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Em matéria de prisão provisória “não basta mudar a lei.”

Entrevista

José Lopes da Mota

Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, Portugal 

Nesta entrevista, o ilustre entrevistado foi convidado a discutir a evolução da prisão provisória e outros temas prementes da teoria e prática judiciária nas últimas décadas em Portugal e no contexto europeu mais amplo.

O ilustre José Luís Lopes da Mota oferece uma visão abrangente apoiada na sua experiência profissional e na dedicação de várias décadas à justiça criminal.

O texto a seguir resulta da conversa frutífera que a revista JUSTICE TRENDS teve o privilégio e a honra de conduzir. Esta entrevista exclusiva visa elucidar os leitores sobre os aspectos mais marcantes e o progresso em matéria penal, com foco em Portugal e na Europa.

 JT: Desde cedo, na sua extensa carreira ligada à Justiça em Portugal, o Sr. juiz teve um papel na precursão de reformas, inclusive com uma passagem pelo Poder Executivo, enquanto Secretário de Estado da Justiça, entre 1996 e 1999. 

Quais eram as principais prioridades, na época, em matéria de justiça penal e quais foram os principais contributos para a melhoria do sistema? 

JLM: A ação do XIII Governo Constitucional (1995-1999) na área da justiça penal, teve essencialmente dois objetivos. Primeiro, consolidar e aperfeiçoar o sistema, refundado pela Constituição de 1976, pelo novo Código Penal, de 1982, revisto em 1995, e pelo novo Processo Penal, de 1987, em conformidade com os princípios do Estado Democrático de Direito, e com base no respeito pelos direitos fundamentais.  

Por outro lado, visou avançar com medidas no sistema prisional e reformas do sistema de execução de penas e medidas. Houve um especial foco na justiça de menores, uma área que não tinha sofrido grandes avanços desde os anos 60, e dos jovens adultos, até então à margem de quaisquer reformas. Fez-se a grande reforma, de que resultaram a lei tutelar educativa e a lei de proteção de crianças e jovens. 

Estruturado que se mostrava o sistema pelos novos Códigos, havia que superar deficiências e lacunas reveladas pela experiência. Era necessário também adotar medidas que, em coerência com o novo quadro constitucional e com os instrumentos de direito internacional de proteção dos direitos humanos, a que Portugal se havia vinculado [Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e Convenção dos Direitos da Criança], exigiam uma intervenção profunda.  

As minhas funções, enquanto Secretário de Estado da Justiça, delinearam-se em torno do acompanhamento, direção, coordenação e elaboração de projetos legislativos que deram corpo e criaram as condições necessárias à efetividade das reformas. Foi um trabalho gratificante e de grande exigência. 

As reformas realizadas marcaram um tempo ambicioso, de construção e inovação, que lançou as bases de desenvolvimentos subsequentes, com a redefinição de quadros legais e institucionais marcantes. 

Entre as iniciativas e medidas conduzidas, começo destacando a reforma do direito de menores, que deu origem à Lei Tutelar Educativa e à Lei de Proteção de Crianças e Jovens, de 1999. Foi uma iniciativa altamente estruturante, inovadora e complexa, do governo que integrei. 

Esta reforma separou e construiu subsistemas autônomos, coerentes e interdependentes de intervenção junto de crianças e jovens que praticam atos que a lei penal qualifica como crimes, ao mesmo tempo que visou as crianças em situação de vulnerabilidade, que necessitavam de proteção.   

A Comissão para a Reforma do Sistema de Execução de Penas e Medidas, constituída em 1996, apresentou um primeiro relatório de avaliação em que concluiu pela urgência de reformular, desde a raiz, o sistema de tutelar de menores. 

A mudança na legislação incluiu um relatório final contendo os princípios orientadores e propostas de natureza legislativa e institucional, que fundaram as opções de política legislativa. 

Em 1997, foi constituída a comissão de reforma da legislação de proteção e, em 1998, a comissão de reforma da legislação sobre o processo tutelar educativo.  

