma descida imensa do regime aberto externo. Nós tínhamos cerca de 500 pessoas nesse regime e agora temos umas 60.

O fato é que com estes 500 indivíduos em regime aberto não tínhamos insucessos – aliás o número de insucessos que tínhamos era muito similar àqueles que temos hoje. O problema da jurisdicionalização é que as pessoas que não trabalham dentro do sistema (juízes e magistrados do ministério público) têm uma menor capacidade de suportar o risco do que pessoas que trabalham dentro do estabelecimento prisional.

De fato – e o Conselho da Europa também o tem dito repetidas vezes – a distribuição de competências não deve ser feita aleatoriamente, tem que ser muito pensada em função dos grupos profissionais envolvidos. E é por isso que se criticam muito os países em que é o juiz que determina o regime da pena e a execução da pena; os países do Ocidente acabaram com isso. É a administração penitenciária que decide qual o regime aplicável, porque é a administração que conhece e convive diariamente com o preso, que está habituada, que há muitos anos que lida com este tipo de pessoas.

Quem está nos tribunais – eu estou à vontade para o referir porque sou magistrado – obviamente que passa por isto: um dia se está em um tribunal, no outro em outro e, portanto, nunca haverá a possibilidade de conhecer de fato a realidade carcerária. Para além disso, o seu contato com as prisões também não é o ideal. Os magistrados vão ao Conselho Técnico que é feito em uma área da penitenciária que está longe da de detenção.

Recentemente encontrei um velho amigo numa reunião em Paris – uma pessoa muito conhecida a nível internacional, que foi o diretor-geral da única prisão de Luxemburgo – que me contava que, no país dele, os juízes passam uma semana na cadeia e que, durante dois dias, dormem lá dentro. Em Portugal os juízes e procuradores fazem uma visita a um estabelecimento prisional durante uma tarde. E, portanto, isto traz consequências na percepção e compreensão.

Os programas que nós temos à disposição das pessoas melhoraram e as condições de alojamento também. Resumidamente, nestes últimos 20 anos, eu acho que o balanço é altamente positivo. Mas estamos no ponto em que gostaríamos de estar? Não estamos. Estamos muito longe disso.

Há aspectos que pioraram. Alguns têm a ver com fatores financeiros, outros têm a ver com circunstâncias de vida, por exemplo, o envelhecimento da população prisional. Esta é uma realidade em toda a Europa que, obviamente, condiciona muito o nosso trabalho.

O problema das doenças, que nestes últimos anos se agravou substancialmente, e, sobretudo, das comorbilidades que também se agravou, obviamente que dificultam a nossa tarefa. Temos aí desafios mais complicados, sem dúvida, mas, se estivermos atentos e sairmos do senso comum dos jornais e da informação sensacionalista, concluímos que as coisas melhoraram substancialmente.

Quais são os principais desafios/problemas que o sistema enfrenta e que medidas estão sendo ou serão implementadas para solucioná-los?

CM: Há aqui várias coisas que podiam ser ditas, mas eu acho que uma das realidades que merece ficar em primeiro lugar – porque é um problema em si mesmo que gera muitos outros problemas – é a superlotação. Um estabelecimento prisional superlotado nunca pode funcionar bem. Nós continuamos a ter este problema, outros países também continuam a tê-lo, mas outros já o resolveram. E este é um dos problemas mais críticos, já que pode ser resolvido de duas maneiras: ou criando mais prisões, ou diminuindo a população.

É notório que, quer ao nível da ONU, quer do Conselho da Europa, a solução apontada para a superlotação não é construir mais prisões, mas sim diminuir a população. Se isto é verdade para um sistema que está equilibrado, ou seja, que tem a população prisional que a sua realidade criminal exige, ainda é mais verdade no nosso caso porque temos uma realidade que nada tem a ver com a nossa população [prisional].

Aquilo a que nós assistimos é que, de fato, os números que têm sido anunciados por entidades independentes é de que o crime violento e o crime organizado – duas áreas que influenciam no número de reclusos – vêm diminuindo sistematicamente e consistentemente. Temos, por isso, que nos questionar porquê o nosso país, que tem uma realidade criminal “suave”, que não tem nada a ver com outros países (como França e Bélgica, por exemplo) com problemas gravíssimos em termos de insegurança e de crime violento – e, no entanto, estão com 101, 102 presos por cada 100 mil habitantes e nós continuamos com 137.

Interessa dizer que temos uma situação de superlotação que é resultante da população prisional, ou seja, as vagas que temos neste momento são suficientes para a população que devíamos ter. Eu até diria mais: as vagas que temos, em Portugal, deviam ser excessivas para a população que nós deveríamos de ter. Deveríamos ter uma população prisional em torno dos 11.500 presos. Se tivéssemos esse número de presos estaríamos em uma situação de subocupação, face às 12 mil vagas existentes.

