A necessidade de medidas alternativas à prisão preventiva: em direção à concretização de normas comuns

O fenômeno da detenção preventiva: uma tendência crescente

À escala global, 10,74 milhões de pessoas foram presas em todo o mundo em 2018. Além disso, de acordo com um estudo recente, o Institute for Crime and Justice Policy Research observou um aumento acentuado de ordens de prisões preventivas, de 15% em todo o mundo no período de entre 2000 e 2019.Na verdade, “até um terço dos presos do mundo estão aguardando julgamento ou uma sentença final“. Tendo em vista essa proporção marcante, bem como suas consequências nocivas, a questão da prisão preventiva não deve ser negligenciada. 

De fato, o uso excessivo da prisão preventiva impacta negativamente não apenas os detentos e seus direitos fundamentais, mas também suas famílias, comunidades e até mesmo os recursos financeiros dos países. Além disso, é impossível negligenciar o impacto organizacional nos sistemas prisionais, uma vez que “uma importante causa de superlotação é, muitas vezes, o uso crescente da prisão preventiva

 

O impacto  da prisão preventiva em vários níveis

Neste contexto, um uso desenfreado da prisão preventiva e a profunda negligência das medidas alternativas implicarão, em última análise, vários resultados prejudiciais em diferentes níveis: i) nacional (por exemplo, custo financeiro relacionado a cada Estado-Membro da União Europeia);  ii) organizacional (por exemplo, falta de recursos humanos/financeiros; superlotação); e iii) individual (por exemplo, carga psicológica, social e financeira).

A nível nacional, o encarceramento tem claras consequências prejudiciais às finanças nacionais e ao orçamento do setor público. De fato, “cada prisão preventiva significa aumento de despesa (custos diretos), redução de receita (custos indiretos) e menos recursos para outros programas (custos de oportunidade)“. 

Os custos diretos, por exemplo, são aqueles especificamente relacionados ao propósito de garantir o funcionamento eficiente do centro de detenção (ou seja, à medida que mais infratores são detidos, mais agentes penitenciários precisam ser recrutados), além de custos materiais (por exemplo, alimentos, vestuário, leitos, saúde) e a tramitação dos processos contra os detentos (por exemplo, investigações, processo judicial). Isso levará a vários outros problemas, como celas superlotadas, baixa qualidade/quantidade de alimentos e cuidados de saúde ineficientes (o que poderia levar a tumultos e relações problemáticas entre os presos e entre os presos e os funcionários da prisão).

Por outro lado, os custos indiretos são os que muitas vezes passam desapercebidos, ou seja, estão relacionados com a perda de produtividade da sociedade e dos Estados-membros da União Europeia, a redução dos pagamentos de impostos e o aumento do risco de transmissão de doenças (quando os indivíduos são eventualmente liberados da prisão preventiva).

Além disso, o uso excessivo da prisão preventiva, em última instância, acaba retendo recursos importantes que poderiam ser usados para investir no desenvolvimento socioeconômico, resultando em custos de oportunidade.

No nível organizacional, ao superlotar frequentemente a maioria dos sistemas prisionais nos Estados-membros da União Europeia, a prisão preventiva acaba funcionando como um catalisador que agrava muitos outros problemas pré-existentes. Portanto, como afirma Csete (2010), não é de todo surpreendente observar que o “uso excessivo da prisão preventiva resultou (não apenas em) ambientes superlotados, (mas também) anti-higiênicos, caóticos e violentos para os detidos em muitos países“. 

As consequências relacionadas à saúde são algumas das complicações prolongadas que tendem a piorar com a utilização excessiva desse tipo de detenção. Por exemplo, “a disseminação de doenças, impossibilitando a privacidade, sobrecarregando os serviços e aumentando a tensão e, portanto, a violência entre os detentos e entre detentos e funcionários“.