Garantida a harmonização das soluções, que alteraram radicalmente o sistema anterior, avançou-se com um processo legislativo, com ampla participação, que permitiu realizar esta reforma fundamental que, então, iniciou o seu caminho.    

Na área penal, destaco a revisão de 1998 do Código de Processo Penal (CPP) de 1987 (Lei 59/98), a aprovação de legislação complementar ou conexa e a revisão da Lei Orgânica do Ministério Público, evidenciando aqui a criação do Departamento Central de Investigação e Ação Penal.   

Surgiram algumas polêmicas relativas ao enquadramento e papel do Ministério Público, que assumia, então, um estatuto de verdadeira magistratura, do juiz de instrução, e do seu papel de garantia dos direitos fundamentais, e da vinculação judiciária das polícias nas fases preliminares do processo, geradoras de entropias. 

Evidenciavam-se ainda problemas de eficiência e eficácia, como o “regime de contumácia”, que comprometiam a celeridade e a eficácia das soluções.  

Foi então efetuada uma revisão que reforçou o modelo e aperfeiçoou o sistema. O processo de revisão foi liderado por uma Comissão especializada e ancorou-se no tratamento sistemático de informação, na avaliação da experiência de aplicação, com ampla discussão e participação.  

Simultaneamente, aprovaram-se leis complementares, nomeadamente: a lei da vigilância eletrônica (Lei 122/99), que permitiu que a privação da liberdade pudesse, com maior frequência e eficácia, ocorrer na habitação, sem recorrer à prisão preventiva; a lei de proteção das testemunhas (Lei 93/99), que teve em conta o desenvolvimento da criminalidade violenta e organizada e da criminalidade no seio da família e em grupos sociais fechados; e a nova lei de cooperação judiciária internacional em matéria penal (Lei 144/99), justificada pela expansão da criminalidade transfronteiriça e pela integração de Portugal no Espaço Schengen. 

Por seu lado, a aprovação do Estatuto do Ministério Público (Lei 60/98) surge impulsionada por diversos fatores, entre os quais a emergência de novas formas de criminalidade econômico-financeira e associadas ao uso das novas tecnologias e da  internet; e pela necessidade de assegurar a direção concentrada e coerente do inquérito destas novas formas de criminalidade, sem localização e limites geográficos definidos e de garantia efetiva dos direitos fundamentais das pessoas.

Adaptou-se a organização do Ministério Público às exigências do CPP e das novas realidades, criou-se o Departamento Central de Investigação e Ação Penal como estrutura de coordenação e de direção do inquérito ao nível nacional e como interlocutor judiciário dos departamentos nacionais da Polícia Judiciária, no âmbito do combate ao tráfico de droga, ao terrorismo e à criminalidade econômico-financeira. 

Estabeleceram-se também os Departamentos de Investigação e Ação Penal, que, até então, vinham funcionando como estruturas informais de auto-organização. Simultaneamente, dotou-se a Procuradoria-Geral da República de meios de organização própria dos serviços de apoio técnico e administrativo, com autonomia administrativa e orçamento próprio (DL 333/99).  

A medicina legal, como auxiliar fundamental da administração da justiça, cuja organização estava um pouco obsoleta, foi reformada e modernizada (DL 11/98). Essa reforma conduziu à reestruturação dos Institutos de Medicina Legal, dotou o país de uma rede de escritórios médico-legais com capacidade para assegurar a qualidade das perícias e dos serviços prestados, além de  garantir o respeito pela dignidade das pessoas, entre outros aspectos de reforma importantíssimos ao nível das carreiras e formação.  

O funcionamento do registo criminal, foi completamente reformado e informatizado (Lei 57/98), contribuindo para agilizar o andamento dos processos. 

Na área do direito penal material, destaco a revisão do regime de punição do crime de emissão do cheque sem fundo (DL 316/97). Este tipo de crime representava cerca de 30% dos processos pendentes e muito raramente levava a condenações.  