O grande investimento que tem de ser feito é para reduzir a população reclusa. É isso que eu tenho dito desde que tomei posse e a senhora Ministra da Justiça tem acompanhado esse discurso.

Sabemos que pretende abrir um estabelecimento prisional destinado especificamente a reclusos mais idosos. Em que consiste exatamente este plano?

CM: Em Portugal – como, aliás, na Europa – temos constatado um crescimento muito significativo de reclusos idosos. Por outro lado, temos também constatado que esta população tem características e necessidades específicas, como doenças, comorbilidades, e muitas outras que têm de ser satisfeitas de outra maneira.

Uma pessoa idosa tem mais dificuldade em levantar-se e em movimentar-se e, portanto, os horários têm de ser mais flexíveis. As pessoas têm dificuldades de percepção daquilo que lhes é dito e é preciso ter outro tipo de relação com elas. Elas têm um ritmo cotidiano mais lento. Face a esta realidade, as abordagens têm de ser diferentes, porque não estamos falando de um indivíduo que aos 70 anos vai à procura do primeiro emprego. Não podemos dar-lhe um curso de informática que ele nem entende, ou não podemos incluí-lo em determinado tipo de programa. Algo que me impressiona bastante é que estas pessoas são extremamente vulneráveis dentro do universo penitenciário.

Portanto, olhando para estas realidades – são pessoas especiais com necessidades especiais – e o grupo cada vez é maior. É importante começarmos a pensar na criação de uma resposta específica para esta população. Essa resposta poderá ter muitos formatos, mas eu gostaria de fazer uma primeira experiência, por isso estamos realizando uma pesquisa para ver quantas pessoas no universo prisional estariam disponíveis ou que veriam positivamente uma experiência desta natureza. Depois, em função dos resultados que tivermos, veremos onde se criará uma unidade específica para pessoas idosas. Isto é prioritário.

O que nós queremos, sem etiquetar ninguém, é ter um espaço onde reclusos mais vulneráveis, em virtude do seu estado físico e mental devido à idade mais avançada, sejam tratados de outra maneira. Não está ainda definido onde vai ser, mas vai concretizar-se.

Temos visto um crescimento muito significativo no número de presos idosos, eles são pessoas extremamente frágeis dentro do universo penitenciário.

O Sr. foi membro do Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura, em que medida essa experiência tem vindo contribuir e/ou influenciar na sua atuação e a forma como vê o sistema?

CM: Sim, durante dez anos, tive o prazer de ser membro do CPT (Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura e do Tratamento ou Punição Desumano ou Degradante). Foi uma experiência muito importante para mim, porque tive a oportunidade de fazer centenas de visitas a vários países europeus e ver como é que as coisas se passavam nesses países e como é que lidavam com os problemas.

Também foi muito interessante estar em Estrasburgo com colegas com percepções muito diferentes, ouvir o que tinham a partilhar, com tolerância e receptividade, o que me permitiu ter uma visão mais abrangente dos sistemas prisionais, e ter uma maior capacidade de análise dos desafios que temos em Portugal.

Sempre tive uma grande sensibilidade para a questão dos direitos humanos e o fato de ter sido membro do CPT proporcionou-me ainda uma maior sensibilidade. Passei a valorizar alguns detalhes relativos à necessidade de criar mecanismos que permitam desenvolver atitudes assertivas e consequentes em relação ao problema dos maus-tratos e da tortura.

Por outro lado, também me deu uma certa tranquilidade, na medida em que verifiquei que há países com poucos recursos em que os desafios são resolvidos de forma satisfatória em termos de direitos humanos, o que quer dizer que o dinheiro não é tudo.

Algo fundamental para o recluso é o dinheiro e isso não depende exclusivamente de dinheiro. Tem a ver com a relação que se cria entre os funcionários e os reclusos, e essa relação pode ser muito profissional, pode ser muito teórica, mas falta-lhe a afetividade, que é fundamental para o ser humano.

Alguns países que, porventura, tenham uma atitude menos científica em relação ao tratamento prisional têm uma relação mais positiva em termos da relação cotidiana entre o guarda/o técnico/o diretor e o recluso e, no fim, vai ter um resultado mais positivo.

É importante compreender todo este conjunto de variáveis e é preciso juntar tudo e dizer que queremos melhorar as nossas condições, mas que não queremos perder a relação que temos com as pessoas, pois essa, sem dúvida, é uma relação que geralmente é muito positiva e é muito importante para a reinserção social.

Temos uma realidade criminal que nada tem a ver com nossa população de presos: as vagas que temos são mais do que suficientes para a população carcerária real que deveríamos ter.

Qual é a situação de Portugal em relação a medidas alternativas à prisão e como gostaria que esse sistema evoluísse a curto-médio prazo?