Por último, no nível individual, a Organização Mundial da Saúde se refere, sem surpresa, aos reclusos em pré-julgamento como um “grupo particularmente vulnerável“. Essa categorização não se deve apenas a questões relacionadas à comunicação (com o mundo exterior, após a prisão), mas também às condições das instalações de detenção que são propícias a uma deterioração da saúde física e mental do detento.

Na verdade, os presos provisórios correm um risco maior de se envolverem novamente com o sistema de justiça no futuro. Além disso, as repercussões financeiras também não devem ser desconsideradas. De fato, “os detentos pré-julgamento não correm apenas o risco de perder o emprego no momento da detenção, mas também correm o risco de desemprego ou subemprego a longo prazo após a libertação devido ao estigma da detenção, combinado com a perda de educação ou oportunidades de formação”.

Além do fato de que a detenção aumenta o escopo de possíveis violações em um julgamento justo, pois também impede que os indivíduos preparem sua defesa adequadamente, vale ressaltar que os presos provisórios devem ter – em primeiro lugar – o direito à presunção de inocência.

Um uso exagerado da prisão preventiva prejudicará ainda mais o Estado de Direito “ao degradar a presunção de inocência, promover a corrupção e até mesmo promover a criminalidade“.

Embora a decisão judicial relativa ao decreto de prisão preventiva deva ser baseada no risco de cometer crimes futuros, e não em uma análise do crime em questão, é questionável se essas questões estejam sendo examinadas com rigor considerando as estatísticas anteriormente apresentadas por este artigo.

Simultaneamente, se buscarmos uma maior compreensão do princípio da presunção de inocência, devemos considerar também que seu propósito é a proteção do indivíduo contra quaisquer consequências potencialmente prejudiciais decorrentes de ações do Estado. Portanto, contradiz a “noção de que apenas a decisão do tribunal influencia nas consequências sobre a situação da pessoa culpada.

 

Buscando uma resposta abrangente aos problemas estruturais: fomentar a cooperação judicial para a realização de normas comuns dentro da UE 

De acordo com a Eurostat, em 2017 havia cerca de 590.000 presos nas instituições penais da União Europeia (UE), cerca de 22% dos quais ainda não estão cumprindo uma sentença final, mas aguardando julgamento.Curiosamente, embora as taxas de encarceramento na Europa continuem diminuindo desde 2012, o percentual de presos provisórios aumentou de 17,4% em 2012 para 22,4% em 2018.

Em todo o continente europeu, mais de 100.000 pessoas estão sob custódia enquanto aguardam julgamento, independentemente do fato de haver “meios mais baratos e menos restritivos de gerenciar riscos e garantir a presença em julgamento”. Dentro de alguns países da UE, Itália (34,5%), Grécia (32,4%) e Suécia (27,4%) são apenas alguns exemplos do uso de prisões preventivas acima da média (26%).

Os impactos supracitados enfatizam claramente a urgência de uma promoção consistente de alternativas à prisão provisória. De fato, o plano de ação do Conselho da União Europeia para o fortalecimento dos direitos processuais de pessoas suspeitas ou acusadas em processos criminais de 2009 menciona a importância de produzir um livro verde sobre as medidas adequadas a serem tomadas pelos Estados-membros da União Europeia visando mitigar as consequências prejudiciais discutidas acima.

Na mesma linha, a Decisão-Quadro 2008/947/JHA do Conselho da UE, bem como a Decisão-Quadro do Conselho 2009/829/JHA, também contribuem para a promoção de medidas alternativas, ao mesmo tempo em que promovem o projeto da UE por meio de mecanismos de reconhecimento mútuo.

Nessa mesma linha, o projeto DETOUR, financiado pelo Programa de Justiça da UE destaca 18 recomendações relevantes após uma análise abrangente da realidade legislativa de sete  Estados-membros da União Europeia, visando promover o entendimento da prisão preventiva como último recurso.

Entre essas recomendações, destaca-se a necessidade de mais “esforços no que diz respeito à conscientização e capacitação de promotores e juízes“, além do fato de que uma “reflexão contínua e aprofundada sobre a interdependência entre políticas sociais, migratórias e criminais deve ser estimulada“. 