As modificações de execução da pena de prisão relativamente a cidadãos condenados afetados por doença grave e irreversível em fase terminal (Lei 36/96) passaram a permitir o internamento do condenado em estabelecimento de saúde ou de acolhimento adequado e a permanência em casa. Tal constituiu uma medida de grande dimensão humanitária, de respeito pela dignidade do recluso.  

 Destaco também a atenção dada à pena de prestação de trabalho comunitário. Sendo uma pena alternativa de grande alcance na ressocialização, mas de rara aplicação, foram regulamentadas as condições práticas e procedimentos adequados (DL 375/97). A celebração de dezenas de protocolos com autarquias e outras entidades permitiu que se passasse a privilegiar esta pena na punição da pequenos crimes. 

Finalmente, o regime jurídico do internamento compulsório de portadores de anomalia psíquica (Lei 36/98) definiu o quadro legal relativo a esta forma de privação da liberdade que, autorizada pela Constituição (artigo 27.º) e pela CEDH (artigo 5.º), não dispunha, até então, de legislação que pudesse evitar a arbitrariedade. 

A generalização da medida de prisão domiciliar com meios eletrônicos de controle à distância, introduzida em 1998, também foi importante. Por esta via, foi possível assegurar a realização das finalidades cautelares, anteriormente visadas pela prisão provisória, sem recurso à prisão.

 JT: O problema da aplicação excessiva da prisão provisória tem preocupado organismos europeus, como o Conselho da Europa e a Comissão Europeia. Dados do mais recentes do Relatório SPACE I, do Conselho da Europa indicam que 22 em cada 100 presos no espaço europeu se encontram em prisão provisória. 

E há estudos que apontam para um crescimento do número deste perfil de presos nos últimos anos. Se olharmos para a evolução de tal medida de coação em Portugal, verificamos que, em duas décadas, terá havido uma redução significativa dos presos provisórios relativamente à população prisional total. 

Como descreve a evolução da (aplicação da medida de) prisão provisória em Portugal nos últimos anos? 

JLM: Os dados estatísticos revelam um acentuado decréscimo do número de pessoas em prisão provisória nas últimas duas décadas, passando de 30% para 20% da população prisional. 

Os dados da Eurostat de 2020 mostram que este número coincide com a média dos países da União Europeia, sendo consideravelmente inferior ao registado em países como o Luxemburgo, com 43,3%, a Dinamarca, com 37,4%, a França ou Países Baixos, com 28,5%.  

Os dados do relatório SPACE I, de 2020 e 2021, mostram que a taxa de presos provisórios no conjunto da população prisional portuguesa é inferior à média registada nos Estados-membros do Conselho da Europa.  

Embora não possam deixar de ser lidos à luz das realidades nacionais e dos tipos de criminalidade em causa, estes dados refletem o estado da legislação e o grau de exigência na sua aplicação. Sabemos que não basta mudar a lei. A sua incorporação na prática e na jurisprudência requer o seu tempo.  

Os primeiros anos de vigência do novo CPP, no nosso país, ainda refletiam uma concepção moldada pela antiga figura dos “crimes inafiançáveis”. Isto conduzia à privação da liberdade ope legis, sem necessidade de verificação, em concreto, dos pressupostos de necessidade, adequação e proporcionalidade face ao perigo de fuga, de continuação da atividade criminosa, de perturbação da investigação e da prova ou de segurança e ordem pública.  

Na sua redação originária, o artigo 209.º do CPP ainda requeria que o juiz justificasse a não aplicação da prisão provisória a certos crimes graves. A revisão do CPP de 1998 introduziu modificações relativamente ao dever de fundamentação da decisão de aplicação desta medida e as revisões de 2007 e 2010 reduziram prazos e aprofundaram critérios de proporcionalidade nos tempos de duração, em função da gravidade das infrações e de categorias e tipos de crime. 

A generalização da medida de prisão domiciliar com meios eletrônicos de controle à distância, introduzida em 1998, também foi importante. Por esta via, foi possível assegurar a realização das finalidades cautelares, anteriormente visadas pela prisão provisória, sem recurso à prisão.  