CM: Faltam várias coisas. Podíamos dividir esta conversa entre três partes: as entradas, a duração da pena e as saídas.  Nas entradas temos evoluído positivamente de certa forma: diminuímos o número de presos provisórios. Ainda assim, podemos ir mais longe e baixar mais o número de pessoas que entram na prisão antes de as suas sentenças terem transitado em julgado.

O problema maior, para mim, não está aí, embora ainda se possa fazer um caminho. O problema maior está ao nível das decisões, e, nesta questão, temos vários itens: a prisão com limitação de fim de semana e o regime semiaberto (ainda que o semiaberto não seja muito expressivo).

Neste momento temos em Portugal mais de 500 indivíduos que cumprem medida de prisão com limitação de fim de semana. Esta é uma medida que não tem qualquer efeito em termos de tratamento penitenciário, mas que nos impede de ter um importante conjunto de infraestruturas disponíveis. Quinhentas pessoas num universo de quase 14 mil ainda é alguma coisa.

Depois, temos o problema das penas curtas: temos muita gente que está no estabelecimento prisional por não ter pagado multas, uma situação que tem de ser resolvida. Não estou culpando os juízes, apenas refiro tratar-se de uma situação que tem que ser resolvida.

Ainda neste segmento, temos ainda o problema das penas longas. Se olharmos para a Europa, vamos verificar, com muita facilidade, que temos vários países com pena de prisão perpétua em que a média da pena que é cumprida é muito inferior à nossa: por exemplo, a Holanda, que tem pena de prisão perpétua, a média das penas são três anos e nós temos uma média de 6, 7.

O que é que se pode fazer aqui? Ter uma atitude de esclarecer as pessoas – porque obviamente que a Justiça é administrada em nome do povo e, portanto, se o povo sentir que há necessidade deste tipo de reação, obviamente que o juiz tem que ouvir – é isso que está na Constituição. Mas também tem a ver conosco, nós temos de ter uma atitude mais proativa, no sentido de ir junto dos magistrados e de lhes propor outras soluções para além daquilo que costuma ser a prática.

Temos em curso várias experiências que estão apresentando um resultado excelente: por exemplo, colocamos técnicos da DGRSP junto dos magistrados do Ministério Público nos Juizados Criminais de Lisboa, ajudando a desbloquear situações existentes desde 2012 e que neste momento já estão em dia.

Estamos realizando mais trabalho a favor da comunidade. Nos casos de delitos estradais (delitos associados a condução perigosa ou ilícita), estamos tentando reorientar situações de medidas de trabalho a favor da comunidade para programas que têm a ver com prevenção rodoviária. Estamos também a reorientar para programas relacionados a tratamento de vícios. Nesta questão existe inclusive uma circular do Procurador-Geral da República e dos Serviços Prisionais que nem sempre é observada.

Temos de fazer junto das magistraturas no sentido de sensibilizar para este tipo de problemas. Naturalmente que eu penso que o CEJ (Centro de Estudos Judiciários) também está envolvido neste esforço. É preciso ter formação inicial e permanente dos juízes e magistrados que nos ajudem a melhorar esta atividade que, no final das contas, está relacionado ao que temos vindo a falar ao nível da Europa, que diz respeito à sentença. É algo que existe em outros países e que nós temos de trabalhar.

Temos ainda outra parte que diz respeito às saídas: aqui a situação é dramática! A maior parte dos indivíduos que estão presos em Portugal saem da prisão no final da pena. Há um outro grupo que sai com 5/6 da pena cumprida e outro com 2/3. Portanto, na metade da pena, que está previsto na lei, é uma exceção. Aqui temos um percurso muito grande a fazer porque isto não é compreensível nem justificável. É preciso ir junto dos magistrados no sentido de tentar demonstrar que há caminhos alternativos.

Outro tema importante refere-se à possibilidade, prevista na lei, de as pessoas um ano antes da liberdade condicional, poderem sair com tornozeleira eletrônica. Apesar de estar previsto na lei, neste momento, se tivermos 15 ou 16 pessoas nesse sistema é muito. É evidente que está mal e enquanto não resolvermos estes problemas não vamos a lado nenhum.

Alguns destes problemas são culturais e não se vão resolver facilmente, mas também não podemos ficar parados à espera de um milagre. Portanto, a ideia é tentar intervir a nível legislativo – como é público, a Ministra da Justiça apresentou, nesta linha de ideias que tenho vindo a exprimir, uma intervenção nesse sentido: acabando com a prisão com limitação de fim de semana e tentando incrementar o uso da tornozeleira eletrônica. Este é um passo muito importante. Não é ainda possível saber que impacto terá, mas eu estou crente e, sobretudo, com expectativa de que poderá ser um passo decisivo no sentido positivo.