Além disso, a promoção do “apoio por organizações (externas) de assistência social (por exemplo, serviços de liberdade condicional, auxílio judicial) – possivelmente incluindo informações sobre a liberação disponível e adequada das medidas (condicionais) de liberação” – é de grande importância, bem como uma “representação antecipada e ativa por advogados de defesa“. 

Promover “pesquisa e elaboração de informações estatísticas adequadas”, “desenvolver e implementar formações e seminários sobre a aplicação da Ordem De Supervisão Europeia” e a “inclusão de um “exame obrigatório […] de medidas não privativas de liberdade” pelos tomadores de decisão são outras propostas notáveis. 

Por fim, o relatório reitera a importância de informar regularmente o público e a mídia sobre o “Estado de Direito e os princípios legais fundamentais no que diz respeito à prisão preventiva e à fiança“.

Nesse contexto, a Comissão Europeia, por meio do seu programa da Direção Geral de Justiça e Consumidores, financiou o PRE-TRIAD[1], um projeto destinado a implementar as recomendações acima mencionadas e promover as normas internacionais. 

O PRE-TRIAD pretende basear-se em recomendações e normas internacionais, analisando abordagens bem-sucedidas da UE e de outros países fora da UE que sejam, sem dúvidas, as melhores práticas no campo das alternativas  à prisão provisória (como por exemplo, o Programa de Fiança de Toronto[2]). 

Além disso, e somando-se às recomendações da Diretoria Geral de Justiça, o PRE-TRIAD se concentra em melhorar os mecanismos de cooperação judicial, ao mesmo tempo em que promove a confiança mútua entre os sistemas de justiça dos Estados-membros da União Europeia e capacita os profissionais no uso de medidas alternativas.

Ao promover a cooperação judicial entre os Estados-membros da União Europeia e conscientizar os formuladores de políticas e as partes interessadas sobre o tema, o PRE-TRIAD tem como objetivo construir as bases para a realização de normas comuns relativas aos direitos fundamentais sobre a aplicação prática da prisão preventiva (e suas medidas alternativas).

Em última análise, o projeto prevê promover a implementação da Decisão-Quadro do Conselho 2009/829/JHA de 23 de outubro de 2009, ao mesmo tempo em que mitiga as consequências adversas da aplicação excessiva de medidas de prisão preventiva.

O projeto também visa fornecer um relato detalhado da legislação nacional e europeia sobre prisão preventiva, seus impactos, bem como práticas alternativas bem-sucedidas.

Além disso, explora as razões subjacentes para os magistrados não aplicarem ou serem céticos quanto à implementação de medidas alternativas. Ao mesmo tempo, busca entender se um arcabouço nacional político e legal focado na prisão preventiva como medida de prevenção tende a resultar em um maior número de presos provisórios, e também se os números de detentos em prisão preventiva seriam reduzidos através de esforços de uniformização legislativa.

Por fim, o consórcio tem como objetivo conscientizar os formuladores de políticas, profissionais judiciais e escolas de formação, pesquisadores/acadêmicos e outras partes interessadas sobre a aplicação da Decisão-Quadro do Conselho 2009/829/JHA, enquanto promove formação judicial sobre o tema.

A parceria PRÉ-TRÍAD une organizações públicas e privadas que foram selecionadas por sua experiência anterior nas áreas de justiça, pesquisa em criminologia, educação e formação. É composto por órgãos governamentais, instituições de pesquisa, ONGs e empresas privadas que trabalham nesta área. O consórcio é representado por seis Estados-membros, que representam geograficamente a Europa Central (Áustria, Alemanha), do Sul (Itália, Portugal) e de Leste (Bulgária, Romênia).

[1] Nome completo do projeto: Medidas alternativas de prisão preventiva: Conscientização judicial e cooperação para a realização de normas comuns.