De um modo geral, a evolução da aplicação e execução do CPP reflete a “expansão” dos direitos fundamentais no âmbito das restrições do direito à liberdade e da sua ligação à presunção de inocência. Ao mesmo tempo, combina-se com a soft law das Nações Unidas e do Conselho da Europa e com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e do Comitê dos Direitos Humanos das Nações Unidas.  

Simultaneamente haveria que providenciar pelo apoio à decisão de aplicação e manutenção da prisão provisória. Uma aplicação adequada das normas de direito internacional e de recomendações da ONU e do Conselho da Europa convoca a participação de serviços encarregados da colocação em liberdade antes do julgamento

 JT: A prisão provisória é a segunda medida de coação mais utilizada em Portugal, de acordo com o Panorama da Justiça Penal 2020, publicado pela Direção-Geral da Política de Justiça – Ministério da Justiça. Do total de medidas de coação aplicadas, 29% foram de prisão provisória.  

Em que medida faz sentido afirmar que ainda temos uma “cultura de encarceramento” em Portugal? 

JLM: É uma afirmação que, exprimindo o ponto de vista de quem a produz, deve ser contextualizada. Temos um sistema penal pautado em valores de respeito pela dignidade da pessoa humana e no respeito pelos direitos fundamentais, orientado para a prevenção criminal e para a reinserção social.  

A privação da liberdade anterior à condenação é limitada, em termos excepcionais, como medida de ultima ratio. Temos critérios legais muito exigentes, cuja aplicação é feita caso a caso e requer adequada fundamentação.  

O sistema de penas permite uma clara distinção de tratamento entre a pequena e média criminalidade, privilegiando penas alternativas à prisão, e a criminalidade grave, a que deve ser aplicada pena de prisão. 

A aplicação de penas alternativas à prisão, como a prestação de trabalho comunitário, requer, todavia, meios e subsistemas de apoio à decisão e à execução nem sempre disponíveis, o que dificulta a sua aplicação.   

Isso conduz a que a alternativa mais comumente aplicada seja a pena de multa, a qual, não sendo paga, leva frequentemente à prisão, ou a suspensão da execução da pena de prisão, com ou sem condições.   

A impressão que tenho é que um melhor apoio aos tribunais levaria a que fosse privilegiada a pena de prestação de trabalho, de muito mais elevada eficácia, na realização das finalidades das penas, ao nível da prevenção.  

Outro ponto que, a meu ver, requer atenção diz respeito à duração das penas de prisão e ao tempo de permanência na prisão, que, diversamente, são dos mais elevados no contexto europeu. Podendo estar em causa a realização da finalidade de reinserção, como tem sido observado por diferentes intervenientes, em diversas instâncias, julgo que é um tema que merece reflexão ao nível das possibilidades de flexibilização da execução da pena de prisão.  

O mesmo sucede no que respeita à execução de condenações em penas sucessivas. Não existindo, nestes casos, um mecanismo de limitação, como sucede na fixação da pena única em caso de concurso de crimes, embora substancialmente diverso, ou de especial flexibilização na execução das penas, a realidade evidencia que a execução sucessiva leva, frequentemente, a períodos extremamente longos de permanência na prisão, em alguns casos por várias décadas, sem que nisso se veja justificação adequada.   

É neste contexto que julgo também merecer atenção a situação de condenados em idade avançada, com peso significativo numa população prisional envelhecida. Nestes casos, é legítimo questionar a justificação da finalidade da completa execução da pena e a oportunidade de medidas de flexibilização específicas. 

Uma intervenção legislativa nestas matérias constituiria, a meu ver, um contributo importante em oposição à ideia de “cultura de encarceramento”. 

Quais são as necessidades atuais e as melhorias desejáveis no sistema português, no que concerne à questão da prisão provisória?

JLM: A partir da minha experiência, identificaria dois aspetos em que me parece possível introduzir melhorias significativas com efeitos imediatos: no regime de revisão da medida e no regime de recursos.

Tal evolução permitiria reforçar a proteção dos direitos individuais do preso provisório e a gestão e eficácia do processo. 