Como o Sr. vê o futuro do setor da reinserção e dos serviços prisionais em Portugal?

CM: Embora eu fale sobretudo sobre prisões, tenho ideias tanto para a área da justiça juvenil, quanto para a área da reinserção social. Nesta última temos aqui problemas que nos condicionam muito, nomeadamente a falta de pessoal – isso sai nos jornais e não é mentira.

Faltam agentes penitenciários, mas também faltam técnicos, os quais têm diminuído bastante: em 1999 tínhamos 5.348 funcionários, dos quais 3.864 eram agentes, ou seja, 62%. Em 2016, e depois da fusão dos serviços prisionais e de reinserção social, temos 6.299 funcionários – temos mais mil funcionários – e os agentes passam para 4.544, ou seja, há aqui um decréscimo muito assustador de profissionais técnicos.

Os agentes penitenciários são importantes – e não há dúvida que o são porque a segurança é um vetor essencial no sistema prisional – contudo a segurança não é a nossa atividade principal, mas sim a reinserção social, o fim das penas. A segurança é um requisito que precisamos garantir para podermos trabalhar.

E, portanto, de fato, temos uma falta acentuada de agentes prisionais e estamos trabalhando para melhorar isso – ainda agora vamos recrutar 420 agentes – mas, tão complicado ou mais do que isso é a falta de técnicos, o que complica a nossa atividade na área da reinserção.

Temos trabalhado de uma forma globalmente positiva na concepção dos programas: já temos 14 programas delineados para a população prisional. Refiro-me a um conjunto de abordagens, manuais, orientações, diretivas, que são enviadas dos serviços centrais para os estabelecimentos prisionais visando com que determinado grupo de reclusos sejam tratados de uma determinada maneira. Se perguntarmos onde é que esses programas estão, eles não estão em todos os estabelecimentos, porque não temos técnicos para os aplicar.

Há programas que são de emergência – prevenção do suicídio, por exemplo – mas, depois, temos programas que se aplicam à população reclusa em geral. O programa de estabilização emocional, por exemplo, deveria ser aplicado a todos os indivíduos que entram no sistema prisional, mas os programas e ações só podem ser executados se tivermos um corpo técnico suficiente e capaz.

Estamos num ponto em que temos os técnicos em tarefas burocráticas e não falando com os reclusos. Acho que é fundamental apostarmos neste tipo de programas no sentido de avançarmos para uma efetiva reinserção.

Da mesma maneira, é imprescindível continuar também com a atividade de articulação com a comunidade. Dentro dos estabelecimentos prisionais é necessário celebrar acordos e protocolos com o conjunto de entidades públicas e privadas, com objetivo de fazer, cada vez mais, articulações sistêmicas, ou seja, procurar parceiros sustentáveis e robustos, se possível de âmbito nacional, que consigam agilizar as atividades num conjunto de estabelecimentos prisionais.

A articulação com a comunidade é importante porque neste sistema temos que ter uma fase em que os reclusos trabalhem fora – o regime aberto é um instrumento muito interessante para que se faça uma integração mais sustentada e sólida na comunidade – e para isso, necessitamos de parcerias. Aqui destaco o papel dos municípios, que nos têm apoiado, como o fizeram no passado.

Estas articulações não só ajudam à reinserção social como permitem transmitir, para o exterior, uma imagem da população prisional diferente daquela que as pessoas têm e que pode – e deve – ser desmentida através de exemplos positivos. Se a comunidade tiver uma visão diferente, provavelmente será mais compreensiva em relação a algumas alterações legislativas que queremos fazer.

A sensibilidade que surge da convivência dos presos com a comunidade é um investimento que fazemos não apenas com um indivíduo, mas também com os que aspiram a estar na comunidade. Trata-se, também, de um fator de estabilização dentro da prisão, porque temos indivíduos que aspiram a estar em regime aberto, sendo certo que o regime só é dado depois de uma parte da pena ter sido cumprida e depois de haver um comportamento correto, positivo e construtivo. Portanto, tudo isto conduz a atitudes positivas.

A reinserção, para mim, passa por tentarmos ter mais programas e atividades, estruturados e úteis, passa por uma articulação, quer com o tecido empresarial, quer com outras entidades da comunidade, em especial as municipais e as instituições particulares de solidariedade social, que são parceiros indispensáveis.

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Celso Manata foi nomeado para exercer funções de Diretor-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais em 2016, um cargo que já lhe é conhecido, pois havia sido diretor-geral dos Serviços Prisionais entre 1994 e 2001. À data da nomeação para as atuais funções, o magistrado do Ministério Público ocupava o cargo de Procurador-Geral Adjunto, sendo especialista na área de família e menores. Celso Manata foi membro do Comitê Europeu de Prevenção da Tortura do Conselho da Europa.

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