[2] O Programa de Fianças de Toronto é uma organização privada, sem fins lucrativos, que fornece serviços de verificação e supervisão de fianças contratada pela Procuradoria-Geral. O objetivo geral é proporcionar ao tribunal informações verificadas sobre um acusado e prestar um serviço de supervisão aos acusados que se encaixem nos critérios dos programas, a fim de fornecer à justiça uma forma alternativa de liberação.

Referências

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Heard, C., & Fair, H. (2019). Pre-trial Detention and its Over-use: Evidence from Ten Countries. London, UK: Institute for Crime and Justice Policy Research.

Open Society Justice Institute. (2011). The Socioeconomic Impact of Pretrial Detention. New York, NY: Open Society Foundations.

Deltenre, S., & Maes, E. (2004). Pre-trial Detention and the Overcrowding of Prisons in Belgium. European Journal of Crime, Criminal Law and Criminal Justice, 12(4), 348–370.

Csete, J. (2010). Consequences of Injustice: Pre-Trial Detention and Health. International Journal of Prisoner Health, 6(1), 3-14.

Tomsini-Joshi, D., Jürgens, R., & Csete, J. (2014). Health in pre-trial detention. In S. Enggist, L. Møller, G. Gaudea, & C. Udesen (Eds.), Prisons and health (pp. 36-41). Copenhagen, DK: World Health Organization.

Digard, L., Swavola, E. (2019). Justice Denied: The Harmful and Lasting Effects of Pretrial Detention. New York, NY: Vera Institute of Justice.

Duff, R. (2013). Pre-Trial Detention and the Presumption of Innocence. In A. Asworth, L. Zedner, & P. Tomlin (Eds.), Prevention and the Limits of the Criminal Law (pp. 115-132). Oxford, UK: Oxford University Press.

De Jong, F., & van Lent, L. (2016). The Presumption of Innocence as a Counterfactual Principle. Utrecht Law Review, 12(1), 32-49.

Ec.europa.eu.(2020). Prison statistics – Statistics Explained. [online] Disponível em: https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php?title=Prison_statistics [Accessed 6 Mar. 2019].

McVeigh, L., Shaeffer, R., & Hartshorn, J. (2016, May). A Measure of Last Resort? The practice of pre-trial detention decision making in the EU. Fair Trials International. https://www.fairtrials.org/sites/default/files/publication_pdf/A-Measure-of-Last-Resort-Full-Version.pdf.

Aebi, M. F., & Tiago, M. M. (2018). SPACE I – 2018 – Council of Europe Annual Penal Statistics: prison populations. Strasbourg, FR: Council of Europe.

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https://www.fairtrials.org/sites/default/files/publication_pdf/20190731_PTD_Brief_IP_V07_JUSTICIA.pdf.

https://www.irks.at/detour/

Detour Consortium. (2017, December). Recommendations. Institute for the Sociology of Law and Criminology. https://www.irks.at/detour/Uploads/Recommendations%20fin%20for%20pub.pdf

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Pedro Liberado é consultor, pesquisador e gerente de projetos na IPS Innovative Prison Systems. É licenciado em Sociologia pela Universidade de Coimbra e mestre em Criminologia pela Universidade do Porto, tendo sido pesquisador da Universidade de Tampere e da Universidade de Lisboa. Como coordenador do portfólio de radicalização e extremismo violento na IPS, ele elabora e desenvolve diversos projetos focados nesse tema, bem como nas áreas de cooperação judicial internacional e formação de pessoal do sistema de justiça criminal. Também coorganiza e conduz cursos (inter)nacionais de capacitação, seminários e eventos.

Joana Apóstolo é consultora júnior e pesquisadora da IPS Innovative Prison Systems. Possui mestrado em Relações Internacionais e Ciência Política (Universidade de Coimbra, em Portugal e SciencesPo Bordeaux, na França). Foi estagiária da Representação Permanente de Portugal junto da União Europeia. Na IPS, Joana está atualmente envolvida na equipe de pesquisa focada em cooperação judicial internacional, além de contribuir para a implementação de projetos no campo da formação dos profissionais de justiça criminal para o desenho de projetos na área de radicalização e extremismo violento.

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