A revisão obrigatória da medida, que atualmente é trimestral, poderia ser feita em períodos mais curtos, de dois meses, em debate oral e contraditório, com a presença obrigatória da pessoa, que facilmente pode ser assegurada pelo menos através de videoconferência (seguindo recomendações internacionais sobre o tema). 

Por sua vez, o regime de recurso carece de simplificação e de aceleração, para evitar a inutilidade de decisões de recurso posteriores à revisão da medida.

Os prazos deveriam ser substancialmente reduzidos, o julgamento deveria privilegiar a oralidade, à semelhança do que sucede com o habeas corpus, e a decisão poderia ser também simplificada, oral e gravada. Isto conferiria maior celeridade ao processo e reduziria o tempo de prisão provisória ao mínimo indispensável.

O sistema atual, com sujeição aos prazos e formalidades do recurso ordinário leva a que, frequentemente, a decisão do recurso tenha lugar já depois da revisão da decisão recorrida, sem utilidade no processo. 

Ademais, na impossibilidade de decisão célere, é frequente que a pessoa privada da liberdade recorra, sem êxito, à providência de habeas corpus, que não se destina a apreciar do mérito das decisões de aplicação ou manutenção da prisão provisória.

Ao mesmo tempo libertar-se-ia o Supremo Tribunal de Justiça de um número significativo de habeas corpus rejeitados por falta de fundamento. São temas que carecem, obviamente, de ser examinados.

Simultaneamente haveria que providenciar pelo apoio à decisão de aplicação e manutenção da prisão provisória. Uma aplicação adequada das normas de direito internacional e de recomendações da ONU e do Conselho da Europa convoca a participação de serviços encarregados da colocação em liberdade antes do julgamento.

 Um serviço desta natureza contribuiria para que os juízes e o Ministério Público pudessem dispor de informação importante para a decisão sobre a aplicação e manutenção ou não da prisão provisória.

Nomeadamente, refiro-me a informação relativa a fatores que devem ser considerados, como os antecedentes penais da pessoa e os seus “laços com a comunidade” (situação familiar e social, emprego, recursos financeiros e patrimoniais, condições e duração da residência). 

A verificação independente destes fatores e a vigilância das pessoas antes do julgamento permitiriam uma justiça de melhor qualidade neste domínio.

 JT: Têm-se verificado esforços transnacionais ao nível da União Europeia (UE) para lançar as bases de um quadro normativo comum em matéria de direitos fundamentais sobre a aplicação prática da prisão provisória (e respectivas medidas alternativas). 

Ao mesmo tempo, também temos iniciativas dedicadas à promoção da implementação da Decisão Europeia de Controle Judicial (Decisão-Quadro 2009/829/JAI, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo das decisões sobre medidas de controle em alternativa à prisão provisória).

Que fatores dificultam um maior e mais frequente recurso a medidas alternativas à prisão provisória? 

JLM: Julgo que uma resposta fundada a esta questão requer, como em outras áreas, investigação e estudos de natureza criminológica e comportamental, estudos comparados e sobre a aplicação do regime vigente nesta matéria, de que ainda não dispomos.  

A lei em vigor é uma boa lei, carecida de alguns ajustamentos. Mas o que aqui está em causa são as condições da sua aplicação, que não podem bastar-se com o que resulta da interação das instâncias formais de controle (juízes, Ministério Público e órgãos de polícia).  

O juízo de prognose, de difícil elaboração, sobre os perigos de fuga, de perturbação do processo e das provas e para a segurança e ordem pública, em contextos de urgência, como os que se impõem às autoridades judiciárias, para decidir da aplicação de medidas de coação, requerem que estas disponham de outras informações e apoios, como as de serviços que referi, os quais, a meu ver, deveriam constituir uma prioridade. 

Requerem também maior investimento em conhecimento, que não se limite a aspectos estritamente normativos.  

Como o Sr. juiz encara a realização de um quadro normativo comum, ao nível da EU, em matéria de direitos fundamentais sobre a aplicação prática da prisão provisória (e respectivas medidas alternativas)?

JLM: Com a entrada em vigor do Tratado de Amsterdam, que alterou o Tratado da União Europeia, em 1999, registaram-se avanços extraordinários, até então impensáveis, na construção de um espaço judiciário penal europeu.

O Tratado passou a oferecer as bases jurídicas necessárias e o Conselho Europeu de Tampere, em Outubro de 1999, o primeiro e único dedicado às questões do então 3.º pilar, identificaram e concretizaram os objetivos e as medidas necessárias à construção de um “espaço de liberdade, segurança e justiça”, fundado em objetivo da União. 

Desenhou-se um programa ambicioso e reconheceu-se o princípio do reconhecimento mútuo como a pedra angular da cooperação em matéria penal.

Foram adotados dezenas de instrumentos jurídicos na área da aproximação das legislações em matéria de direito penal material e para simplificar, acelerar e tornar mais eficaz a cooperação num espaço aberto de livre circulação e sem controle de fronteiras, iniciado em Schengen, criaram-se redes de cooperação e bases de dados policiais e instituíram-se entidades e órgãos europeus de cooperação, como a Europol e a Eurojust.

O Tratado de Lisboa, em vigor desde 2009, declara a União como um “espaço de liberdade, segurança e justiça”, “comunitarizando” a anterior cooperação intergovernamental do 3.º pilar e estabelecendo as bases para a consolidação desse espaço e para novos progressos, nomeadamente no âmbito das medidas de processo penal, da formação, da proteção das vítimas e da proteção penal dos interesses financeiros da União através da instituição da Procuradoria Europeia, a partir da Eurojust, áreas em que se atualizaram e aprovaram dezenas de iniciativas e instrumentos jurídicos.

Na base da construção europeia estiveram sempre os progressos e o acervo do Conselho da Europa, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos e a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e é a partir da “Europa de Estrasburgo”, de que os Estados Membros da União fazem parte como condição de adesão, que se estabelece o espaço judiciário penal europeu.

Com o Tratado de Lisboa, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia passou a ter o valor jurídico dos Tratados e a vincular diretamente as instituições da União e os Estados Membros na produção e aplicação do direito da União. 

É neste contexto que se pode identificar um quadro normativo comum, estruturado, definido pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos, pelos Tratados da União Europeia, pela Carta, pelas Constituições e pelo direito nacional dos Estados Membros, constituído por um mosaico complexo de normas nacionais e europeias em interação.

E é neste contexto que se equaciona e analisa o tema da prisão provisória e do seu regime moldado por normas e princípios comuns, especificado no artigo 5.º da CEDH, que inspira as Constituições e normas fundamentais do direito nacional dos Estados-membros,  e no artigo 6.º da Carta, de âmbito materialmente idêntico.

 JT: O Sr. Dr. tem estado sempre muito ligado às questões de cooperação judiciária tendo, inclusive, sido Presidente da Eurojust. Esta organização apoia as autoridades nacionais na utilização de instrumentos de cooperação judiciária entre os Estados-membros da UE, como as Decisões-Quadro, do Conselho da UE, Nºs. 2002/584/JAI1 [1], 2008/909/JAI2 [2], 2008/947/JAI3 [3], 2009/829/JAI4 [4] e 2009/299/JAI5[5]. 

O que o Sr. Dr. evidenciaria a respeito da necessidade, importância e desafios da cooperação judiciária no foro da justiça penal, nomeadamente no contexto da União Europeia? 

JLM: Dediquei mais de vinte anos à construção da Europa penal, mesmo desde antes de, como Secretário de Estado, ter sido encarregado destes temas, de 1996 a 1999. 

Tive o privilégio e a honra de ter sido membro da equipe dos pioneiros da Eurojust e de ter sido seu Presidente, eleito pelos meus colegas do colégio que representava os 27 Estados-membros.  

Foram tempos de desafios extraordinários em que se avançou decisivamente em áreas cruciais, com um profundo espírito de cooperação, apesar das diferenças e respeitando-as. 

O quadro jurídico da cooperação judiciária em matéria penal no espaço da UE, envolve vertentes várias de aproximação das legislações nacionais penais e de processo em domínios cobertos pelos Tratados, necessários ao funcionamento efetivo do princípio do reconhecimento mútuo. É neste princípio que, atualmente, se funda a cooperação, medidas e mecanismos práticos de cooperação.  

No essencial, constitui-se um quadro estruturado em que vários instrumentos jurídicos da União se cruzam e completam, numa lógica de coerência e harmonia, garantidos pelo regime dos direitos fundamentais protegidos pela CEDH, e pela Carta, e pela jurisprudência dos tribunais europeus que vinculam os Estados-membros.  

Os grandes desafios que hoje se colocam traduzem-se, no essencial, na aplicação coerente deste complexo normativo que define a Europa penal numa fase avançada de construção.  

A justiça penal adquiriu uma dimensão europeia, impondo-se aos tribunais, como protagonistas da cooperação baseada nos contatos diretos, sem a mediação de órgãos políticos, administrativos ou diplomáticos, interpretando e aplicando o direito nacional e europeu nesta dimensão. 

Este é, a meu ver, o grande desafio a que os sistemas nacionais de justiça penal, com a independência que lhes é própria e garantida, devem responder de forma eficaz na defesa da segurança e na proteção dos direitos dos cidadãos. Para isso é fundamental investir na formação. 

É assim que o mandado de detenção europeu (MDE), que substituiu os mecanismos multilaterais de extradição nas relações entre os Estados-membros, nomeadamente para efeitos de procedimento penal, deve ser enquadrado.  

Em substância, um MDE, por força do princípio do reconhecimento mútuo em que se funda, é uma decisão judicial que visa a privação da liberdade de uma pessoa para ser julgada. Ou seja, só será justificado se reunidos os pressupostos e requisitos de aplicação da prisão provisória, de acordo com a CEDH e com a Carta.  

Para além disso, por força dos Tratados, uma pessoa não pode ser discriminada por se encontrar, ser nacional, viajar ou residir no território de outro Estado, que não o Estado onde corre o processo. Pelo que, antes de emitir um MDE, a autoridade judiciária de emissão não pode deixar de ponderar a aplicação de medidas menos gravosas.  

É por isso que o regime do MDE tem de ser permanentemente conciliado com o regime da Decisão-Quadro 2009/829/JAI relativa à aplicação, entre os Estados-membros da União Europeia, do princípio do reconhecimento mútuo às decisões sobre medidas de controle, em alternativa à prisão provisória. Tanto quanto a experiência revela é ainda longo a caminho a percorrer nesta área. 

 

Notas:

[1] Sobre o mandado de detenção europeu e os procedimentos de entrega entre Estados-Membros.

[2] Sobre a aplicação do princípio do reconhecimento mútuo das decisões em matéria penal que impõem penas privativas de liberdade ou medidas privativas de liberdade para efeitos da sua execução na União Europeia.

[3] Sobre a aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às decisões judiciais e de vigilância com vista à supervisão das medidas de vigilância e das sanções alternativas.

[4] Sobre a aplicação, entre os Estados-Membros da União Europeia, do princípio do reconhecimento mútuo das decisões sobre medidas de supervisão em alternativa à detenção provisória.

[5] Reforçar os direitos processuais das pessoas e promover a aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às decisões proferidas na ausência do interessado no julgamento.

José Lopes da Mota

Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, Portugal

José Luís Lopes da Mota é Juiz Conselheiro da 3.ª Seção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, desde setembro de 2017. Anteriormente foi Procurador-Geral Adjunto, durante seis anos, encarregado de casos criminais no Tribunal de Relação de Lisboa e responsável pela coordenação da cooperação judiciária em matéria criminal. Entre 2001 e 2010 esteve na Eurojust – A Agência da União Europeia para a Cooperação em Justiça Criminal, tendo sido Presidente deste organismo por mais de dois anos (2007-2009). Foi Secretário de Estado da Justiça entre 1996 e 1999, no XIII Governo Constitucional (liderado por António Guterres). É licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa desde 1977.

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